Não há dúvida de que o homem é naturalmente constituído para o comércio pessoal com Deus. É este comércio interior que chamamos de místico, porque é oculto. A vida interior, segundo a expressão de São Francisco de Sales, é “uma conversação”; começamos a conversar com Deus assim que lhe dirigimos a menor oração. Nós somos dotados de um misticismo natural e, mais geralmente, de uma religiosidade natural que os teólogos não contestam. Eles até lhe dão o nome de “virtude natural da religião” quando é exercida em condições heroicas, mesmo por pagãos.
Esta religiosidade natural comporta faculdades místicas, portanto também naturais, e destinadas a tornar mais fácil a contemplação do verdadeiro Deus, uma vez que o homem tenha recebido a Revelação. Podemos dizer, sem exagero, que o homem é naturalmente feito para o êxtase. Manter-se de pé, que é prerrogativa deste “animal religioso”, não seria o início da levitação! Estas faculdades religiosas espontâneas fazem com que o homem se assemelhe, por sua vez, a uma corola de flor, a um tabernáculo e a um lagar. Tomemos separadamente estas três comparações que nos ajudarão a compreender os complicados mecanismos da verdadeira e da falsa mística.
A alma religiosa, seja qual for a sua religião, comporta-se como uma corola que floresce para se deixar penetrar pelos raios do sol que, caindo de cima, aí operam a transformação dos sucos vegetais. Nesta comparação o sol representa Deus que penetra e transforma a alma com a sua luz e o seu calor. Mas se o sol estiver escondido e um grande inseto aparecer, encontrando a corola em plena floração, porá aí um germe mortal.
O seu misticismo natural também faz com que a alma se assemelhe a um tabernáculo. A alma busca apoderar-se da Divindade e para isso abre-Lhe a porta. Depois do que, tendo feito tudo o que está ao seu alcance, ela se torna passiva e espera que Deus entre. E pode realmente ser que Deus desça até lá. Mas os espíritos malignos também podem invadir o tabernáculo aberto e estabelecer-se lá como parasitas.
A alma humana assemelha-se ainda a um lagar. A prensa de um lagar é feita para esmagar boas uvas e produzir um vinho revigorante. No entanto, se nela forem derramadas frutas colhidas aleatoriamente, ela irá esmagá-las com a mesma facilidade, mas apenas extrairá um líquido amargo.
O aparato místico do homem é feito para se abrir ao mundo divino. Ele exerce a sua atividade própria disciplinando-se, elevando-se ao mundo espiritual e aí florescendo. Em seguida, tendo feito isso, ele torna-se passivo porque não consegue atravessar o abismo que o separa do Deus para o qual tende. Eis aqui a corola florescente, o tabernáculo aberto e o lagar escancarado.
Quem virá a desempenhar o papel de ocupante?
É de acordo com a qualidade do ocupante que a mística se tornará boa ou má, verdadeira ou falsa. O aparato místico permanece inalterado, é o inspirador que varia. E o inspirador pode ser Deus, o próprio homem, ou Lúcifer.
Sob que condições a mística será divina ou luciferiana?
É o que tentaremos determinar nos parágrafos que se seguem.
Uma conversação vai estabelecer-se entre dois interlocutores, um dos quais será sem dúvida o homem. Observemos então primeiro o comportamento do homem na condução desta “conversação mística”.
1 – É preciso notar que a alma humana é criada especialmente para um determinado corpo. Pois só há lugar para criar uma alma quando há um corpo para animar. A Igreja sempre ensinou a criação especial da alma; nesta, como em muitas outras matérias, ela não seguiu Platão. Consequentemente, estão manchadas por um erro inicial todas as concepções da vida mística fundadas na pré-existência da alma.
a) É o caso das doutrinas platónicas segundo as quais o criador retira uma alma, para animar um corpo que vai nascer, de um imenso reservatório de almas criadas no princípio e de uma vez por todas. Esta doutrina não resistiu à análise dos Padres. É falso que o homem seja “um deus caído que se lembra do céu”.
b) Este é também o caso das doutrinas que ensinam a transmigração das almas; segundo estes filósofos, dos quais o Oriente já não detém o monopólio, a nossa alma não seria específica do nosso corpo atual; ela seria a reencarnação de um antigo espírito errante, carregado de memórias anteriores, mais ou menos inconscientes.
