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Uma guerra injusta. Um genocídio EM NOME DA LIBERDADE E DA CIVILIZAÇÃO.
“Para governar a República Argentina vencida, subjugada, inimiga, a aliança com o Brasil era parte essencial da organização Mitre-Sarmiento; para dar a essa aliança de governo interno um pretexto internacional, a guerra contra o Estado Oriental e o Paraguai tornou-se uma necessidade de política doméstica; para justificar uma guerra contra o melhor governo que o Paraguai já tivera, era preciso considerar aqueles dois governos como abomináveis e monstruosos; e López e Berro foram vítimas da lógica criminosa de seus adversários”. (Juan Bautista Alberdi)
Rosas e Francisco Solano López
“Sua Excelência, o general D. José de San Martín, honrou-me com a seguinte disposição: ‘A espada que me acompanhou em toda a guerra da Independência será entregue ao general Rosas, pela firmeza e sabedoria com que defendeu os direitos da Pátria…’* E eu, Juan Manuel de Rosas, seguindo o seu exemplo, determino que meu testamenteiro entregue a S. Exa., o senhor marechal Presidente da República do Paraguai e generalíssimo de seus exércitos, a espada diplomática e militar que me acompanhou enquanto me foi possível sustentar esses direitos, pela firmeza e sabedoria com que tem defendido e continua a defender os direitos de sua Pátria…”* Juan Manuel de Rosas – Southampton, 17 de fevereiro de 1869 (Ver Rosas e San Martín)
Solano López
De Caseros a Cerro Corá
Rosas possuía uma inteligência superior e um instinto diplomático refinado, sensível, amplo e sutil.
Quando o Paraguai declarou sua independência, em 1811, fê-lo como “província”, sentindo-se parte integrante da “Confederação”. O próprio Gaspar Rodríguez de Francia o afirmava dessa maneira, constando inclusive em documentos oficiais e em propostas suas que mencionavam uma confederação. O péssimo manejo político de Buenos Aires, que buscava impor sua vontade às províncias em geral —e ao Paraguai em particular—, acabou por levar este ao isolamento, até a separação definitiva.
Rosas considerava o Paraguai uma província da Confederação, mas entendia que sua incorporação seria um fato natural a concretizar-se com o tempo, uma vez resolvidos os problemas internos das demais províncias. Por isso, teve sempre o maior cuidado em não ofender o povo nem os governos paraguaios, mantendo-se alheio até mesmo a seus assuntos internos e fronteiriços. Após a batalha de Vences, quando Madariaga foi derrotado, Rosas chegou a ordenar a Urquiza que não perseguisse o exército paraguaio que havia cruzado o Paraná em auxílio aos correntinos, justamente para não causar ofensa ao Paraguai.
Sua visão lúcida e abrangente da política internacional permitiu-lhe identificar claramente seu inimigo: o Império do Brasil, aliado a uma política liberal e estrangeirizante, representada localmente pelos unitários. Já os López, embora heróis em sua pátria, não tiveram essa percepção global. Viamm em Rosas apenas um caudilho obstinado, que se negava a “reconhecer formalmente a independência” paraguaia, sem compreender que, com a queda de Rosas, ruiria todo um sistema de resistência ao avanço liberal-mercantilista dos unitários. Essa incompreensão os levou a deixar-se enredar pelo Império, firmando tratados e alianças que desembocariam em Caseros, sem suspeitar que os vencedores dessa batalha seriam os mesmos que, destruído Rosas e o federalismo, destruiriam também López e o Paraguai. Em Caseros selou-se a sorte paraguaia.
Em 1868, Mitre confessava cinicamente: “Explicamos que a política da aliança de 1851 é o ponto de partida e a base sobre a qual repousa a política liberal do Rio da Prata”… “Que nos falta para alcançar os propósitos de 1851? Que as Repúblicas Oriental e do Paraguai adotem governos liberais, regidos por instituições livres” (La Nación, 24 de dezembro de 1864). “Chegou agora a vez do Paraguai… O Paraguai, que é a negação dos propósitos de 1851, encontra-se hoje, justamente por isso, aliado ao Uruguai” (La Nación, 23 de dezembro de 1864). “A República Argentina está no imprescindível dever de formar aliança com o Brasil, a fim de derrubar a abominável ditadura de López e abrir ao comércio do mundo essa esplêndida e magnífica região, que possui ainda os mais variados e preciosos produtos dos trópicos e rios navegáveis para exportá-los” (La Nación Argentina, 3 de fevereiro de 1865). É evidente que, para o liberalismo, o que importava não era a “tirania de López”, mas sim a esplêndida e magnífica região paraguaia.
O caminho foi Caseros, Paysandú, Cerro Corá. Caríssimo preço pagou o Paraguai pela visão limitada dos López, que não haviam compreendido o pensamento genial de Rosas.
Breves antecedentes da guerra
(ver o “Tratado de Puntas del Rosario”)
“A América não conhece a história do Paraguai senão contada por seus rivais. O silêncio do isolamento deixou a calúnia vitoriosa” (Alberdi, Intereses, peligros y garantías de los Estados del Pacífico, Paris, setembro de 1866. El imperio del Brasil… p. 83).
“O Paraguai conhece suas forças e seu valor… Seus filhos amam sua terra… Pode ser destruído por alguma grande potência, mas não será jamais escravizado por nenhuma” (López a Rosas, Assunção, 28 de julho de 1844).
“O Dr. Francia pensou em seu povo como seu povo queria que se pensasse dele. Deu-lhes paz, terras, trabalho, escolas, disciplina e tudo aquilo que seus libertadores lhes haviam tirado. Essa é a verdade” (Carlos Pereyra, Francisco Solano López y la Guerra del Paraguay, p. 21).
