O PROBLEMA ARDENTE DA TRADIÇÃO

QUE TRADIÇÃO OS CATÓLICOS 'TRADICIONALISTAS' DEFENDEM?

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O PROBLEMA ARDENTE DA TRADIÇÃO

JEAN VAQUIÉ

QUE TRADIÇÃO OS CATÓLICOS "TRADICIONALISTAS" DEFENDEM?

A palavra TRADIÇÃO é empregada, por uns e por outros, em sentidos diferentes, de modo que se tornou totalmente polivalente, designando indiferentemente o a favor e o contra, o melhor e o pior. O público contemporâneo não parece ter tomado consciência dessa imprecisão de vocabulário que contribui para manter a confusão de ideias sobre um capítulo particularmente importante.

Os católicos que permaneceram fiéis, aqueles que precisamente se chamam tradicionalistas, são gravemente prejudicados pela obscuridade de um termo tão crucial na exposição da doutrina sã, pois ela remove a clareza de certas definições básicas, por exemplo, desta: "A Igreja é guardiã da Escritura e da Tradição, que são as duas fontes principais da Revelação". É certo que, se se dá uma definição confusa da Tradição, se faz da Igreja a guardiã de uma Revelação ela própria confusa.

Estamos em condições de provar que uma verdadeira campanha de intoxicação é empreendida, em um nível muito alto, pelos inimigos da Igreja, para finalmente acreditar uma falsa tradição no lugar da verdadeira. Pensamos que seria do interesse dos católicos fiéis precisar, mais uma vez, em meio à confusão que se adensa, de qual Tradição eles são os herdeiros e defensores. É a esse trabalho de clarificação que gostaríamos de contribuir com a presente nota.

Nosso raciocínio será evidentemente moldado pela . Em outras palavras, adotamos "a priori" o ponto de vista ditado pela fé. E constataremos "a posteriori" que nossa reflexão foi guiada e que nosso tema foi iluminado. O crente e o não-crente observam a mesma paisagem, mas o não-crente a examina penosamente, como à luz infravermelha, enquanto o crente a contempla iluminada pela plena luz do sol. É pela fé que obtemos a compreensão, segundo a fórmula de Santo Anselmo: "Crede ut intelligas" (creia para que compreenda). Nosso método de raciocínio escandalizará os racionalistas que não querem aceitar nenhuma verdade a priori, especialmente aquelas que vêm do céu, e que confiam apenas em sua experiência; assim, acabam privando o mundo de seu governo providencial e o submetendo a uma série de experiências indefinidamente continuadas.

Depois de eliminar o sentido etimológico que nada significa, lembraremos qual sentido os teólogos dão à palavra TRADIÇÃO no Antigo e, depois, no Novo Testamento. Veremos, ao longo do caminho, que se criou uma pseudotradição, tão antiga quanto a verdadeira, mas cujo conteúdo é composto; é essa que hoje está se tornando invasiva novamente.

A TRADIÇÃO NO SENTIDO ETIMOLÓGICO

Vamos fazer uma primeira constatação. O sentido em que a palavra "tradição" é comumente empregada, tanto por literatos quanto por jornalistas, coincide com o sentido etimológico. Esta palavra é formada por "trans" (através) e "dare" (dar). Ela significa, literalmente, "aquilo que é dado por transferência". Assim, a única ideia que está realmente incluída nos radicais constitutivos é a de tradução, de entrega, de transmissão, de passagem, de transporte, de legado. O sentido etimológico não faz nenhuma alusão à natureza do que é transmitido. Em suma, ele designa um veículo cujo carregamento é desconhecido. Ele se contenta em definir um certo modo de aquisição de conhecimentos sem dizer em que consistem. Indica apenas como eles são recebidos.

E qual é o modo de recepção? É a herança. A tradição, no sentido etimológico, é o "legado do passado". É o conjunto do patrimônio intelectual que provém das gerações anteriores e que culmina na geração do momento. Nesse legado do passado, obviamente encontraremos tudo o que o homem é capaz de legar, ou seja, tudo o que ele tem em si: o bom e o ruim, o verdadeiro e o falso, a história e a lenda. A tradição, no sentido literal que estamos examinando agora, não faz nenhuma escolha nesse legado necessariamente global e heterogêneo. Ela não vai impedir o ruim, o falso e a lenda de passarem para deixar apenas o bom, o verdadeiro e a história. Ela vai transmitir tudo sem distinção.

Ora, é precisamente com essa mesma ausência de discriminação que a palavra é empregada no sentido corrente. Usaremos a palavra "tradição" (seja no singular ou no plural) sempre que quisermos designar um dos elementos desse legado universal da humanidade passada: falaremos das tradições vestimentares da Bretanha, das tradições culinárias do Périgord, das tradições militares de Saint-Cyr, das tradições pagãs da África negra, das tradições marítimas dos escandinavos, das tradições religiosas da Índia. Diremos que, para viver com sabedoria, é preciso permanecer fiel à tradição, ou seja, à "lição do passado", ao costume, aos hábitos ancestrais. Tudo o que tem um precedente no passado pode ser dito tradicional.

É, portanto, no sentido etimológico que a palavra é comumente empregada para designar os conhecimentos herdados, antigos, aqueles que se distinguem das inovações, das descobertas, das invenções do presente e, em última análise, se opõem a elas.

Ora, acontece que um grande número de pessoas, cultas ou não, nutrem instintivamente uma opinião favorável em relação aos vestígios do passado, onde se condensa toda a experiência acumulada nos tempos antigos. É uma opinião da qual mesmo os mais racionalistas não podem se defender. Há sempre um recanto do pensamento onde mantêm em reserva a boia de salvamento tradicional.

Quando, então, se designa um conceito qualquer, ou todo um sistema, como proveniente da tradição, desencadeia-se um preconceito favorável em todos aqueles que temem as inovações, as novidades, as invenções, as aventuras e que veneram vagamente, mas de forma irresistível, a sabedoria antiga. De sorte que a tradição, no sentido corrente do termo, apresenta uma dupla particularidade: um conteúdo nocional absolutamente qualquer e indiferente, tão rico em coisas ruins quanto em boas, mas, ao mesmo tempo, uma presunção favorável de experiência acumulada, de ponderação, de sabedoria, de prudência.

O professor de literatura dirá, por exemplo: "O romantismo rompeu com a tradição clássica". Depois, algumas páginas mais adiante, ele acrescentará: "O drama de Hernani (eminentemente romântico, no entanto) pertence, 'por tradição', ao repertório da Comédie Française". O classicismo e o romantismo serão assim englobados ambos na tradição, após terem sido declarados adversários.

Outro conferencista, depois de falar sobre a tradição monarquista dos Vendeanos, nos lembrará, alguns instantes mais tarde, da tradição revolucionária da periferia parisiense, empregando o mesmo termo para designar orientações opostas, mas que têm em comum terem sido herdadas. E é preciso reconhecer que ele terá algumas razões para se expressar assim, pois, uma vez que é transmitida pelas gerações anteriores, a revolução torna-se, de fato, tradicional, no sentido etimológico. E, ao se tornar tradicional, ela reveste-se de uma presunção favorável, torna-se mais sábia, deixa de ser uma inovação e uma aventura para se tornar um legado e uma lição do passado.

Entende-se que tantos escritores, de todas as orientações, invoquem, em favor de seu sistema, a pertença à tradição no sentido amplo, cujo conteúdo nocional não é um incômodo para ninguém, pois é absolutamente qualquer e indiferente. No sentido corrente, o bem e o mal são igualmente tradicionais. Mas ambos são, um e outro, aureolados de antiguidade por essa palavra vaga de tradição.

