Gnose Cristã e Gnose Anti-Cristã

Ter como “armadilhas” dogmas imemoriais é uma ideia comum entre os inimigos da ortodoxia, mas nada frequente entre os católicos normais.

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Gnose Cristã e Gnose Anti-Cristã

Por Jean Vaquié, 1989


Na obra “Vu de Haut” (Visto do Alto), publicada originalmente pelas Edições Fideliter, o professor Jean Borella escreveu um capítulo chamado “Gnose cristã e Gnose anti-cristã”. O Cristianismo, diz ele, “(…) é uma religião gnóstica”. Apesar de reconhecer que o vocábulo nunca aparecera na tradição teológica, Borella esforçou-se em tentar inseri-lo no vocabulário católico. E fez desse termo uso bem generalizado, como podemos ver nos exemplos a seguir:

Cristo se fez pecado, concretizando a verdadeira gnose da criação.”

“(…) a verdadeira gnose do Pai é o Cristo.”

“(...) a Sexta-Feira Santa que é a verdadeira gnose.”

“(…) a Ressurreição do Cristo é a gnose operacional e salvífica do mundo.”

Como, então, Jean Borella define o que é “gnose cristã”?

Em algumas passagens mais explícitas, ele a usa como sinônimo de “teologia mística”. Segundo ele, a gnose cristã não é nada mais do que o conhecimento intuitivo de Deus, isto é, um conhecimento pessoal que se obtém através de oração, meditação e contemplação; portanto, um conhecimento que deixa o livresco e se concretiza na experiência. Ora, são inegáveis a realidade e autenticidade de um tal conhecimento experimental e individual. Mas o intuito do Professor Borella era que esse conhecimento fosse, desde então, chamado de “gnose”, o que permitiria, segundo ele, devolver sua verdadeira importância ao misticismo. Desse modo, a teologia despojar-se-ia do racionalismo que a dominava e escaparia das “armadilhas de suas formulações”.

E para onde, afinal, isto nos leva?

Ter como “armadilhas” dogmas imemoriais é uma ideia comum entre os inimigos da ortodoxia, mas nada frequente entre os católicos normais. É claro que se as “formulações” dos dogmas são armadilhas, elas devem ser mudadas para encontrar outras mais seguras, ou então ser abandonadas por completo a fim de não cair nessas armadilhas. Eis, portanto, o fim da noção de ortodoxia dogmática. Esta é a primeira crítica que não se pode deixar de apontar à gnose mística do professor Borella.

Para tranquilizar os católicos, professor Borella estabeleceu uma distinção muito clara entre esta “boa gnose”, que deveria ser cultivada, e o gnosticismo, movimento anticristão que infestou a Igreja primitiva dos séculos II a IV. Infelizmente, segundo Borella, ainda chamamos esse gnosticismo de “gnose”, o que gera uma confusão lastimável.

Este gnosticismo antigo, hostil à Igreja, chega aos dias de hoje revestido de um gnosticismo moderno, com diferenças e semelhanças a sua versão mais velha, as quais Borella expõe, aliás, com toda objetividade. Esses dois gnosticismos, tanto o moderno quanto o antigo, não devem ser confundidos com a boa e verdadeira gnose mística.

Esta distinção entre gnose e gnosticismo já fora endossada por René Guénon e por especialistas do Colóquio de Messina, em 1968. Ao manter-se fiel a ela, Borella esperava apaziguar os católicos tradicionais, preocupados por ver surgir na terminologia religiosa esta palavra “gnose”, repleta de antecedentes heréticos.

Esta precaução foi suficiente? Para que assim fosse, teria que ser respeitada por todos. Os inimigos da ortodoxia, contudo, tiveram o cuidado de não respeitar o vocabulário exigido supostamente em proveito da ortodoxia. O professor Borella, noutras passagens, declara que esta “gnose interior e salvífica”, este “conhecimento intuitivo de Deus”, nunca passa sem um certo esoterismo. Ele crê que a verdadeira gnose sempre existiu, mesmo antes do Cristianismo.

A gnose pré-cristã foi, primeiramente, encontrada entre os judeus. Ela seria representada “pelo esoterismo da religião mosaica, isto é, por aquilo que há de mais secreto nela”. Mas a gnose pré-cristã também tem suas raízes no paganismo, pois, diz ele, “os sacramentos tomam emprestado o que há de autenticamente religioso nos mistérios pagãos”.

Isso de modo algum apazigua nossa inquietude. Certamente todo católico sabe, desde os Padres da Igreja, que “no Antigo Testamento, era necessário saber descobrir as maravilhas da graça escondidas à sombra da Lei”. Mas conhecemos também as repetidas críticas de Nosso Senhor a esta tradição dos escribas. Não há dúvida de que Deus quis submeter os gentios aos Evangelhos. Sabemos também, como diz o Salmo, que “todos os deuses das gentes são demônios”.

Que tipo de misticismo a palavra gnose provocará e recuperará na Igreja? Qual imaginário ela fornecerá?

O tempo dirá em breve. Professor Borella não parece muito tranquilo quanto ao sucesso de sua manobra, visto que, na conclusão de seu artigo escreveu: “Os próprios teólogos católicos, no entanto, hesitarão em ratificar este termo aplicado ao Cristianismo”. Veremos.

Tradução João Pedro Coimbra e Revisão Luiz Alberti