As causas essenciais da guerra contra o Paraguai foram os interesses britânicos, a ambição do Brasil e a cegueira da Argentina. Em segredo teceu-se a trama, e pela imprensa soprou-se o incêndio. O Paraguai havia permanecido à margem das guerras civis das províncias, e o isolamento lhe deu impulso próprio. Um isolamento plenamente justificável diante da perversa política liberal de Buenos Aires, que se erigia, por “direito universal”, como herdeira, chefe e senhora da nação. Esse isolamento lhe garantiu meio século de prosperidade —e depois o aniquilamento às mãos de traidores e servidores do Império Britânico.
O ditador Francia governou o Paraguai com mão firme. Expropriou propriedades rurais e as distribuiu entre os camponeses, criando as “estâncias da pátria”, onde os paraguaios trabalhavam em comunidade e colhiam o fruto de seu próprio esforço. Perseguiu e suprimiu o comércio especulativo, e o próprio governo era quem exportava ou negociava a produção. Não havia ricos, especuladores, oligarcas nem financistas. O roubo era punido com a morte e, segundo testemunhos estrangeiros, podia-se caminhar à noite pelo interior com dinheiro, sem qualquer risco. A riqueza pertencia aos paraguaios. Os depósitos abarrotavam-se de produtos, e exportavam-se couro, tabaco, erva-mate etc.
A personalidade de Francia se revela no seguinte episódio: em 1815, o Diretor Supremo Alvear enviou o comissário Juan Robertson com uma nota oficial que dizia:
“Ofereço a V. Exa. os fuzis, munições e canhões que necessite para a defesa dessa província e, em troca, solicito que envie a este exército um número proporcional de recrutas; tudo calculado em pé de reciprocidade, visando os interesses de ambos os povos”.
Segundo Robertson, a proporção era de 25 fuzis por cada cem recrutas fornecidos pelo Paraguai. O ditador Francia chamou o irmão de Juan, Guillermo Robertson, e exclamou indignado: “Veja o que seu irmão teve a insolência e a ousadia de propor. Negociou com o vil Alvear armas em troca de sangue paraguaio! Ofereceu homens em troca de mosquetes! Ousou tentar vender o meu povo!” (AGNA, Relações Exteriores. Paraguai. Correspondência com o Governo Argentino. Alvear a Francia, 15 de março de 1815 / A.G. Mellid, op. cit., t. I, p. 246).
Enquanto Moreno considerava que “será reputado decente todo homem branco que se apresente vestido de fraque e casaca” e Rivadavia negava o voto até mesmo aos “criados assalariados, peões e soldados de linha”, José Gaspar Rodríguez de Francia, ditador perpétuo do Paraguai —tão criticado pelos liberais portenhos— determinava que os representantes fossem eleitos “por todo o povo, no uso e exercício dos direitos naturais e livres, inerentes a todos os cidadãos de qualquer Estado, classe ou condição”, e que as qualidades exigidas dos eleitos “não dependem do calçado nem de outros adornos externos, pois estes não têm a menor relação com as circunstâncias que constituem o caráter de um homem de bem e de um honrado patriota” (A Junta aos Cabildos, 26 de agosto de 1813, ANA vol. 4, cit. A.G. Mellid, p. 235).
Falecido Francia, foi sucedido por Carlos Antonio López, advogado que, além de dar continuidade à sua política, empenhou-se em modernizar o Paraguai. Não importava artigos supérfluos e, quando necessário, os trocava por produtos nacionais, transportados em navios próprios. O país possuía uma frota fluvial e marítima de vinte vapores e cinquenta veleiros, que levavam sua produção à Europa —incluindo o primeiro vapor fabricado na América. Em vez de “importar capitais”, trazia os técnicos de que necessitava, e o Estado construiu ferrovias, telégrafos, canais de irrigação, fundições de ferro, fábricas de armas e até de pólvora. À morte de Carlos Antonio, sucedeu-lhe o filho Francisco Solano López, educado na Europa, onde também representou sua pátria, e que, durante o governo do pai, já era general do exército.
Com uma população de cerca de 400 mil habitantes, o Paraguai contava com mais de 400 escolas. “Não há criança que não saiba ler e escrever…”, afirmava o norte-americano Hopkins em 1845. O analfabetismo era inexistente. Durante a guerra, nos próprios campos de batalha, funcionava uma tipografia móvel que imprimia boletins amplamente distribuídos entre as tropas. Diante das necessidades da guerra, fabricavam-se papel e tinta no próprio front, e publicavam-se jornais em espanhol e guarani, trazendo informes militares e até sátiras contra o exército aliado. Criou-se uma lei de patentes elogiada mundialmente (menos por nossos liberais), incentivaram-se novos métodos de produção e a vinda de técnicos. O governo enviava jovens bolsistas à Europa e aos Estados Unidos para se formarem como engenheiros e especialistas.
O Paraguai não tinha dívida interna nem externa e, em toda a sua existência —inclusive durante a guerra—, jamais contraiu um empréstimo. Os empréstimos do Paraguai seriam impostos apenas pelos governos “liberais”, sob a influência dos aliados e da Inglaterra, depois da guerra.
Libertação ou dependência
Enquanto a imprensa liberal levantava diatribes e falsidades, e Mitre preparava a ruína do Paraguai, o próprio Mitre reconhecia em López:
“Vossa Excelência encontra-se, em muitos aspectos, em condições muito mais favoráveis que as nossas. À frente de um povo tranquilo e laborioso, que se engrandece pela paz e chama nesse sentido a atenção do mundo; com poderosos meios de governo que provêm justamente dessa situação pacífica, respeitado e estimado por todos os vizinhos que com ele cultivam relações proveitosas de comércio; sua política já está traçada de antemão, e sua tarefa é talvez mais fácil que a nossa nestas regiões tempestuosas. E, como disse muito bem um jornal inglês desta cidade, Vossa Excelência é o ‘Leopoldo destas regiões’, cujos navios sobem e descem os rios superiores hasteando a bandeira pacífica do comércio, e cuja posição será tanto mais elevada e respeitável quanto mais se consolidar esse modo de ser entre estes países.”