REVELAÇÃO, ESCRITA E TRADIÇÃO

Na terminologia eclesiástica, o termo TRADIÇÃO não se aplica mais a todo o legado do passado sem distinção de conteúdo. Ele é reservado exclusivamente à parte da Revelação divina que não foi consignada por escrito e que foi transmitida oralmente. Toda Revelação, de fato, pode deixar duas formas de registro: uma escrita, que se soma àquelas que já foram consignadas e que formarão, com elas, as ESCRITURAS SAGRADAS; e também uma forma oral, que se soma à TRADIÇÃO, pois procuraremos e recolheremos os menores vestígios das preciosas palavras divinas.

A Revelação divina se manifestou em três grandes fases. Primeiro, houve uma Revelação primordial recebida pelos Patriarcas, mas que não gerou nenhuma Escritura; depois, uma segunda Revelação que deu origem ao Antigo Testamento; e, finalmente, uma terceira, a do Messias, que gerou o Novo Testamento, com o qual a Revelação Pública se encerrou.

Cada fase viu surgir uma forma particular de Tradição que transmitiu a parte não escrita da Revelação e que a Igreja, em sua forma atual, se esforçou para preservar. De fato, todos os historiadores da Religião concordam em afirmar que a Igreja, embora sob diferentes formas, remonta aos primórdios da humanidade e, portanto, aos tempos das primeiras Revelações.

Uma vez que queremos definir a Tradição, devemos compreender sua cadeia desde o início e questionar em quais condições ela pôde ou não chegar até nós.

A TRADIÇÃO PRIMORDIAL E SUA CORRUPÇÃO

As Revelações recebidas pelos nossos Primeiros Pais e pelos Patriarcas que os sucederam não foram registradas por escrito. Em vão procuraríamos por um livro arcaico que nos entregasse seu conteúdo. Elas não estão consignadas em nenhum texto oficialmente codificado por uma autoridade espiritual. Foram transmitidas oralmente e podemos falar corretamente de uma TRADIÇÃO PRIMORDIAL.

No entanto, é necessário acrescentar imediatamente que esta Tradição não permaneceu homogênea e única por muito tempo. Desde o início, foi o lugar de uma divisão. A primeira manifestação dessa divisão nos é relatada no Livro do Gênesis; é a separação dos dois cultos:

  • o culto de Abel, que é um sacrifício expiatório aceito por Deus como constituindo a verdadeira Religião sobrenatural;
  • e o culto de Caim, que é apenas uma oferta de louvor e no qual se exerce apenas a religiosidade natural.

Cada um desses cultos vai dar origem a uma tradição cuja antiguidade será igual à da outra, mas cujo conteúdo e espírito serão diferentes. Se julgarmos apenas pela antiguidade e negligenciarmos o conteúdo e o espírito, não podemos dar preeminência a nenhum dos dois e até mesmo podemos confundi-los em uma única e mesma tradição primordial indiferenciada, o caldeirão de todas as religiões, todas de igual dignidade pois derivam de uma única raiz.

É evidente que tal confusão não é admissível, pois tudo indica a persistência de dois fluxos tradicionais: um fiel à Revelação sobrenatural e outro dócil à inspiração da natureza, incluindo nela os demônios que, embora espíritos, são considerados forças naturais.

Sempre é difícil distinguir a tradição, que é o recipiente, da religião, que é o conteúdo. Em muitos casos, os dois termos podem ser usados indistintamente, especialmente quando se trata desses tempos antigos.

Acabamos de constatar a existência, desde o início, de duas religiões. Estamos certos de não distorcê-las nem desnaturá-las ao chamá-las, para simplificar: uma como a Religião sobrenatural, que reconhece a necessidade de um mediador e o aguarda; a outra, a religião natural, na qual o homem pode alcançar a Deus por seus próprios meios. A distinção, separação e rivalidade entre essas duas religiões não ocorreram sem algumas interferências, como é de se esperar. Mas o que é certo é que sua história comparada é a de sua separação progressiva e hostilidade e não a de sua união e sincretismo.

As duas religiões, portanto as duas tradições, realizaram a profecia que Deus fez no momento da expulsão do paraíso terrestre, quando falou à serpente nestes termos: "Porei inimizade entre ti e a mulher, entre a tua descendência e a descendência dela" (Gên. III, 15). O texto menciona "semen" (semente), geralmente traduzido como "descendência". Quem são essas descendências?

A descendência da mulher é Nosso Senhor Jesus Cristo; mas são também os membros de Seu Corpo Místico, que é a Igreja.

A descendência da serpente é o Anticristo, mas também os membros de seu corpo místico, que é "a Besta".

A história mundial é a do combate entre essas duas descendências, portanto entre esses dois corpos místicos.

A batalha é fluída como todas as batalhas, o que significa que cada lado possui alternâncias entre ofensiva e defensiva, avanço de um lado correspondendo ao recuo do outro. O longo período que se estende desde os primórdios até a Vinda do Messias é marcado pelo crescimento irresistível dessa tradição compósita, dessa religião natural que busca alcançar a Deus apenas com as forças da natureza e que não é outra coisa senão a "descendência da serpente". Esse crescimento irresistível naturalmente leva ao recuo da Tradição primordial, que perpetua a Verdadeira Religião.

Dedicamos um parágrafo a cada uma dessas duas tradições: o primeiro à "Tradição patriarcal", que transmite, desde Adão até Moisés, a religião do verdadeiro Deus; o segundo à "tradição poluída", que durante o mesmo período transmite sem distinguir o verdadeiro do falso.

A TRADIÇÃO PATRIARCAL

O fluxo tradicional fiel é aquele dos grandes patriarcas. A Bíblia menciona dez desde Adão até Noé: Adão, Sete, Enos, Cainã, Maalaleel, Jarede, Enoque, Matusalém e Lameque, o pai de Noé. Esses patriarcas transmitiram a Revelação Primordial que receberam de Adão e a enriqueceram com revelações subsequentes ao longo das eras.

Mas essa transmissão fiel (é importante notar) é realizada por uma linha de poucos, enquanto a grande maioria dos homens é influenciada pelo outro fluxo tradicional, antigo também, mas desviado. Esse fluxo começou com o naturalismo de Caim. Esse desvio do conhecimento religioso levou à conduta imoral generalizada, que foi finalmente punida com o dilúvio. No entanto, após sair da arca, o patriarca Noé retomou o fio da Revelação divina e reconstruiu a Religião primitiva que uma Tradição autêntica ainda transmite até outro período turbulento, desde o episódio da Torre de Babel até a chamada de Abraão.

Uma questão importante nos prenderá por um momento. O que acontece com a Tradição autêntica durante esse período turbulento da Torre de Babel, quando a tradição pagã está em um estado de efervescência extraordinária? Ela se retraiu para se proteger da contaminação e avançou obscuramente até chegar ao misterioso personagem de Melquisedeque, que, sem dúvida, a transmitiu a Abraão. E com Abraão, o processo de fortalecimento e separação se intensifica ainda mais. Deus providenciou à Verdadeira Religião, e portanto à Tradição que a veicula, um lugar protegido, um povo separado dos outros, para que ela se perpetue com toda a proteção possível, aguardando os tempos marcados para seu florescimento.

Assim, a Tradição continua e sempre na mesma forma oral. É muito importante observar que se conhecemos hoje o conteúdo da Revelação Primordial, não é à Tradição que devemos isso, mas à ESCRITURA.