Nestes dois tipos de doutrinas, a concepção da origem da alma é errónea; e este erro não deixará de ter consequências sobre o desenrolar do comércio com o mundo dos espíritos ou com o mundo divino.
2 – Vejamos agora o impacto, nos processos místicos, das concepções relativas à natureza da alma (e não apenas à sua origem). É doutrina constante da Igreja que a alma humana é constituída por uma única e mesma substância espiritual, assegurando duas funções, uma em relação ao corpo (e para a designar nesta função damos-lhe o nome de "anima"), outra em relação a Deus (e então chamamos-lhe "spiritus"). Mas os Doutores deixam claro que esta dualidade de funções não constitui uma dualidade de substância. Nenhuma fronteira precisa demarca a anima e o spiritus. Eles são conjuntamente afectados pelas mesmas emoções «Magnificat anima mea Dominum et exultavit spiritus meus in deo salutari meo».
Segundo a sã doutrina, uma pessoa humana é comparável a um círio votivo: o corpo é representado pelo pavio que se consome e a alma pela chama que ilumina; a própria chama comporta uma parte inferior, incorporada no pavio ao qual comunica a sua incandescência, como o “sopro de vida” comunica a vida ao corpo físico, e uma parte superior que se estende para cima no ar, como o espírito que acaba por participar da vida divina. Mas existe apenas uma e mesma chama. A verdadeira mística será nutrida por esta doutrina da alma única para duas operações.
Contudo, toda uma escola neo-gnóstica, que se diz cristã, ensina hoje a doutrina da tripartição segundo a qual o homem seria composto por três elementos: o corpus, o spiritus e o animus. O corpus faz evidentemente parte do mundo físico. O spiritus (ou pneuma) pertence ao mundo espiritual. Quanto ao animus (ou psyché), faria parte de um chamado “mundo intermediário” e garantiria a ligação entre o corpus e o spiritus. Eis então a alma humana dividida em dois elementos que não pertencem ao mesmo mundo.
O que seria, então, esse mundo intermediário do qual o animus faria parte?
Seria o lugar de génios neutros, nem bons nem maus, mas inferiores por natureza, e formando, em torno da matéria inerte, uma espécie de auréola semi-espiritual. É bastante evidente que estas concepções neo-gnósticas têm uma influência sobre a conduta da vida interior. Com efeito, o animus, tal como aqui é definido, é assimilado a um génio neutro do hipotético mundo intermediário. É bastante evidente que uma tal assimilação vai facilitar a intrusão de demónios na vida mística.
3 – Estamos a enumerar as grandes realidades sobrenaturais que condicionam o comportamento do interlocutor humano no diálogo místico com Deus, e a examinar as perturbações que os erros de doutrina trazem a este diálogo. Ora, há um facto essencial que vai pesar fortemente no comportamento do homem, mesmo na sua vida interior, é a criação ex nihilo. A Igreja sempre ensinou que Deus fez o universo aparecer onde não havia nada. É uma das verdades mais importantes da fé. A criação ex nihilo é um dos elementos do Mistério da Encarnação, pois que Deus criou o mundo com vista à Encarnação. Existe, portanto, entre o Criador e a criatura, um abismo intransponível para o homem, mas que não o é para Deus. Em consequência, na verdadeira mística, o contacto real da alma com Deus não depende da alma, mas de Deus. A alma é ativa em si mesma no que se refere a preparar-se e a exercer a sua vigilância, mas no que toca a provocar a visita de Deus, ela fica reduzida à espera e à passividade.
As religiões que não admitem a criação ex nihilo fazem viver os seus contemplativos em condições eminentemente artificiais. Quando permanecemos distantes desta verdade revelada, somos repelidos para a hipótese emanatista. Para os emanatistas, o universo e, portanto, as almas humanas que dele fazem parte, provêm de um fluxo exterior e progressivo da substância divina. Não há, portanto, solução de continuidade entre Deus e o universo. Existem apenas graus no processo emanatório que se realiza através de uma série de degradações. Mas estas degradações não fazem desaparecer a essência divina original. É assim que, nas doutrinas emanatistas, o homem possui, no fundo de si mesmo, mergulhado entre escórias corporais, o famoso “Eu” interior que é de natureza propriamente divina.