(Mitre a López. 2 de janeiro de 1864. Arquivo do Gral. Mitre. II, p.50. Biblioteca da Nação) (AGM.I, p.426).
Incrivelmente, aquele que escrevia tais palavras era o mesmo que tramava o genocídio quase completo do “povo tranquilo e laborioso”. Esse progresso independente do Paraguai seria, paradoxalmente, sua ruína, pois Inglaterra e sua seita de liberais locais não podiam tolerar que um “mau exemplo” comprometesse todo um sistema colonial imperante na América do Sul. Não se tratava de discutir se López era tirano ou não, se o povo o amava ou não: essas eram as eternas desculpas do liberalismo.
Enquanto López anunciava a construção de ferrovias com capitais e esforços próprios, Mitre inaugurava a estrada de ferro do Sul:
“Reconheçamos este triunfo pacífico, busquemos o nervo motor desses progressos e vejamos qual a força inicial que os põe em movimento. Qual é a força que impulsiona este progresso? Senhores, é o capital inglês!” (Mitre. Arengas, p.192).
Eis o verdadeiro cerne da questão: o progresso “independente” do Paraguai contrariava as teses liberais do “livre comércio”, da “empresa privada” e do “progresso liberal”. O próprio Alberdi observava:
“Hoje mesmo, em 1865, por quem está bloqueado o Paraguai, senão por seus eternos bloqueadores de toda a vida, os interesses monopolistas daqueles que controlam as portas do Prata?” (Alberdi. Los intereses argentinos, p.18) (AGM, t.I, p.429).
O secretário da embaixada britânica em Buenos Aires, Mr. G.T. Gould, afirmava:
“Apesar dos hábitos laboriosos de seus habitantes, de seus grandes recursos naturais não explorados e de sua extraordinária fertilidade, o comércio exterior do Paraguai sempre foi muito limitado devido às dificuldades criadas pelo governo, aos monopólios que mantinha e às restrições de toda ordem à navegação do rio Paraguai.” (Benites. Anales diplomáticos…, cit. AGM, t.I, p.430).
Gould chamava de “monopólio” simplesmente porque não eram ingleses — caso fossem, seriam “melhores”.
Essas considerações não passaram despercebidas a Alberdi, que, após estudar os “empréstimos” lançados em Londres em 1871 e 1872, escreveu:
“Quanto mais se estuda e conhece os empréstimos paraguaios — suas origens, agentes, motivos e condições — mais se descobre que foram feitos como manobra de guerra contra o Paraguai; e melhor se compreende, então, por que foram promovidos por homens que eram agentes e colaboradores oficiosos do poder que destruiu o Paraguai com o intuito de absorvê-lo, uma vez destruído.” (De los abusos y víctimas del Crédito Público. Montevidéu, 1876).
Eis a verdadeira luta: Libertação ou Dependência.
A trama secreta do genocídio – O centralismo portenho
A preparação do genocídio esteve concluída muito antes do conflito, sob a batuta inglesa. Os últimos detalhes foram acertados em Buenos Aires, na reunião do gabinete em Palermo, com a presença do representante brasileiro e do diplomata inglês Edward Thornton. A conspiração previa a partilha do saque de guerra e proibia negociações de paz separadas: tratava-se, portanto, de uma guerra de aniquilamento. (Ver tratados de Puntas del Rosario e da Tríplice Aliança).
Alguns historiadores afirmam que a entrada da Argentina na guerra se deveu à violação de seu território pelo Paraguai, em defesa do Uruguai. Mas essa desculpa é insustentável. As raízes do conflito devem ser buscadas muito antes, nos acontecimentos posteriores a 1810, quando a oligarquia portenha tentou impor sua hegemonia sobre as demais províncias, reivindicando o controle exclusivo da entrada do rio e do usufruto do porto. Preferiram perder territórios que não se submetessem, como ocorreu com a Banda Oriental, e negaram-se a incorporar deputados do interior.
A Junta de Buenos Aires instruiu Manuel Belgrano, à frente de um exército, a “libertar” o Paraguai. O generoso Belgrano acreditava que o povo paraguaio o receberia como libertador. Desenganou-se ao avançar pelo território e perceber tanto o vazio deixado pela população, que se afastava, quanto a firme resistência contra aquele que consideravam um invasor.
Derrotado, Belgrano propôs um acordo digno. Comunicou ao vencedor, o general Cabañas, que não viera lutar “entre irmãos, parentes e compatriotas”, que não buscava a “conquista, mas o auxílio”, oferecendo “um comércio liberal aos seus produtos” e que os filhos da terra “recobrassem os direitos que por todos os títulos lhes correspondiam”. Acrescentou ainda que “as províncias do Rio da Prata já estão unidas e em obediência à capital”, sugerindo que o Paraguai “elegesse o deputado que lhe correspondesse, se unisse e guardasse a ordem de dependência determinada pela vontade soberana”.
Note-se: o que os portenhos não conquistaram pelas armas, buscavam conquistar com artifícios. Depois de falar em “devolver direitos”, pretendiam impor obediência e dependência à capital, determinada não pela vontade soberana do povo paraguaio, mas pela de Buenos Aires.
O Dr. Francia, que a princípio se sentia parte da “confederação”, foi forçado a manter-se constantemente na defensiva diante do centralismo portenho, que tentou dobrá-lo pela força das armas, pelo bloqueio ao comércio e à navegação dos rios, e também por palavras insinuantes, ora ameaçadoras, ora aduladoras.