Pois isto é o que aconteceu. Quando a deterioração dessa religião primitiva, deterioração causada pelo paganismo invasor, se tornou irreversível, Deus fez uma Nova Revelação que em grande parte foi dedicada a relembrar a primeira e que, desta vez, Ele mandou ser registrada por escrito. Estes são os Livros do Antigo Testamento, especialmente o Livro de Gênesis, é claro, que a partir de agora irá relembrar uma Tradição nunca antes escrita. Assim, a Nova Revelação, que é a antiga reconstituída e complementada, não é mais transmitida oralmente, mas se torna a Sagrada Escritura. Ela será conservada pela Sinagoga dos Judeus, à qual Deus inspirou um gosto muito aguçado pela exatidão literal.

É hora de nos perguntarmos qual era o conteúdo dessa Tradição primitiva. É, portanto, a Escritura que nos revelará isso, já que a Tradição patriarcal não nos chegou. Os primeiros homens receberam de Deus conhecimento, preceitos, um culto e uma profecia.

O conhecimento fundamental é o de um Deus pessoal e criador, o que exclui qualquer entidade metafísica da qual o universo visível seria apenas uma emanção mais ou menos direta. O conhecimento sobre o universo é o da "obra dos seis dias", que revela tanto o plano de construção do mundo quanto o seu plano de governo.

Os preceitos de conduta estavam inscritos diretamente e tacitamente no coração do homem. O culto era o do sacrifício expiatório, que se tornou necessário desde a queda.

A profecia era a da "postéridade da mulher que esmagará a cabeça da serpente", uma profecia que certamente foi a peça central do legado espiritual transmitido pelos patriarcas.

Mais a tradição também continha dados históricos, isto é, a lembrança dos grandes eventos que determinaram o status do homem em relação a Deus. Os principais são o paraíso terrestre, a queda e o dilúvio. Frequentemente, adicionava-se algumas noções relacionadas à contagem do tempo, como a semana de sete dias. Os arquivos da humanidade haviam preservado desses eventos apenas memórias lendárias e quase indecifráveis.

Este é, em resumo, o conteúdo da Tradição patriarcal. No entanto, é importante notar que não é graças à Tradição que conhecemos isso, mas sim graças à Escritura, a qual não nos revela todos os episódios da história primitiva, mas apenas aqueles que têm importância para nossa salvação.

Assim, Moisés registra por escrito esta Nova Revelação que consiste em parte em lembrar a primeira. Mas então podemos questionar se há realmente uma Nova Revelação, e se Moisés não se limitou a escrever o que ele recebeu oralmente da cadeia tradicional, cujos últimos elos foram Abraão, Isaque e Jacó. Será que ele não também se inspirou, como frequentemente se diz, nas teogonias egípcias e caldeias para compilar tudo isso em uma narrativa coerente?

Assuradamente NÃO. Moisés não poderia simplesmente organizar os materiais que estavam ao seu alcance de forma humana. Houve de fato uma verdadeira revelação em uma época precisamente quando a revelação primordial, já irreconhecível no fluxo infiel da tradição exuberante do paganismo, também estava à beira de desaparecer definitivamente no fluxo fiel. Pode-se afirmar com certeza que a Tradição patriarcal não é conhecível sem o auxílio da Escritura.

Certamente, ela não tinha desaparecido completamente, visto que ressurgiu na pessoa dos Reis Magos, Gaspar, Melchior e Baltazar, que pelo menos haviam recebido o essencial, ou seja, a profecia de um Salvador. No entanto, ela permanecia como vestígios isolados sem influência sobre a crescente evolução do paganismo.

A TRADIÇÃO POLUÍDA

Paralelamente ao fluxo tradicional fiel, que é o dos patriarcas, circula outro fluxo, também tradicional, que pode reivindicar a mesma antiguidade. Ele também deriva da divisão inicial da religião, ou seja, do julgamento divino sobre os respectivos sacrifícios de Abel e Caim. O fluxo poluído se origina do sacrifício de Caim e carrega, em seu conteúdo, todas as noções compostas que a religiosidade natural do homem pode gerar.

O conteúdo dessa tradição desviada não nos é conhecido em detalhes. Mas dois episódios nos ajudam a entender seu teor geral. O primeiro é o Dilúvio, o segundo é a Torre de Babel.

O texto bíblico fornece uma descrição do estado geral da humanidade antes do Dilúvio, que diz pouco, mas contém muito:

"Deus viu que a maldade dos homens era grande na terra e que toda a inclinação dos pensamentos do seu coração era só para o mal" (Gênesis VI, 5).

E mais adiante:

"A terra estava corrompida diante de Deus e cheia de violência. Deus olhou para a terra e viu que ela estava corrompida, pois toda carne tinha corrompido o seu caminho sobre a terra" (Gênesis VI, 11-12).

Corrupção, malícia, iniquidade: essas palavras se referem, claro, à imoralidade dos costumes, mas também à fonte dessa imoralidade, ou seja, a perversão das concepções religiosas: "Toda carne tinha corrompido seus caminhos". E quais eram essas formas religiosas pervertidas? Nenhum documento nos revela detalhadamente, mas é certo que essas deviações deveriam afetar tanto o conhecimento, os preceitos, o culto e a profecia que formavam a estrutura da Religião primitiva. Elas não deviam diferir muito do paganismo que ressurgirá após o dilúvio, e que conhecemos bem.

O segundo episódio nos permitirá precisar quais foram as concepções desviadas da religião e da tradição. O que encontramos no "Grande Desígnio" dos construtores de Babel? Duas noções importantes: uma sobre Deus e outra sobre o homem.

Em seu desígnio encontramos o desejo religioso de honrar Deus, de alcançar Deus. Mas não é por meios humanos: "Vamos construir uma torre cujo topo chegue até o céu" (Gênesis XI, 4). Essa religião é estabelecida pelo homem e não deriva do conhecimento, dos preceitos, do culto e da profecia revelados por Deus. Ela tem Deus como objetivo, mas não tem Deus como base. Pelo contrário, ela corresponde exatamente à crítica das Escrituras: "Este povo se aproxima de mim apenas com palavras, e honra-me apenas com os lábios" (Isaías XXIX, 13).

Também encontramos, curiosamente para uma época tão distante de nós, um inegável humanitarismo, fruto da razão humana:

"Celebramos nosso nome antes de sermos dispersos sobre a face da terra" (Gênesis XI, 4).

O que significa "celebramos nosso nome"? Será que eles queriam erguer, para a glória da humanidade, um monumento ao lado da torre construída para a glória de Deus? Muitos estudiosos pensam assim.

Também sabemos que nesta época ocorreu uma prodigiosa eflorescência do politeísmo e do panteísmo (especialmente em sua forma emanacionista), os quais servem tão bem aos demônios que não podemos deixar de pensar que eles têm algo a ver com sua origem e disseminação. É evidente que a religião de Babel estava impregnada dessas ideias.

Não é difícil entender por que Deus não quis a unidade e a religião de Babel. Há duas grandes razões.

Primeiro, essa unidade e essa religião são, em última análise, as do Seu adversário. No contexto de Babel, a Tradição primordial estava sendo sufocada sob a exuberância da vegetação pagã, que, ao contrário, com seus elementos humanitários, panteístas e politeístas, constituía o que é chamado de pandemônio.

Em segundo lugar, e mais importante, Deus tinha um plano totalmente diferente, cuja essência Ele havia profetizado logo após a queda. Esse plano envolvia o envio à terra do Verbo Encarnado, misteriosamente designado pela expressão "a descendência da mulher". Tudo gira em torno disso. Qualquer religião, por mais antiga que seja, que pretenda ou espere outra coisa não é a verdadeira.