A vida do místico emanatista consistirá, portanto, em libertar o eu divino do invólucro material para o fazer reaparecer. Pois “nós somos deuses”, por natureza, como o dizia tão bem a serpente. Trata-se, portanto, de uma vida mística essencialmente ativa, já que não existe abismo intransponível entre a alma e a divindade; importa apenas recuar numa série de degradações que permanecem na ordem da natureza. Embora activa, esta mística é vã e artificial e não conduz a Deus, pois é fundada num processo emanatista que não é real.
4 – A conversação mística entre o homem e Deus está ainda condicionada por uma outra grande realidade, que é a ressurreição da carne. Se o nosso corpo deve renascer no estado de glória, é porque a nossa pessoa deve ser reconstituída. E se é reconstituída, é para subsistir no eterno presente. A dualidade entre os dois interlocutores, um divino, o outro humano, subsistirá. A participação na vida divina é muitas vezes chamada de “fusão” porque a vida divina, pela sua sobre-eminência, transforma e transfigura a vida humana. Mas esta participação não é uma “confusão”. A personalidade humana não é dissolvida nem aniquilada. No céu há fusão sem confusão.
O cristão continuará no céu a “conversação” que terá começado na terra. Continuará o mesmo diálogo com a Trindade divina, da qual haurirá sem a esgotar.
As religiões orientais, que se propagam entre nós, não conhecem nem a Glória, nem o Reino (a “Boa Nova do Reino” anunciada aos Gentios). Para elas existe apenas o eterno recomeço, isto é, a roda das coisas. Para adquirir o repouso, é preciso sair dessa rotação sem fim. E para sair dela é preciso identificar-se com o princípio imóvel. Mas identificar-se com o princípio equivale a abandonar a individualidade: a personalidade humana cessa, tal como cessa a gota de água quando imerge no oceano. Isto é o Nirvana. Isto foi tudo o que Lúcifer encontrou para consolar estas pobres almas.
Nessas religiões, a vida mística consiste, portanto, em adquirir o gosto pela aniquilação. Isto alcança-se, diz-se, cultivando a “comunhão cósmica”. E é preciso reconhecer que, neste domínio, estas religiões gastaram tesouros de psicologia.
Depois de termos considerado o que, na conversação mística, diz respeito ao interlocutor humano, procuremos agora examinar, na medida em que estiver ao nosso alcance, o que diz respeito ao interlocutor divino. O Deus com o qual a alma conversa é-lhe ao mesmo tempo exterior e interior.
1 – Ele é antes de tudo um Deus transcendente. Ele estabeleceu, já o lembrámos, um abismo entre Si e a criatura. É um Deus que “habita numa luz inacessível; o qual não foi nem pode ser visto por nenhum homem” (I Tm VI, 16). Nesta luz inacessível, Ele mesmo é uma fornalha incandescente. E esta incandescência é, para o homem da terra, radicalmente mortífera: “Não poderás ver a minha face, diz Ele a Moisés, porque o homem não pode ver-me e viver”. (Êxodo xXXIII, 20). A mera visão de Deus face a face traria a morte a qualquer homem terreno.
Por isso, Deus vai esconder-Se atrás de uma nuvem para encobrir o Seu brilho: “Brevemente virei a ti na escuridão duma nuvem” (Êxodo XIX, 9). No sétimo dia, Deus chamou Moisés do meio da escuridão. E Moisés aproximou-se da escuridão na qual Deus estava (Êxodo XX, 21). Não porque haja a menor treva em Deus, mas porque Ele coloca diante Si uma tela escura para que o seu brilho não seja mortal. Tal é o interlocutor divino da conversação mística.