Buenos Aires jamais desperdiçou ocasião para tentar “impor” sua vontade — ou sua “razão” — de forma insidiosa, enganosa e mal-intencionada, como fazia também com as demais províncias. Entre tantos exemplos, basta lembrar a comunicação do “iluminado” Rivadavia, com seu habitual palavrório:
“Os princípios que moveram a revolução de Buenos Aires e que a constituíram na Capital das cidades livres da América, o motor sempre ativo e nunca deficiente da liberdade de tão vasto e rico continente, conferem àqueles a quem foi confiada a direção de tão grande obra toda a superioridade que demanda o interesse geral dos povos.”
Rivadavia não apenas tentava enredar o Dr. Francia com palavras, proclamando Buenos Aires como “Capital da América” de facto, como também atribuía a si próprio uma “superioridade”. O Paraguai, pela voz de Larios Galván, respondeu de forma seca e altiva: “Terá muito presente a Junta que sua mediação só poderá ser feita da mesma forma que a minha, elevada ao mesmo grau que a de Vossa Mercê.”
Na realidade, Rivadavia foi um eterno motivo de vexame.
O Paraguai fez sua própria revolução em maio de 1811. E, em ofício de 25 de setembro de 1811, o Triunvirato comunicava à Junta Governativa do Paraguai que “o governo não exige outra coisa dos povos senão justa obediência a suas determinações”, como se isso fosse pouco.
Essas atitudes prepotentes e hegemônicas dos portenhos, somadas à nefasta política rivadaviana, levariam o Paraguai ao isolamento — e, por consequência, a um progresso independente das potências estrangeiras (sobretudo a Inglaterra) — para, mais tarde, conduzi-lo à ruína. Essa ruína seria incentivada pela política liberal e entreguista do mitrismo.
E que direito tinha Buenos Aires de exigir obediência? Mitre e Vicente Fidel López o dizem claramente:
“Doze dias depois, uma expedição de cento e cinquenta voluntários partia de Buenos Aires para levar as ordens do povo na ponta das baionetas.”
(Mitre, Historia de Belgrano, t. I, cap. XI, p. 350).
E López acrescentava, com profundo desprezo:
“Fora de Assunção tudo era bosque e campo que, se alguma vez haviam sido cultivados, estavam agora empobrecidos e povoados por uma raça indígena e servil, em grande parte mal misturada, tão miserável que, seja pelo clima, seja pela insuperável dificuldade de obter tecidos para vestir-se, vivia completamente nua desde os primeiros anos. Se isso era um povo, então é claro que era um povo do qual a Junta Governativa de Buenos Aires não podia esperar ação alguma em nome de seus princípios.”
(Historia Argentina, t. III, p. 342).
A dedução é direta: eliminar essa “raça inferior”, como defendia Sarmiento. Incrível a mentalidade recalcitrante de nossos “historiadores” e “próceres”.
O Império sempre cobiçou o Paraguai. A Revolução de Maio de 1811 em Assunção não foi contra a Espanha, mas contra a entrega que se pretendia ao Império. O bando de 17 de maio proclamava “que, ao confederar-se com Buenos Aires, não teria outro fim senão a defesa comum, sob um sistema de união mútua, amizade e conformidade, cuja base seja a igualdade de direitos…”. Uma ideia precursora de Confederação no Rio da Prata! Ah, quão distinto teria sido o destino de todos se a oligarquia portuária de Buenos Aires não tivesse se empenhado em frustrar esse caminho!
Em 1826, o cônsul brasileiro informava a seu governo:
“Depois do Brasil, é sem contradição a primeira potência da América.”
E em 1830 qualificava o Paraguai de “colosso nascente”, recomendando destruí-lo por meio de “uma rápida e bem combinada invasão.”
(Antonio Manoel Correa da Câmara ao Ministério dos Negócios Estrangeiros do Império, 2 de abril de 1830, Anais do Itamaraty, IV, p.166).
Para o Paraguai, era vital manter o Uruguai independente, como garantia de equilíbrio no Prata. Para a Inglaterra, porém, a prioridade era “eliminar” o mau exemplo paraguaio, utilizando Brasil e Argentina como peões do jogo. Sob qualquer pretexto, estes últimos ocuparam o Uruguai, obrigando inevitavelmente López a defendê-lo.
A imprensa imperial e mitrista preparava o terreno com mentiras e diatribes contra “o tirano López”, que teria “violado todos os usos das nações civilizadas” (¿?). O jornal Standard de Buenos Aires antecipava que Mitre “levaria em sua carreira vitoriosa, além do peso das glórias passadas, o impulso irresistível da opinião pública em uma causa justa.”
Não se sabe a quais “glórias” do eterno derrotado general se referia o Standard, nem a que “opinião pública” aludia, já que, salvo a oligarquia portenha, todos lhe eram adversos.
O tratado secreto era mantido oculto para que os aliados não fossem vistos como “agressores”, mas como “agredidos”; para escapar da responsabilidade histórica da guerra e para evitar reações contrárias. A denúncia do representante dos Estados Unidos, em informe a seu governo, revelou antecipadamente o “convênio”, gerando fortes reações na imprensa e até em toda a Hispano-América — mas já estávamos “até os joelhos”.
A oposição federal foi unânime, e até mesmo unitários manifestaram-se contra a política mitrista. José Hernández (El Argentino) e Evaristo Carriego (El Litoral) apoiaram a posição do Supremo, questionando se não deveriam os argentinos ajudá-lo. Francisco Fernández e Olegario Andrade (Concepción del Uruguay), Navarro Viola e Carlos Guido y Spano (El Americano, de Buenos Aires), o governador liberal de Corrientes, Manuel Lagraña, e seu correligionário Patricio Cullen, de Santa Fé, manifestaram-se no mesmo sentido.