Essas duas razões principais ajudam a entender melhor a vontade de Deus, que à primeira vista pode surpreender. Como assim! A humanidade estava unida e religiosa e desejava permanecer assim. E Deus mesmo desfez essa unidade e essa religião. Mas Ele tinha dois poderosos motivos. Não há dúvida de que a dispersão resultou de uma vontade expressa de Deus. O texto bíblico merece ser relido e lembrado:

"O Senhor desceu para ver a cidade e a torre que os filhos de Adão estavam construindo; e disse: 'Eis que o povo é um, e todos têm uma só língua; e isso é o que começaram a fazer, e agora não haverá restrição para tudo o que eles intentarem fazer. Vinde, desçamos e confundamos ali a sua língua, para que não entendam cada um a língua do seu próximo'. Assim o Senhor os dispersou dali sobre a face de toda a terra, e cessaram de edificar a cidade. Por isso se chamou o seu nome Babel, porque ali confundiu o Senhor a língua de toda a terra; e dali o Senhor os dispersou sobre a face de toda a terra." (Gênesis XI, 5-9)

A religião de Babel é o resultado final da tradição desviada e sua última manifestação global. Após a dispersão, surgirão tradições específicas, umas no Oriente, outras no Ocidente. Mas o que é comum a essas tradições particulares tem boas chances de derivar da religião de Babel.

Os pensadores modernos que nos remetem à tradição primitiva comum a todas as religiões não nos remetem a nada além do antigo pandemônio no estado em que estava quando Deus o dispersou.

A TRADIÇÃO DA SINAGOGA

Deixamos Moisés no momento em que ele estava registrando por escrito, sob a ditadura de Deus, a Tradição patriarcal. Ele inaugura um período de revelações progressivas que deveria perdurar até a aproximação da Vinda do Messias, e cuja codificação foi realizada com notável precisão pelo clero da Sinagoga.

Uma questão se apresenta para nós, que buscamos identificar todas as formas da Tradição. Todas as revelações que ocorreram durante a vigência da Antiga Aliança não deram origem, além dos livros devidamente codificados, a uma tradição oral que seria como um excedente, uma tradição que reuniria seus resquícios? Existe uma tradição judaica que teria, em relação aos livros do Antigo Testamento, a mesma posição relativa que a Tradição apostólica em relação aos livros do Novo Testamento?

De fato, isso ocorre, mas apenas até certo ponto. A Escritura deu origem, tanto na Sinagoga quanto posteriormente na Igreja, a comentários cujos autores inevitavelmente buscaram todos os vestígios de revelação que poderiam ter escapado da codificação escrita e, de modo geral, tudo o que pudesse auxiliar na compreensão do texto sagrado. Portanto, nessas numerosas coleções de comentários (evitando termos técnicos), deveríamos encontrar material para estabelecer uma tradição judaica.

Infelizmente, esses comentários são extremamente heterogêneos. Encontramos, de fato, alguns vestígios de revelação. Por exemplo, em certas coleções, existem decisões judiciais que muito provavelmente foram emitidas por Moisés. No entanto, há muito mais do que isso; há uma colheita de lendas e desenvolvimentos onde predominam mais teosofia pagã do que monoteísmo bíblico. Um exemplo são as dez sefirot, das quais é impossível saber se representam perfeições divinas ou espíritos emanados de Deus e co-criadores com Ele, o que colocaria em questão o princípio da Criação ex-nihilo.

Assim, materialmente, existe uma Cabala, ou seja, uma tradição judaica, mas ela não se alinha verdadeiramente com a Tradição primordial nem com a Tradição apostólica. Ela está principalmente na linha da tradição pagã, da qual reproduz a complexidade e a exuberância. Torna-se, portanto, muito difícil extrair dela qualquer coisa útil.

Por que isso acontece assim? Por que a Sinagoga, que vemos tão cuidadosa na codificação dos textos revelados com uma precisão impecável, foi tão desajeitada e impotente na elaboração de uma tradição que fosse homogênea com essa Escritura?

Há, para isso, duas razões que estão relacionadas, mas que ainda assim podem ser distinguíveis.

Primeiramente, o entendimento do Antigo Testamento, cuja Sinagoga registrava meticulosamente a letra, só é plenamente dado pelo Novo. O Novo Testamento interpreta o Antigo, embora cronologicamente venha depois dele; ele realiza suas profecias e, portanto, esclarece quase todos os seus trechos. Antes da redação do Novo Testamento, não era possível compreender completamente o Antigo.

Além disso, a Sinagoga não teve o benefício da Assistência do Espírito Santo. Isso é frequentemente esquecido. Ela não estava sob o mesmo regime que a Igreja dos Gentios. A Igreja vive sob o regime da Nova Aliança, que é eterna e espiritual, e que deve culminar na formação do Corpo Místico de Nosso Senhor Jesus Cristo, ou seja, a Jerusalém Celeste; ela é assistida pelo Espírito Santo, cujo papel é fazer entender o que Nosso Senhor ensinou:

"Ele vos ensinará tudo e vos recordará tudo o que vos tenho dito."

A Sinagoga não tinha essa assistência. A Antiga Aliança era carnal, pois tinha como objetivo a formação do Corpo Físico de Nosso Senhor em uma raça escolhida para esse fim. O Espírito Santo ainda não havia sido enviado por Jesus, que subiu ao céu.

Certamente, o Espírito Santo se manifestou pelos profetas do Antigo Testamento (qui locutus est per prophetas). No entanto, as revelações dos Profetas permanecem muito obscuras. É certo que a assistência do Espírito Santo concedida à Igreja após o Pentecostes foi muito mais generosa do que aquela concedida à Sinagoga.

Essas duas razões explicam a incapacidade da Sinagoga em entender sua própria Escritura, em fornecer um comentário esclarecido e em estabelecer uma tradição que pudesse preencher completamente o vazio entre a Tradição patriarcal e a Tradição apostólica.

O Divino Mestre proferiu um severo julgamento sobre a "tradição dos antigos":

"E vós, por que transgredis o mandamento de Deus por causa da vossa tradição?" (Mateus XV, 3).

Julgamento que São Paulo reitera e completa nestes termos:

"Tende cuidado que ninguém vos seduza com filosofias e vãs sutilezas, conforme a tradição dos homens, segundo os rudimentos do mundo e não segundo Cristo." (Colossenses II, 8).

Seremos levados a revisitar esta questão da Cabala quando estudarmos a formação da Tradição apostólica. Concluamos provisoriamente dizendo que a tradição da Sinagoga certamente contém algumas pedras preciosas que seria muito interessante descobrir, mas que estão muitas vezes afogadas em escórias frequentemente cortantes.

A CODIFICAÇÃO DA REVELAÇÃO MESSIÂNICA

Todo mundo sabe que Nosso Senhor não escreveu nada. Seu ensinamento era oral e foi transmitido oralmente durante um período inicial. Então chegou um tempo em que alguns dos Apóstolos e Discípulos perceberam a necessidade de deixar registros escritos: scripta manent. Esses escritos, para cuja redação receberam de Deus um carisma especial que os tornou "escritores sagrados", formaram o Novo Testamento. Os livros dignos de fazer parte do Novo Testamento foram limitativamente escolhidos pelo Magistério da Igreja primitiva; eles são chamados de Livros Canônicos e se encerram com o Livro do Apocalipse de São João, com o qual a Revelação pública é encerrada.

Esse trabalho de composição só foi possível graças à assistência do Espírito Santo. Pois foi necessário escolher entre documentos de valores muito desiguais aqueles que podiam ser garantidos como "sem mistura de erro". Tal escolha só poderia ser feita e tal garantia só poderia ser dada por autoridades eclesiásticas assistidas pelo Espírito Santo .