2 – Contudo o Deus da verdadeira Religião é um Deus que Se aproxima: “Deus appropinquans ego”. Ele é condescendente. Também a teologia mística está repleta de marcas da infinita delicadeza do Deus que Se aproxima. Ele vem morar em nós. Ele enche os corações dos Seus fiéis: “Reple cordis intima tuorum fidelium”. Ele é o doce hóspede da alma: “Dulcis hospes animæ”. (Sequência de Pentecostes). Se ele encontrar o tabernáculo místico devidamente adornado, Deus entrará nele. O reino de Deus está dentro de nós. Toda a clareza da vida interior está resumida nesta fórmula evangélica:
“Se alguém me ama guardará a minha palavra, e meu Pai o amará, e nós viremos a ele, e faremos nele morada”. (João XIV, 23).
Existem três livros nos quais podemos aprender sobre Deus: as Escrituras, o Universo e nós mesmos. O livro interior é aquele que nunca se fecha para ninguém. Não porque o nosso interior seja divino por natureza, mas porque serve de morada ao hóspede trinitário. Tal é o Deus, ao mesmo tempo transcendente e imanente, que é o interlocutor da alma mística.
Quais serão as modalidades do diálogo místico entre parceiros tão desiguais?
Será um debate cada vez mais animado que culminará com a tomada de posse da alma por Deus. Os mestres da vida espiritual concordam em ensinar que este processo apresenta três fases principais: a via purgativa, a via iluminativa e a via unitiva.
A via purgativa começa na idade da razão. Como o nome indica, é um período de purificação. Trata-se, para o homem, de limpar o seu tabernáculo interior a fim de o tornar atraente para Deus. Ora, atraímos o infinitamente grande através da pequenez. É, portanto, uma fase de aniquilação. Os gregos deram-lhe o nome de Katarsis. Ela é necessária em todas as religiões e em todos as místicas, mesmo nas religiões e nas místicas luciferianas. Porque as faculdades contemplativas naturais só poderão florescer, de seguida, mediante esta condição prévia. O mecanismo místico do homem necessita, por conseguinte, de uma fase preparatória de ascese.
Na religião do verdadeiro Deus, esta fase de via purgativa é universalmente experimentada nas ordens contemplativas. Ela foi objeto de observações psicológicas muito aprofundadas. O “Doutor místico” que é autoridade na matéria é, incontestavelmente, São João da Cruz, em particular no seu tratado A Noite Escura. Ele mostra que a alma, abandonada a si mesma, é, no entanto, vigiada por Deus que a educa através de humilhações, securas e aridez, destinadas a fazê-la sentir a realidade profunda do seu nada original. Tudo isso com vista a suscitar nela o desejo de estar ligada à essência divina fora da qual nada existe.
A mesma necessidade de purificação é sentida nos falsos místicos para não travar o mecanismo contemplativo. O maçom aprendiz antes de passar pela iniciação deve “deixar cair os seus metais”, ou seja, livrar-se das suas escórias. Toda uma parte da alquimia espiritual é consagrada à Katarsis. As macerações orientais têm um papel semelhante. Se esta fase de purificação fosse escamoteada, seria o fim de toda a mística. A corola murcharia.
A via iluminativa. À via purgativa, se conduzida com perseverança, deverá normalmente suceder a via iluminativa. Mas esta nova fase não começa de uma maneira brusca. Ela começa por episódios efémeros ao longo da via purgativa que anunciam o fim. É no decurso desta fase iluminativa que vai produzir-se a bifurcação entre a verdadeira e a falsa mística. Este é o momento em que a alma vai selar a sua pertença. Pois a natureza da luz pela qual a alma vai ser iluminada depende do espírito ao qual ela adere de acordo com a sua formação doutrinária. Autores tão opostos como São João da Cruz e René Guénon concordam absolutamente sobre a importância determinante da formação doutrinal prévia. Para São João da Cruz não pode haver contacto autêntico da alma com o Deus verdadeiro sem a fé no Deus verdadeiro. Não há verdadeira mística sem fé VERDADEIRA. Compreendemos muito bem porquê: Deus é atraído para uma alma na proporção em que Ele encontra a fé pela qual Ele já praticamente lá reina. É a fé que orienta a corola em direcção aos raios do verdadeiro sol.