Em interpelación a Elizalde, Adolfo Alsina advertia: “com sua mediação nas coisas orientais, começou a trançar a corda com que talvez nos enforque”. E corria o dito de que Mitre “engolia amargo imposto pelos brasileiros e cuspia doce para o público.”
Ainda assim, o jornal La Nación mitrista continuava a preparar o ambiente e atiçar o fogo:
“…a necessidade de robustecer cada vez mais a aliança entre o Rio de Janeiro e Buenos Aires, dois governos sinceramente liberais que não podem permitir que a tranquilidade do Rio da Prata dependa das desconfianças sombrias de um déspota nem das tendências selvagens dos caudilhos.” (La Nación, 3 de dezembro de 1864).
Liberal, o Rio de Janeiro? Um governo que, sobre 10 milhões de habitantes, mantinha 1,7 milhão em escravidão? Que levava à guerra 45 negros escravizados por cada branco? Isso era “liberalismo” segundo o genocida Mitre.
“Que buscamos na ação do Brasil? (…) O fim das autoridades semi-selvagens que tentam inflamar o Rio da Prata.” (La Nación, 26 de novembro de 1864).
“O Paraguai precisa regenerar-se, e essa regeneração não poderá obter-se de outro modo que a canhonadas.” (El Orden).
Segundo a mentalidade liberal, “insignificante em si mesmo, o Paraguai podia impedir o desenvolvimento e o progresso de todos os seus vizinhos. Sua existência era nociva, e sua extinção como nacionalidade, ou a queda da família reinante, seria proveitosa para seu próprio povo e para o mundo inteiro.” (Washburn, Historia del Paraguay).
Enquanto a imprensa liberal e mitrista — La Nación de Mitre, El Orden de Domínguez, La Tribuna dos Varela, El Nacional de Sarmiento — fomentava o ódio e falava de “governos semi-selvagens”, os europeus, tão idolatrados por Mitre, publicavam ideias muito distintas sobre o Paraguai:
“De todos os países da América do Sul que, há cinquenta anos, buscam o verdadeiro caminho que conduz os povos a tornarem-se grandes nações, o Paraguai é, sem contradição, aquele que mais esforços tem feito para se desembaraçar das amarras da barbárie…” (Revue des Races Latines, artigo de H. Francignes, Paris, 1861).
As futuras ações da guerra deixariam bem claro quem eram, de fato, os “selvagens” e os genocidas. Mitre, que antes chamara López de “Leopoldo destas regiões”, passou a chamá-lo de “Átila da América”, “a última vergonha do continente”, falando dos “paraguaios livres que gemem sob um tirano”.
E, para acabar com os gemidos, pensava em eliminar todos aqueles que gemiam.
As futuras ações de guerra deixarão bem claro quem foram os verdadeiros “selvagens” e genocidas: Mitre, que antes havia chamado López de “o Leopoldo destas regiões”, agora o denomina “o Átila da América”, “a última vergonha do continente”, e fala dos “paraguaios livres que gemem sob um tirano”. E, para silenciar esses gemidos, pensa em “eliminar todos os que gemem.”
Os exércitos do conflito
Cada homem do Paraguai era um soldado de sua pátria, tendo a obrigação de manter suas armas e quatro cavalos à disposição para a defesa nacional. “Os paraguaios superam os de Buenos Aires em sagacidade, atividade, estatura e proporções” (Azara – Descrição e História do Paraguai, t. I, cap. XIV, p. 363). Qualquer homem que ingressasse no exército, fosse quem fosse, começava “desde baixo”. Cada homem e cada mulher do Paraguai defendiam “o que era seu”.
O exército do Brasil era uma verdadeira calamidade: os nobres ocupavam os postos de oficialidade e levavam escravos ou libertos como soldados. Para cada branco havia quarenta e cinco negros. Que espírito de luta poderia existir em um exército assim? Que lhes importava perder a vida em uma terra estrangeira, numa guerra que não era a sua, justamente para defender aqueles que os maltratavam e escravizavam em sua própria pátria?
No exército argentino, embora em menor escala, ocorria algo semelhante. Os camponeses não desejavam ir a uma guerra contra seus irmãos paraguaios, mas sim contra os portenhos e os “macacos” brasileiros. Nem mesmo a oferta de pagamento alterou a recusa em se alistar, e a incorporação teve de ser forçada. Os chamados “voluntários”
A intriga “civilizadora”
O Paraguai era um mau exemplo que a Inglaterra não podia tolerar, e assim articula a intriga envolvendo o Brasil de Pedro II, a Confederação de Mitre e o Uruguai de Flores, para acabar com López e até mesmo com o povo paraguaio.
A Mitre não bastava levar a “Liberdade e Civilização” às províncias do interior: também a “exportaria” aos países vizinhos. Enquanto Entre Ríos se levantava contra o mitrismo, a imprensa de Buenos Aires prosseguia sua violenta campanha contra o marechal López e contra a nação paraguaia. Desde o momento em que o Paraguai declarou guerra ao Brasil, os ataques da imprensa mitrista se intensificaram. Foi uma campanha de mentiras e infâmias; “não pode haver dúvida de que esses artigos foram a principal causa da declaração de guerra da República Argentina” (Jorge Thompson).
Recolhido Urquiza ao Palácio de San José após Pavón, Mitre dedicou-se a limpar o interior dos federais. Interveio em províncias, depôs governos não alinhados, tolerou outros, como os Taboada de Santiago del Estero, e entrou a sangue e fogo em La Rioja — último reduto federal com as montoneras do Chacho — tendo como ponta de lança o terrorista Sarmiento. Em vão os federais aguardaram o pronunciamento de Urquiza, um apoio ou ao menos um sinal. Urquiza, incompreensivelmente, guardou absoluto silêncio em seu Palácio de San José e permitiu o holocausto dos gauchos federais. Nem sequer respondeu à correspondência do Chacho Peñaloza nem aos pedidos de instruções de seus subordinados, como López Jordán. Nada fez, apenas assegurou a Mitre que se manteria neutro, pois “não pertencia a nenhum partido” e se colocava acima das lutas internas, assumindo o título de “Washington da América do Sul” que o próprio Mitre lhe atribuíra.