Para alguns desses textos, o Magistério hesitou por muito tempo. O caso mais ilustre dessas hesitações é o do "Pastor" de Hermas. Hermas é um dos primeiros Padres Apostólicos. Dá-se o nome de Padres Apostólicos àqueles dos Padres da Igreja que pessoalmente conheceram os Apóstolos. Hermas compôs um diálogo doutrinário e moral chamado o "Pastor", que por muito tempo foi considerado inspirado e, portanto, pertencente ao cânone das Escrituras. Foi necessário esperar pelo Papa Gelásio para que a decisão fosse tomada de excluí-lo definitivamente. O Papa deu como motivo não que esse texto fosse totalmente ruim, certamente não, mas apenas que ele não estava completamente isento de erro.

Qual destino deveriam ter os livros da Sinagoga? Nosso Senhor ensinou que Ele veio para cumprir as profecias, assim como para realizar e aperfeiçoar a Lei. Portanto, era apropriado estender a canonicidade, com todas as suas garantias, à Lei e aos Profetas, ou seja, aos livros do Antigo Testamento.

A garantia de inspiração concedida pela Igreja acarreta uma série de consequências:

  • As Escrituras Sagradas tornam-se a principal fonte onde podemos encontrar a Revelação divina, pois nenhum outro documento possui a mesma garantia.

  • Portanto, podemos nos dedicar a uma exegese extremamente profunda desses textos, pois temos certeza de que cada palavra não foi colocada ao acaso. Assim, tornam-se um objeto de meditação inesgotável.

O ENSINAMENTO ORAL DOS APÓSTOLOS

Os escritores sagrados, ou seja, os autores dos livros canônicos, não registraram por escrito todas as palavras de Nosso Senhor, nem relataram todas as suas ações. Eles mesmos afirmam isso. Citamos, entre outras provas, este trecho de São João:

"Eu teria muitas coisas para escrever, mas não quero fazê-lo com tinta e pena; espero vê-lo em breve e conversaremos de viva voz." (João 3, 13-14).

Não há dúvida de que os Livros canônicos não contêm em sua totalidade o ensinamento dos Apóstolos. Primeiramente, alguns Apóstolos não escreveram nada por si mesmos e se contentaram em pregar. Sua pregação foi registrada por diversos autores que não são considerados escritores sagrados. E aqueles dos Apóstolos que escreveram também pregaram; portanto, possuímos deles "cartas" que agora fazem parte das Escrituras Sagradas, e também pregações "de viva voz" que eles deixaram para a tradição oral. Encontramos claramente em São Paulo a menção dessas duas fontes: "de viva voz" e "por carta":

"Portanto, irmãos, ficai firmes e conservai as tradições que vos foram ensinadas, seja de viva voz, seja por carta." (II Tessalonicenses 2, 15).

Nos livros canônicos, portanto, os escritores sagrados não disseram tudo o que sabiam. Eles também transmitiram um ensinamento oral, cujas pegadas a Igreja certamente procurará diligentemente.

O ESTABELECIMENTO DA TRADIÇÃO APOSTÓLICA

Autores de qualidade e com funções muito diversas escreveram sobre os mesmos eventos que já são objeto dos Livros Sagrados. E o fizeram com uma das duas seguintes intenções:

  • para relatar, em uma forma diferente, o que os escritores sagrados já haviam escrito;
  • para registrar por escrito o que os Apóstolos haviam ensinado de "viva voz".

É importante notar que esses dados são considerados tradicionais apenas porque permaneceram orais durante a vida dos Apóstolos. No entanto, após certo tempo, eles também foram escritos. Eles foram incorporados em textos cuja diversidade vamos examinar.

Foi formado um vasto acervo de documentos que, embora não tenham recebido a inspiração maior do Espírito Santo, foram compostos com grande habilidade, cuidado e piedade pelos ouvintes dos Apóstolos e dos Discípulos. Desde o início, esses documentos foram altamente considerados pelo Magistério, pois continham parte do ensinamento de Nosso Senhor que não se encontrava nas Escrituras.

Esta reserva documental não constitui, por si só e em seu conjunto, a Tradição. Mas é dela que o Magistério irá extrair, quando necessário, os vestígios dessa Revelação messiânica da qual ele é guardião, não querendo deixar escapar nada, mas encontrando os elementos dispersos. São esses vestígios que, reunidos, recebem o nome de Tradição Apostólica.

O reconhecimento da Tradição como segunda fonte da Revelação (sendo a primeira a Escritura) é uma característica da Igreja Católica. As escolas protestantes são divididas sobre este ponto; algumas admitem certa tradição, mas a limitam a alguns textos; a maioria é hostil à própria noção de tradição, respondendo com o adágio "Sola Scriptura". Portanto, é bom fornecer algumas provas da antiguidade deste reconhecimento da Tradição Apostólica.

Santo Agostinho:

"Há muitas coisas às quais a Igreja está firmemente ligada e que, portanto, podemos considerar como ordenadas pelos Apóstolos, embora não nos tenham sido transmitidas por escrito." (De Bapt. V, 23-31).

São Basílio:

"Considero apostólico firmar-se também nas tradições que não estão contidas na Escritura." (XVII, 66 - Mig. XXXII, 188).

São Epifânio:

"A Tradição também é necessária, pois nem tudo pode ser encontrado na Escritura; por isso, os Santos Apóstolos nos deixaram parte de seu ensinamento nas Escrituras e o restante por meio das tradições." (Haer. LXI, 6 - Mig. XXXXI, 1057).

Os séculos que se sucederam não mudaram a doutrina. Ela ainda era a mesma no Concílio de Trento:

"A Igreja recebe com o mesmo respeito e piedade os Livros Santos e as tradições sobre a fé e os costumes que nos vêm de Jesus Cristo pelos Apóstolos, ou que os Apóstolos nos deixaram pela inspiração do Espírito Santo".

Portanto, para constituir o cânon das Escrituras, o Magistério da Igreja primitiva aceitou apenas textos onde tudo era absolutamente irrepreensível, ou seja, onde tudo evidenciava claramente a inspiração divina. Essa rigorosidade necessária deixou escapar documentos menos cuidadosamente compostos, onde fragmentos autênticos da Revelação Messiânica conviviam com passagens de interpretação humana. Esses documentos, por não serem "sem mistura de erro", não puderam receber a mesma garantia. Eles formaram a reserva de onde a Igreja busca a Tradição.

UM INVENTÁRIO ABUNDANTE

É hora de nos perguntarmos de quais elementos se compõe a vasta reserva documental na qual a Tradição apostólica está distribuída. Note-se que a Igreja nunca publicou oficialmente um inventário limitativo desses documentos. Aqui, é o costume que determina a lei.

O primeiro lugar nas fontes da Tradição é evidentemente dos "Padres Apostólicos", pois eles conviveram com os Apóstolos. Se há personagens que puderam recolher sua pregação, foram esses. Como exemplo, mencionemos São Policarpo, que conheceu São João Evangelista e posteriormente fundou a Igreja de Lyon. Os "Padres Apostólicos" foram testemunhas dos Testemunhos de Jesus Cristo. Assim, têm um lugar especial na transmissão da Tradição. Eles não formularam propriamente a Revelação; portanto, não são "escritores sagrados"; no entanto, recolheram fragmentos dela em uma forma não canônica.

Os "Padres" que sucederam a eles também estão entre essas fontes. O título de "Pai da Igreja" não é conferido oficialmente, mas é uma denominação baseada no uso. Por outro lado, o título de "Doutor" é conferido oficialmente após um procedimento rigoroso. Alguns personagens da antiguidade cristã são tanto Pais quanto Doutores da Igreja. Por exemplo, mencionemos os quatro grandes Doutores gregos: São Basílio, Santo Atanásio, São João Crisóstomo e São Gregório de Nazianzo, e os quatro grandes Doutores latinos: São Jerônimo, Santo Ambrósio, Santo Agostinho e São Gregório Magno. Quando se busca qual é a tradição sobre um ponto específico, sempre se consulta esses grandes personagens.