Se esta fase é denominada “iluminativa” pelos grandes doutores é porque ela se vai traduzir em iluminações. A entrada da Trindade na alma, não mais de forma sobrenatural e virtual, mas de uma maneira experimental, produzirá antes de tudo intensos júbilos interiores com sentimento de presença. Essas manifestações variam muito de uma pessoa para outra, mas todas possuem dois traços comuns qualquer que seja o indivíduo:
a) Consistem numa luz espiritual, na maioria das vezes mental, por vezes sensível.
b) São de ordem pneumática, ou seja, localizam-se, quando são sensíveis, acima do diafragma e mais especialmente nas regiões cardíaca e cerebral.
A via iluminativa daqueles que não têm a fé tomará uma direcção completamente diferente e em toda a parte se manifestará através de fenómenos psicológicos semelhantes. Após a fase purificadora da Katarsis que a aliviou, a corola mística floresceu em direcção ao mundo espiritual, pois o seu mecanismo natural a empurra irresistivelmente para lá. Mas a bagagem racional que ela carrega dentro de si não a orienta para o verdadeiro Deus. E Deus, não encontrando aí a Sua marca, não penetra nela. A corola permanece à espera.
Quem saciará a sua sede de luz?
Dois tipos de espíritos desempenharão esse papel:
a) o próprio metapsiquismo da alma, ela mesma.
b) os demónios que esperam o momento propício. Consideremos estes dois casos separadamente.
1 – O metapsiquismo dos sujeitos. Incluímos a sua fé religiosa, ou melhor, a sua anti-fé. A meditação intensiva da alma ávida de luz é capaz de desencadear o processo iluminativo: “Segundo certos filósofos (antigos), esta ascensão do espírito acima e mesmo fora da alma desembocava numa intuição fugaz e por vezes deslumbrante de sabedoria infinita. (DTC. Vacant e Mangenot, artigo “Mystique”). Por sua vez, São Francisco de Sales escreve no mesmo sentido: “Os próprios filósofos (antigos) reconheciam certas espécies de êxtases naturais, provocados pela veemente aplicação do espírito na consideração das coisas relevantes (elevadas)”.
É a este fenómeno da psicologia natural que os Padres da Igreja, seguindo neste ponto os filósofos da Antiguidade, deram o nome de Momentum Intelligentiæ, ou seja, instante de compreensão. Hoje em dia chama-se vulgarmente de iluminação. Alguns autores, mais raramente, dão-lhe o nome de “êxtase dialético” ou de “intuição preternatural”. Este episódio paroxístico da mediação filosófica e religiosa é por vezes acompanhado de um desfalecimento corporal e de um deslumbramento, o que justifica o seu nome de iluminação.
2 – Os demónios esperam o momento propício para penetrar nesta alma sem Deus e aí se fazerem passar por Deus. Mas nem todos se comportarão da mesma maneira pois sabemos que os anjos caídos são muito diferentes quanto aos seus poderes. Uns, os mais elevados na hierarquia, agirão sobre a imaginação, sempre tão vulnerável, e para isso serão “disfarçados de anjos de luz”.
Eles poderão até excitar a inteligência através de intuições ditas “metafísicas”. Como psicólogos experientes, eles desencadearão o espasmo de iluminação para o qual a alma do paciente está preparada. Outros demónios, inferiores e mais grosseiros, apoderar-se-ão do Hipocôndrio (partes laterais do abdómen situadas logo abaixo das costelas falsas) e porão em marcha um misticismo do tipo yoga, pelo qual farão elevar, até às regiões cerebrais, o poderoso factor de excitação psíquica que é a kundalini lombar.
Assim o paralelismo das duas místicas prossegue. A falsa mística possui, tal como a verdadeira, a sua via iluminativa. Mas a iluminação à qual ela conduz é, na realidade, um obscurecimento. Porém, a alma, que é a vítima, nunca o reconhecerá. A sua inteligência é obscurecida e ela confunde as trevas com a luz.
A via unitiva segue-se normalmente à via iluminativa. A sensação da presença divina torna-se cada vez mais permanente e perceptível. A alma adquire intimidade constante com Deus. Eis como São João da Cruz define a via unitiva: “É um conhecimento muito elevado e muito saboroso de Deus e das Suas perfeições; ela ilumina o entendimento como resultado do contacto dessas perfeições com a substância da alma... Este conhecimento bastante subtil e delicado penetra no mais íntimo da substância da alma, acompanhado de um sabor e um deleite aos quais nada pode ser comparado.” (Cântico Espiritual).