No Uruguai, governava o Partido Blanco (federal), que convocou também os colorados para integrar o governo e pôr fim às rivalidades passadas (incentivadas pelo Império, diga-se de passagem), por meio de uma anistia. Mas essa situação não convinha a Mitre, que queria “levar a civilização” e liquidar todos os federais. Tampouco convinha ao Império, que assim veria frustrado seu antigo sonho de anexar a Cisplatina, e menos ainda à Inglaterra, verdadeira instigadora, que via ameaçado seu “livre comércio”.
Não se sabe se algum pacto secreto — talvez maçônico, já que ambos eram membros — mantinha Mitre e Urquiza sem se agredirem. O certo é que Mitre “o desejava”, mas não ousava, e Urquiza continuava jogando em duas frentes, como sempre fizera. Ofereceu amizade e pactos a López, do Paraguai, mas este desconfiou e pediu “provas”. Despeitado, Urquiza ofereceu apoio à Inglaterra na agressão ao Paraguai e buscou o respaldo do Brasil. Quando este atacou o Uruguai, não apenas se manteve neutro, como também deixou seu próprio exército “a pé”, vendendo por bom preço toda a cavalhada de suas tropas (30.000 cavalos).
Mitre escreveu a Urquiza: “Cabe-nos combater de novo sob a mesma bandeira que reuniu em Caseros a todos os argentinos” (Mitre a Urquiza. JMR t.VII.p.122). Referia-se à bandeira imperial, agradecendo-lhe por não auxiliar López nem permitir a passagem do exército paraguaio em socorro ao Uruguai agredido pelo Brasil. Àquela altura, Urquiza já havia vendido sua cavalhada aos brasileiros.
“Que esta aquisição corresponda ao desarme do adversário, pois os entrerrianos, excelentes e admiráveis cavaleiros, não passavam de pobre infantaria. Assim Urquiza foi anulado como valor combatente… Não havia nele a têmpera de um estadista; não passava de um condottiere… Permaneceu inativo, portanto. De fato, traía a todos. O Brasil cuidou de torná-lo inofensivo. Urquiza, embora imensamente rico, tinha pela fortuna um apego inmoderado; o general Osorio conhecia-lhe o ponto fraco” (J. Pandá Cológeras, Formação histórica do Brasil).
De Concepción, José Hernández declarava que “já não é hora da pena”, tentando que Urquiza, suposto federal, fizesse algo. Mas Urquiza “assistia de camarote”: já havia feito seu negócio na guerra e, agora a pé, cuidava de seus próprios interesses.
O Império começou a levantar queixas por supostas agressões de estancieiros brasileiros em território uruguaio, impondo exigências impossíveis de cumprir, para manter vivo o “motivo” da agressão. Berro, presidente uruguaio, pediu auxílio a López, a quem o Império cobiçava, mas ao mesmo tempo temia sem o apoio da Confederação e o aval da Inglaterra.
O Brasil atacou bombardeando um navio. O Uruguai protestou e comunicou a López, mas enquanto a correspondência diplomática ia e voltava a Assunção, o chanceler uruguaio, Lamas, “entregou vergonhosamente” seu governo a Mitre, de modo que, quando chegou a Buenos Aires o protesto paraguaio, Elizalde respondeu quase como quem diz: “não se meta, já resolvemos tudo”. O representante brasileiro, que duvidava do apoio de Buenos Aires e não ousava enfrentar sozinho o Paraguai, pediu audiência a Mitre. Este a concedeu às 11 da manhã, com todo o gabinete reunido — inclusive o representante inglês, que parecia fazer parte “do ministério”.
Com o aval da Inglaterra, o Brasil decidiu pela agressão aberta e abasteceu sua frota de armas e munições em Buenos Aires. Ante o protesto diplomático uruguaio, Mitre negou o óbvio, ainda que tudo se desse à plena luz do dia, no ancoradouro do porto.
A guerra estava decidida antes de 1865. Em 21 de outubro de 1864, Manuel Senén Rodríguez escreveu a Berges antecipando a guerra contra o Paraguai. Este lhe respondeu: “Não me custa acreditar na notícia que V. se serve transmitir de que o Brasil vai declarar guerra ao Paraguai, pois sempre pensamos que a absorção do Estado Oriental era apenas uma etapa de descanso para chegar ao Paraguai” (M.R.E.P/C.C.C. vol.I.p.307). Já em 1863, o padre Domingo Ereño, em carta ao político oriental Joaquín Requena García, advertia: “Buenos Aires foi e sempre será o foco dos inimigos, berço de conspirações contra essa República, contra todas as províncias e até contra o Paraguai” (Concepción del Uruguay, 25 de agosto de 1863. Efraín Cardozo, Vísperas de la guerra, Buenos Aires, 1954, Ateneo, p.163).
Primeira ação de guerra – Ano-Novo de 1865
Venancio Flores, o “degolador de Cañada de Gómez”, intimou Leandro Gómez a render-se em Paysandú antes do nascer do sol de 5 de dezembro de 1864: “Vencido o prazo fixado e procedendo-se em seguida ao ataque, Vossa Senhoria pagará com a vida as consequências e desastres que possam ocorrer”.
A esquadra imperial atacou e bombardeou Paysandú durante vários dias sem conseguir rendê-la. Ao ficar sem munições, reabasteceu-se em Buenos Aires, no parque de Mitre, e voltou a bombardear a cidade, que ainda resistia com apenas 600 homens em sua defesa, enfrentando por terra um exército de 9.000.