Outra fonte da Tradição são os Símbolos, esses resumos da fé que eram ensinados de cor aos catecúmenos no momento do Batismo. Mencionemos os três mais antigos: o "Símbolo dos Apóstolos", do qual existem duas versões, o "textus antiquior" e o "textus receptus"; o "Símbolo de Niceia-Constantinopla", confirmado no Concílio de Éfeso e recitado na Missa latina; o "Símbolo de Santo Atanásio", que começa com as palavras "Todo aquele que deseja ser salvo" e que faz parte do Breviário latino.

As Liturgias das Missas, das Horas e dos Sacramentos, e até mesmo as dos sacramentais, constituem uma das fontes mais seguras e ricas da Tradição. Dom Guéranger afirmava que a liturgia é a Tradição em seu mais alto grau de fidelidade. Ela é universalmente construída sobre o mesmo modelo, com as mesmas partes essenciais. A apostolicidade das liturgias mais antigas não deixa absolutamente nenhuma dúvida. Por um certo tempo, foram transmitidas oralmente e até mesmo secretamente, por prudência e respeito, para não expor os "Santos Mistérios" publicamente: isso era conhecido como "a disciplina do Arcano".

Outra fonte da Tradição, como se pode imaginar, são os relatórios, ou melhor, os "considerandos" dos primeiros Concílios Ecumênicos:

  • O Concílio de Niceia, em 325, afirma a divindade de Jesus Cristo contra Ário, que a nega;
  • O Concílio de Constantinopla, em 381, afirma a divindade do Espírito Santo contra Macedônio, que a nega;
  • O Concílio de Éfeso, em 431, afirma a maternidade divina da Santa Virgem contra Nestório, que argumenta que a Santa Virgem é apenas mãe da pessoa humana de Nosso Senhor;
  • O Concílio de Calcedônia, em 451, afirma as duas naturezas na pessoa de Jesus Cristo contra Eutiques, que ensina que na pessoa de Jesus Cristo a natureza divina eliminou a natureza humana (Monofisismo).

Este inventário abundante não é, portanto, limitativo. Podemos mencionar muitos outros elementos: inscrições funerárias, hagiografia, arquitetura de monumentos cristãos e até mesmo os textos apócrifos, que não devem ser negligenciados.

AS DUAS FUNÇÕES DA TRADIÇÃO

As Escrituras e a Tradição contêm ambas uma parte da Revelação divina. É evidente que estão em harmonia uma com a outra e que essa harmonia permite que se iluminem mutuamente. A Tradição pode se comportar tanto como "explicativa" quanto como "completiva".

A Tradição é explicativa quando relata, em termos diferentes ou semelhantes, os mesmos eventos que as Escrituras; isso ajuda na interpretação e esclarece seu significado. Nesse aspecto, a Tradição tem sido extremamente frutífera e continua sendo.

A Tradição é completiva quando enriquece o conteúdo revelado das Escrituras com novos dados, ou seja, quando contém elementos que as Escrituras não incluem, como foi afirmado por Santo Agostinho, São Basílio e São Epifânio. Entre esses complementos, menciona-se:

  • a lista dos livros do Novo Testamento (de fato, a composição do cânone das Escrituras não é escriturária, mas tradicional, o que é curioso);
  • o número sete dos Sacramentos;
  • a transferência da Cátedra de São Pedro de Antioquia para Roma;
  • a doutrina do Anjo da Guarda;
  • a doutrina do Purgatório;
  • a doutrina da Imaculada Conceição, etc.

Estes complementos, de fato, são periodicamente necessários. É uma necessidade constante descobrir algo novo. É uma necessidade vital assimilar uma alimentação sempre renovada. É certo que a Igreja, que ainda não alcançou dimensões definitivas e cujo próprio dogma se desenvolve, sente uma fome por enriquecimento. Com que frequência lemos nos Introitos ou nas Coletas esta expressão: "Canticum novum cantabo" - "Cantarei um cântico novo". A novidade é necessária. O problema é onde encontrá-la. Os modernistas respondem: "No mundo, imitando o profano". Os católicos fiéis têm à disposição uma fonte de água viva: a Tradição: "...todo escriba instruído no Reino dos Céus é semelhante a um pai de família que tira do seu tesouro coisas novas e velhas." (Mateus 13, 52).

O Tesouro é a Revelação. O velho são as coisas que a Igreja já extraiu dela. O novo é o que ela extrai quando chega o momento de entoar um cântico novo.

EM VIRTUDE DAS PROMESSAS DE ASSISTÊNCIA

Quais serão as regras e critérios que a Igreja utilizará para reconhecer os vestígios da Tradição apostólica no meio dessa massa de escritos de tantos autores diferentes? Para que uma crença seja reconhecida como tradicional, ou seja, apostólica, ela deve satisfazer duas condições essenciais: ANTIGUIDADE e UNIVERSALIDADE. Às vezes são mencionadas também outras duas condições: a concordância e a perpétuidade, mas elas podem ser reduzidas às duas primeiras.

No entanto, é evidente que esses critérios de antiguidade e universalidade apenas começam a abordar o problema. Se aplicados sistematicamente e sem a assistência do Espírito Santo, seriam insuficientes para tomar uma decisão tão importante e de natureza tão sobrenatural. Portanto, é em virtude das promessas que lhe foram feitas que a Igreja pode empreender tal discriminação.

E como o Espírito Santo vai agir? Destaquemos apenas duas peculiaridades de sua ação: 1° Ele não adiciona nada às palavras de Cristo; 2° Ele opera invisivelmente:

  1. Ao falar do Espírito Santo que estava pronto para enviar, Jesus disse: "Ele vos ensinará tudo o que vos tenho dito". O Verbo pronunciou palavras, necessariamente misteriosas devido à sua origem, e é o Espírito Santo quem dá entendimento delas. Ele faz compreender o que Nosso Senhor se contentou em expressar. Mas Ele não ensina coisas novas que Nosso Senhor não tenha dito.
  2. É sempre surpreendente, ao observar os acontecimentos da Igreja, notar essa mistura de ordem e desordem. Sob certa aparência, tudo se desenrola como se fosse uma instituição puramente humana, com suas servidões, ônus e os altos e baixos desta condição terrena: escritos desconcertantes, alguns repletos de verdadeiro sobrenatural, outros de maravilhas inventadas, opiniões divergentes, situações estagnadas, decisões que nunca chegam...

Mas sob a luz da fé, a Igreja do Verbo Encarnado aparece, como Ele, verdadeiramente divina e humana ao mesmo tempo. Pois o resultado global desta aparente desordem é a criação de um admirável corpo de textos notoriamente inspirados. A assistência do Espírito Santo foi invisível enquanto se exercia. Mas tornou-se visível em seus efeitos: "attingit a fine usque ad finem, fortiter suaviterque disponens omnia" (ele alcança de uma extremidade à outra, ordenando todas as coisas com força e suavidade).

E quanto às revelações privadas? Elas trazem modificações ao depósito da Revelação Pública, que foi declarado fechado? Pode-se responder negativamente. As revelações privadas têm grande importância na Igreja. Entre outras influências, elas suscitaram muitas festas litúrgicas. Mas elas nunca inovam. Elas apenas cultivam germes já presentes na Escritura e na Tradição, seguindo sua lógica até onde for necessário.