É a fase em que a alma, aliviada e já virtualmente desligada do seu corpo, tendo-se tornado passiva nas mãos de Deus, vai ser tomada pelo êxtase. Ela vai experimentar então as primícias da visão beatífica; mas apenas as primícias já que o seu estado, ainda terreno, não lhe permitiria resistir à proximidade da incandescência divina. Todavia, a seiva divina vai começar a circular no rebento, aí produzindo uma impressão indescritível. Todos os místicos estão de acordo em dizer que esta experiência não pode ser descrita por palavras da linguagem humana.
Voltando a si, o extático dirá que teve a impressão de ter sido divinizado, porque a vida divina é infinitamente mais intensa do que a vida humana; ela invade a alma com tanta generosidade que a submerge e parece fazê-la desaparecer. Mas esta divinização só é aparente pois que o extático volta a si.
O que se passou?
Deus ocupou o tabernáculo místico e de repente revelou uma incandescência tão prodigiosa que ela é comunicada à própria parede do tabernáculo que se tornou incandescente, daí esta sensação de divinização.
Mas a personalidade do interlocutor humano permaneceu a mesma; se houve fusão da alma no calor divino, não houve confusão das duas substâncias.
Quando semelhantes transformações efémeras da alma se repetem e a via de união com Deus se torna habitual, a alma sofre o que é chamado de união transformante. Ouçamos o que nos diz São João da Cruz: “A alma adquire um sentido divino tão diferente de qualquer concepção natural, que se imagina caminhando fora de si mesma. Outras vezes ela pergunta-se se o que sucede com ela não é fruto de encantamento ou de um torpor do espírito, pois o que ela vê e o que ela ouve a maravilham. Tudo lhe parece novo e desconhecido, embora essas coisas sejam as mesmas de que ela dantes se ocupava.” (A Noite Escura).
A falsa mística também admite a sua “via unitiva”?
Certamente, o paralelismo entre as duas místicas, a verdadeira e a falsa, prossegue até à via unitiva, inclusivamente.
Mas então a que entidade está a alma unida?
Ela está unida às entidades para as quais a sua fé, ou antes, a sua anti-fé, a orientou, a saber:
a) as entidades do seu próprio psiquismo inconsciente,
b) os demónios que ocuparam o vazio místico que Deus não preencheu.
A via unitiva das falsas místicas vai, portanto, alimentar-se de duas fontes de inspiração, uma humana e outra diabólica. É muito importante lembrar que a falsa mística nunca é inteiramente diabólica. Ela resulta de uma simbiose cujas proporções podem ser extremamente variáveis: ora é o anjo mau que domina, ora é a componente da imaginação humana.
Quando é o anjo mau que é preponderante, podemos esperar impressões da mesma ordem das manifestações divinas, e será difícil de as distinguir. Serão visões onde predominarão a euforia e a elucidação dos mistérios celestes. O tipo perfeito deste falso misticismo é o de Swedenborg. Nos nossos dias, é infinitamente mais difundido do que se poderia suspeitar.
Quando a componente imaginativa humana é a mais forte, a alma encontra no seu inconsciente (psíquico ou cerebral) de que alimentar a sua sede de conhecimento. Mas então já não se trata mais de um êxtase propriamente dito, pois a alma já não tende para um objeto exterior, nem é por ele impressionada. É voltando-se sobre si mesma que ela encontra as bagas para fornecer à sua “prensa mística”. Mircea Eliade, que certamente não é suspeito de hostilidade para com a mística naturalista e pagã, mas que é um observador penetrante, deu a este voltar-se da alma sobre o seu próprio âmago, o nome de enstase, para o distinguir do êxtase e até para se lhe opor. O enstase nada mais é do que o “momentum intelligentiæ” dos filósofos antigos. Ele jamais se encontra isento de uma colaboração demoníaca. É um transe do espírito que, não conseguindo encontrar um alimento divino, procura dentro de si um substituto.
Para permanecermos o melhor possível dentro dos nossos limites espaciais, tivemos que simplificar enormemente esta complexa questão da verdadeira e da falsa mística. Ainda restariam muitos aspectos importantes a expor.
Créditos da tradução: Tiago Cabral