Esvaziada de civis, Paysandú resistiu durante vários dias com a bandeira tremulando na torre da igreja, até ser totalmente incendiada diante do olhar impotente dos argentinos na margem oposta, que nada podiam fazer diante da negativa e do silêncio cúmplice de Urquiza. (Este, que sempre jogara em dois tabuleiros, já havia vendido sua cavalaria).
A praça rendeu-se, e seu comandante, o general Leandro Gómez, já prisioneiro, foi sumariamente fuzilado. Diante da indignação unânime da imprensa — até mesmo da unitarista — o jornal La Nación Argentina (de Mitre) comentou cinicamente: “A grande questão não é saber se Leandro Gómez tem medo das balas; a grande questão é saber o que convém à liberdade e à civilização”. Mais uma vez, cometiam-se crimes em nome da “liberdade e da civilização”.
Mitre, aliado do Brasil e do governo por ele imposto, declararia guerra ao Paraguai, como de costume, com frases célebres: “Três dias nos quartéis, três semanas em campanha, três meses em Assunção”. A guerra, contudo, duraria cinco longos anos. Mitre, naturalmente, foi nomeado general de todos os exércitos. Não venceu sequer uma batalha, sendo substituído pelos brasileiros. Tratou-se de uma guerra injusta, verdadeiro genocídio contra o povo paraguaio, cuja população masculina com mais de dez anos foi reduzida em 99,60%. E tudo isso em nome da “civilização e da liberdade”.
Em 1º de maio de 1865, Mitre, em mensagem ao Congresso, declarou: “Esta data ficará consignada à altura de maio: 1865; início da política expansionista do pensamento argentino. (…) A República ingressa na tarefa de estabelecer as afinidades da civilização nas regiões bárbaras da América do Sul”.
Os soldados “voluntários” do interior
O campesinato das províncias, que tantas vezes participara voluntariamente das lutas apenas pela convocação dos caudilhos, recusou-se a engajar-se numa guerra que não sentia como sua. Considerando-se mais próximos da província irmã do Paraguai do que dos porteños e dos “macacos” brasileiros, negavam-se a alistar-se, o que provocou deserções e levantes em muitos batalhões do interior. Nos arquivos históricos consta até mesmo a fatura de um ferreiro de Catamarca “por duzentos grilhões para os voluntários da guerra do Paraguai”.
“…o recrutamento dos contingentes não foi fácil. (…) Para cumprir as cotas provinciais, autorizou-se o alistamento mediante pagamento, mas poucos aderiram. Então, os governadores — todos mitristas — e os comandantes de fronteira passaram a caçar ‘voluntários’. Emilio Mitre, encarregado do contingente de Córdoba, escreveu em 12 de julho que enviava os ‘voluntários amarrados, cotovelo com cotovelo’; Julio Campos, porteño imposto como governador de La Rioja, informava em 12 de maio: ‘É muito difícil tirar os homens da província em contingentes para o litoral… à simples notícia de que seriam levados, refugiaram-se na serra’.” Os “voluntários” de Córdoba e Salta rebelaram-se em Rosário tão logo lhes retiraram as correntes; o governador Maubecín, de Catamarca, chegou a encomendar duzentos pares de grilhões para o contingente provincial. (Revista da Biblioteca Nacional, XXI, nº 52).
Cobardia? Eram criollos que haviam lutado em Cepeda e Pavón, e sob as ordens de Chacho Peñaloza. Não desertavam — como alguns insinuaram — e o demonstrariam em 1867 ao levantar-se com Felipe Varela e Juan Saa. Simplesmente não queriam ir “àquela guerra”. (J. M. Rosa, Historia Argentina, t. VII, p. 140).
Felipe Varela, em manifesto proclamado em 1º de janeiro de 1868, afirmou: “Com efeito, a guerra contra o Paraguai era um acontecimento já calculado, premeditado pelo general Mitre”.
Urquiza também enfrentava dificuldades para reunir contingentes e, apesar de lhes dizer que a guerra era “contra os porteños”, as divisões de Victoria e Gualeguay recusaram-se a marchar. López Jordán escreveu a Urquiza: “O senhor nos chama para combater o Paraguai. Nunca, general; esse é nosso amigo. Chame-nos para lutar contra os porteños e os brasileiros; estaremos prontos, esses são nossos inimigos. Ainda ouvimos os canhões de Paysandú”.
Muitos se opuseram a essa guerra infame, entre eles o autor do Martín Fierro, José Hernández, e Juan Bautista Alberdi. Enquanto isso, “voluntários” rebelavam-se em Entre Ríos, Corrientes, Catamarca, San Juan e quase todas as províncias do interior, com levantes de batalhões inteiros, entre os quais o célebre “desbande de Basualdo”.
Juan Bautista Alberdi manteve com Mitre uma dura polêmica pública em que, entre outras coisas, lançou-lhe em rosto a seguinte frase: “Se ao menos eu tivesse tomado uma escarapela, uma espada, uma bandeira de outro país, para fazer oposição ao governo do meu, como em Monte Caseros fez outro argentino contra Buenos Aires, com a escarapela oriental, como oficial oriental, sob a bandeira oriental e aliado aos soldados do Brasil…”. Em seguida, criticando a política mitrista, acrescentava:
“Para governar a República Argentina vencida, submissa, inimiga, a aliança com o Brasil era parte essencial da organização Mitre-Sarmiento; para dar a essa aliança de governo interno um pretexto internacional, a guerra contra o Estado Oriental e contra o Paraguai tornava-se uma necessidade da política interna; para justificar a guerra contra o melhor governo que já tivera o Paraguai, era necessário considerar abomináveis e monstruosos esses dois governos; e López e Berro foram vítimas da lógica criminosa de seus adversários”. (Juan Bautista Alberdi)
“Em nome da liberdade, e com a pretensão de servi-la, nossos liberais, Mitre, Sarmiento e Cia., estabeleceram um despotismo turco na história, na política abstrata, na lenda, na biografia dos argentinos. Sobre a Revolução de Maio, sobre a Guerra da Independência, sobre suas batalhas, sobre suas guerras, eles têm um Alcorão, que é lei aceitar, crer e professar, sob pena de excomunhão pelo crime de barbárie e caudilhismo”. (Juan Bautista Alberdi, Escritos póstumos. Ensayos sobre la sociedad, los hombres y las cosas de Sudamérica. Buenos Aires, 1899).