Tomemos como exemplo a devoção e o Culto ao Sagrado Coração, cujo impulso vem de revelações "privadas" feitas a Santa Margarida Maria, durante o reinado de Luís XIV. Esta devoção já era observada até mesmo por Santo Agostinho. Mas podemos remontar mais longe, já que o Coração de Jesus ("lado" no texto, João 19, 34) recebe honras nas Escrituras. São João mesmo remonta mais longe ao citar, a respeito do golpe de lança na Paixão, um texto do Antigo Testamento: "Videbunt in quem transfixerunt" (verão aquele que transpassaram) (João 19, 37). É um texto de Zacarias 12, 10 que a Vulgata expressa de maneira ainda mais marcante: "et aspicient ad me quem confixerunt" (olharão para Mim, a quem transpassaram).

O PAPEL DOS HEREGES

Equipado com regras de discriminação e assegurado da Assistência do Espírito Santo, o Magistério buscará, portanto, na massa documental da qual falamos, os elementos da Tradição apostólica, e os reunirá e coordenará. Mas fará ele este trabalho de triagem de uma só vez e de uma vez por todas, como foi o caso dos Livros Sagrados?

A Tradição apostólica não foi formulada de uma vez por todas. É somente quando se torna necessário que a Igreja fixa um ou outro ponto. E como essa necessidade se manifesta? Muitas vezes é criada por hereges, cujo papel involuntário é levantar novos problemas aos quais oferecem soluções novas, não apostólicas e falsas. Eles assim obrigam a consultar a Tradição para saber qual era, neste caso específico, a opinião dos Apóstolos. Sua intervenção leva a um esclarecimento da doutrina. Portanto, eles têm um papel providencial a desempenhar. Escândalos devem acontecer; ai daqueles por quem eles vêm. A Redenção é um mistério.

"De fato, ouço que, quando vos reunis na igreja, há divisões entre vós; e em parte eu acredito. Porque é necessário que haja entre vós heresias, para que os aprovados sejam manifestados entre vós." (1 Coríntios 11, 18-19)

Hoje em dia, há queixas sobre os modernistas. Eles, de fato, causaram um enorme estrago. Mas basta ter um pouco de paciência, e perceberemos que as questões às quais eles propuseram soluções falsas podem ser resolvidas pela Igreja ao buscar no "tesouro do pai de família", onde se encontra "o novo e o velho".

UMA TRADIÇÃO PURIFICADA

A Igreja dos Gentios adotou a tradição da Sinagoga como prólogo à sua própria Tradição, da mesma forma que adotou os livros do Antigo Testamento como prólogo aos do Novo? Não o fez. Por quê?

Por razões que já conhecemos, mas que é bom explicar sucintamente aqui.

O Divino Mestre, como vimos, fez um severo julgamento sobre a "tradição dos Anciãos". Ele a acusou de ter "anulado" a Lei, o que já é uma acusação grave. Mas há algo pior.

A que impulso, de fato, os escribas e fariseus respondiam ao anular a Lei com suas tradições? Nosso Senhor disse. Esse impulso não era meramente humano; vinha do "pai da mentira". Poderíamos multiplicar as citações das Escrituras nesse sentido. Contentemo-nos com esta menos conhecida, mas igualmente demonstrativa:

"Perambulais por terra e mar para fazer um prosélito, e, uma vez feito, o tornais filho do inferno, duas vezes mais do que vós mesmos." (Mateus 23, 15)

Tanto pelos historiadores quanto pela Bíblia, conhecemos a importância das infiltrações do paganismo entre os Judeus. Não na letra das Escrituras, é claro, pois estas eram preservadas com uma meticulosidade muitas vezes rigorosa, mas em tudo o que era comentário. E ainda assim, Nosso Senhor faz clara distinção quando declara, ao falar dos doutores da Lei:

"Fazei e observai tudo o que vos disserem, mas não imiteis suas obras, pois dizem e não fazem."

Fazei o que dizem porque sua Lei Escrita é correta. Mas não façais o que fazem porque sua interpretação é má. Nessas condições, entendemos por que a Igreja não considerou a tradição dos antigos.

No entanto, os escritores eclesiásticos de todas as épocas mantiveram uma atração secreta pelas incontestáveis pedras preciosas que ainda estão enterradas nos detritos cortantes da Cabala. Ouçamos Dom de Moléon, que ninguém pode suspeitar de qualquer desvio:

"Sem dúvida, é preciso reconhecer que essas tradições, consideradas em seu conjunto, geralmente não passam de um tecido de absurdos, improbabilidades e contos fantásticos. Ao percorrê-las, o leitor rapidamente se cansa de se sentir constantemente levado para a extravagância, o exagero e um maravilhoso que soa falso. No entanto, seria um erro pensar que tudo deve ser desprezado: sob as reviravoltas grotescas e ridículas dessas histórias, há um fundo de verdade; há pepitas de ouro nesse deserto árido. Uma crítica que condena tudo de imediato, sem discernimento, renega seu próprio nome, pois "crinein" significa precisamente separar, distinguir, julgar, escolher. Seu papel aqui é filtrar este depósito vindo dos judeus, reter o que tem chances de ser verdadeiro, e rejeitar todo o resto. Assim fizeram os Padres da Igreja, assim fizeram São Jerônimo, São Efrem e muitos outros depois deles, que souberam discernir, no amontoado dos escritos rabínicos, detalhes, precisões, anedotas que complementam o texto sagrado, o iluminam, o enriquecem e lhe conferem um sabor novo" (Dom de Moléon em Les Patriarches, página 26).

O problema está posto e vemos que não é apenas de hoje. No entanto, os esforços para encontrar uma solução têm sido até agora infrutíferos. Eles até foram prejudiciais. Lembremos apenas obras como La Kabbala Denudata de KNORR von ROSENROTH (1677), cuja influência se misturou à dos Rosacruzes para moldar o espírito das primeiras lojas maçônicas.

Este problema da Cabala é ainda mais complicado pelo fato de que só a conhecemos através de textos estabelecidos por rabinos da Idade Média que estavam atentos em introduzir uma hostilidade velada ao cristianismo.

O perigo de tudo que é cabalístico vem de suas divindades intermediárias indefiníveis, os sefirot, que fatalmente conduzem ao panteísmo ou ao politeísmo, ou mesmo a ambos ao mesmo tempo, desviando-se claramente do conceito essencial, patriarcal e ao mesmo tempo cristão, de um Deus Pessoal e Criador.

Compreende-se que a Igreja tenha se mantido afastada dessa possível contaminação e não assumido a guarda de uma tradição à qual o Divino Mestre acabara de manifestar sua desconfiança.

Portanto, é muito importante observar que a Tradição apostólica não admite qualquer coisa. Ela não transmite todas as ideias correntes. Não se sobrecarrega com costumes e hábitos arraigados. Permanece como um dos dois meios de conhecer a Revelação divina, sendo o outro a Escritura. Seu conteúdo conceitual é selecionado e permanece assim porque é supervisionado, o que é possível porque é administrado por instâncias eclesiásticas certas de serem assistidas pelo Espírito Santo. É a única tradição que se encontra nessa condição. Todas as outras, por falta dessa supervisão e assistência, acabam por carregar qualquer coisa, uma vez que alcançam certo grau de antiguidade e universalidade.

LOCUÇÕES ENVENENADAS

Os inimigos da Igreja atacam todas as instituições, tanto materiais quanto espirituais: dogma, hierarquia, sacramentos, presença territorial, tudo... A Tradição é alvo de um ataque particularmente bem estudado. E no entanto, somos convidados de todos os lados para uma apoteose da tradição. É em seu nome e sob sua antiga bandeira que todos os inimigos da Revolução querem se reunir.

Vimos que há duas tradições: uma das quais a Igreja é guardiã, cujo conteúdo é ortodoxo; a outra, de igual antiguidade, mas cujo conteúdo é compósito. Não deveríamos permitir que, sob o pretexto de combater a Revolução, os católicos abandonem a Tradição ortodoxa e adorem, passo a passo e insensivelmente, a tradição compósita.

O perigo não é ilusório e poderíamos fornecer muitos exemplos disso. Vamos considerar duas expressões frequentemente usadas hoje, que contêm implicitamente um deslize fatal e são usadas, por alguns sem malícia e por outros com malícia. Ouve-se falar de "tradição cristã" e de "tradição viva", sempre em um contexto bastante admirativo, o que completa a ilusão. Vamos examiná-las uma a uma.

A "tradição cristã" não é o nome correto do que se pretende designar assim. O nome correto é a "Tradição apostólica". De fato, se a chamamos de apostólica, a Tradição em questão é claramente definida quanto ao seu conteúdo: trata-se da parte da Revelação que não está nas Escrituras. Assim definida, ela transmite não concepções humanas, mas noções divinas.

Se apenas a chamamos de "tradição cristã", então ela não é mais estritamente apostólica. Ela amplia seu conteúdo para incluir amplamente o eclesiástico e pode abranger costumes, bons ou maus, hábitos, bons ou maus, e todo tipo de aquisições desde que sejam religiosas e tenham um mínimo de antiguidade. Ela não está mais sujeita à ortodoxia e apenas se pede a ela uma tintura cristã geral.

Assim, a tradição, assim chamada cristã, terá a mesma definição que a das outras religiões, para as quais não se pede que transmitam uma Revelação específica e para as quais se contenta com simples antiguidade. O futuro dirá se estamos certos em desconfiar da "tradição cristã" ou se o perigo era apenas ilusório.

A "tradição vivente", agora. É outro nome dado à mesma coisa. A expressão é habilmente combinada, mas não reflete a verdade.

Vimos que a Tradição apostólica não foi fixada de uma vez por todas. Ela está reservada em documentos cuja lista não foi sequer oficialmente finalizada, de onde o Magistério a retira e formula conforme as necessidades surgem. Conclui-se que a tradição é variável e que ninguém pode prever as surpresas que ela reserva.

Mas atenção, não se trata de uma verdadeira variabilidade, pois a mudança só pode ocorrer no sentido de enriquecimento: um processo que não envolve eliminações. Quando uma noção é reconhecida como tradicional pelas autoridades competentes, com as devidas provas de apostolicidade, ela nunca mais perderá sua característica de tradicionalidade. Portanto, trata-se de um desenvolvimento da mesma natureza que o dogma, com o qual aliás se superpõe. Não há desenvolvimento sem estabilidade.

Por outro lado, se qualificamos a Tradição como "vivente", estamos submetendo-a a um processo vital, ou seja, a uma alternância de assimilações e eliminações, onde umas provocam as outras. Estaremos então tolerando que periodicamente se livre de certos elementos que "cumpriram seu tempo" e que serão substituídos por novos. Eis a Tradição tornada evolutiva e o jogo está feito. Não se trata mais de um desenvolvimento, mas de um redemoinho. E que ninguém nos venha dizer que estamos inventando um perigo imaginário: recentemente, a grande argumentação das altas instâncias do Vaticano era afirmar, como algo óbvio, que a essência da Tradição na Igreja é evoluir e se adaptar sempre e sempre... sem dúvida como os redemoinhos de fumaça ao vento da história.

Muitos elogios envenenados também poderiam ser mencionados. Escolhemos apenas dois: o da "Tradição cristã" e o da "Tradição vivente". Timeo Danaos et dona ferentes.

CONCLUSÃO

Devíamos responder à pergunta: "Que Tradição os católicos 'tradicionalistas' defendem?"

Acreditamos ter mostrado, pelo menos em linhas gerais, que esta Tradição é peculiar à Igreja. Nenhuma outra religião a compartilha com ela. Ela se caracteriza de duas maneiras: pelo seu conteúdo conceitual e pelas modalidades de sua formação.

Quanto ao seu conteúdo, a verdadeira Tradição é composta por fragmentos da Revelação divina que escaparam à codificação escrita e, consequentemente, foram transmitidos pela via oral durante um certo período.

Quanto às modalidades de sua formação, a Tradição deve sua origem a três processos que correspondem às três fases da Revelação divina.

A Tradição primordial ou patriarcal não nos é diretamente conhecida sob forma tradicional. É pela Escritura que a conhecemos. É dela que se faz menção no Cânon da Missa, na oração: "Supra quæ propitio". Esta oração é recitada sobre as oferendas pelo celebrante, após a Consagração. Ela segue a " Unde et memores" e precede o "Supplices te rogamus". Aqui está a tradução dela:

"Que Vos digneis, Senhor, lançar um olhar favorável sobre estes dons, como Vos dignastes aceitar os presentes de Abel, Vosso servo justo, o sacrifício de Abraão, Vosso patriarca, e aquele que Vos ofereceu Melquisedec, Vosso sumo sacerdote, sacrifício santo, hóstia imaculada".

O Antigo Testamento também deu origem a uma Tradição, mas esta não se conservou intacta. Ela se sobrecarregou com elementos profanos e pagãos que tornam extremamente difícil a busca pelos vestígios da Revelação divina que, no entanto, ela contém.

O Novo Testamento, por sua vez, é complementado pela Tradição apostólica, que nada mais é do que o ensinamento oral dos Apóstolos. Este ensinamento está disperso na vasta coleção de documentos da paleografia cristã, cuja exploração ainda não está terminada, teoricamente pelo menos.

A Tradição dos Apóstolos, junto com a dos Patriarcas, forma um conjunto homogêneo que constitui precisamente esta verdadeira Tradição pela qual os católicos fiéis são os defensores.

Paralelamente a este fluxo ortodoxo, criou-se outro fluxo que deveria ser chamado de "pseudo-tradicional", e que difere dele, obviamente, tanto em seu conteúdo quanto em seu modo de constituição. O conteúdo da "pseudo-tradição" não é homogêneo; é composto, é misto. Ele é composto por três componentes, misturados mais ou menos intimamente. Encontram-se nele vestígios distorcidos da Revelação divina, como concepções panteístas frequentemente emanacionistas. Encontram-se elucubrações humanitárias, como as da Torre de Babel. E encontra-se produtos da falsa mística, ou seja, da mística demoníaca que é a fonte da mitologia politeísta.

Em resumo, esta pseudo-tradição transmite, misturadas juntas, todas as produções da religiosidade natural.

Quanto ao seu modo de constituição, pode-se dizer que a pseudo-tradição está no seu direito ao reivindicar a mesma antiguidade que a Verdadeira. Ambas têm o mesmo ponto de partida, que é o julgamento de Deus sobre os sacrifícios de Abel e Caim. A pseudo-tradição é atualmente defendida, sob o nome de "tradição esotérica", por pensadores muito eruditos que a consideram a fonte comum de todas as religiões. Esta pretensão é plausivelmente fundamentada para as religiões não-cristãs.

Mas ela é infundada para a Igreja, que é guardiã de uma Tradição essencialmente antagonista àquela. De fato, um dos traços distintivos da Igreja, em todas as épocas, é ter sido mantida separada da raiz comum das falsas religiões.

Se é absolutamente necessário lembrar dessas definições, é porque estamos testemunhando uma manobra que visa deturpar e transformar a verdadeira Tradição, fazendo-a perder sua rigorosidade e tornando-a evolutiva para introduzir elementos conceituais heterodoxos.

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