Recurreu-se inclusive ao recrutamento de mercenários europeus mediante engano e falsas promessas de terras para se estabelecerem como camponeses. Segundo o testemunho de um integrante de um contingente suíço, foram embarcados de forma fraudulenta, tendo seus documentos confiscados. Ao chegarem a Buenos Aires, eram levados à força para a frente de batalha ou lançados na prisão. (Declaração de um “recrutado suíço”, citada por Chiavanetto: O genocídio americano. A guerra do Paraguai).
28 de outubro de 1865 – Motim de recrutas em Catamarca
A tarefa que o governador de Catamarca, Victor Maubecín, desempenhou com maior empenho durante seu governo foi a formação do contingente com o qual a província deveria contribuir para o Exército em campanha contra o Paraguai. Tratava-se de uma guerra profundamente impopular: a da Tríplice Aliança.
Tradições e documentos registram a resistência que parte de nosso povo demonstrou diante da recruta imposta pelo Governo Nacional. Algo dizia ao sentimento dos nossos compatriotas que aquela contenda não acrescentaria glória alguma aos lauréis da pátria e que não havia motivo para lutar contra um povo mais digno de simpatia do que de rancor.
Em Entre Ríos, os gaúchos de Urquiza desertaram em massa, ainda que, em outras ocasiões, houvessem sido leais ao seu caudilho até a morte.
Na província de La Rioja, o contingente de 350 homens foi recrutado entre pessoas das camadas mais baixas da sociedade. Um testemunho autorizado, o juiz nacional Filemón Posse, relatou ao Ministro da Justiça, Eduardo Costa, os procedimentos coercitivos empregados pelo governo local, afirmando que “se colocavam guardas até mesmo às portas dos templos para prender os homens que iam à missa, sem verificar se estavam isentos pela lei”.
O método de recrutamento, somado ao tratamento severo infligido aos chamados “voluntários” durante os três meses de instrução militar, foi causa de diversas sublevações. O mesmo testemunho descrevia o estado de nudez em que se encontrava a tropa, o que despertava compaixão dos moradores quando os soldados saíam à praça para receber instrução. “Mais parecem mendigos do que soldados que vão combater pela honra do povo argentino”, observava, acrescentando que tal situação levou à intervenção caritativa da Sociedade São Vicente de Paulo, que lhes forneceu roupas e alimentos. O juiz acusava ainda o governador Maubecín de interpretar de maneira errônea o estado de sítio, ao exigir da população recursos pecuniários e contribuições forçadas para custear as despesas da mobilização.
A situação agravava-se pelo trato duro e desumano dado aos recrutas. José Aguayo, um dos oficiais instrutores, ordenou certa vez, por iniciativa própria, a aplicação da pena de açoites contra vários soldados, esquecendo — ou ignorando — que a Constituição Nacional proibia expressamente castigos corporais.
Esse episódio motivou um processo criminal contra o oficial, quando os ofendidos denunciaram o abuso ao Juizado Federal. O magistrado sentenciou condenando Aguayo à inabilitação por dez anos para exercer cargos públicos e ao pagamento das custas do processo. A decisão desagradou ao governador Maubecín, que negou a jurisdição do juiz sobre os castigos aplicados no quartel “em consequência de uma sublevação”. O governador qualificou de “estranha” a intervenção de Filemón Posse e afirmou que tal ingerência representava “uma forma de apoio aos opositores sublevados”. O conflito entre juiz e governador originou um litígio que se estendeu até o Ministério da Justiça e resultou em uma ruidosa interpelação ao ministro Eduardo Costa por parte do senador catamarquenho Ángel Aurelio Navarro.
Os “voluntários” se sublevam
O mês de outubro de 1865 chegava ao fim. Faltavam poucos dias para a partida rumo a Rosário do batalhão Libertad, quando um incidente veio abalar a população. A tropa de “voluntários”, cansada de privações e castigos, amotinou-se com o propósito de desertar. Não é temerário supor que, para tomar tal decisão, tenha pesado um natural sentimento de rebeldia diante da imposição de abandonar a terra natal, que muitos certamente jamais voltariam a ver.
Os principais protagonistas da revolta foram pouco mais de vinte recrutas, mas a tentativa foi prontamente sufocada graças à enérgica intervenção dos chefes e oficiais da força de custódia.
Imediatamente, por determinação do próprio governador, chefe das forças mobilizadas, instaurou-se um conselho de guerra para julgar os culpados. O tribunal foi composto por diversos oficiais de baixa patente, e a função de fiscal foi confiada justamente ao tenente José Aguayo, aquele mesmo que respondia a processo criminal perante o Juizado Federal por haver aplicado açoites a outros soldados.
Agindo de forma sumária, o conselho produziu uma sentença severa e insólita nos anais da jurisprudência argentina. Os acusados foram declarados culpados do delito de “motim e deserção”. Três deles, considerados líderes da revolta, foram condenados à pena de morte, embora submetida a sorteio: apenas um seria executado, enquanto os outros dois cumpririam quatro anos de serviço nas tropas de linha. Os demais acusados, dezoito ao todo, receberam penas menores, que variavam entre três anos de serviço militar e a prisão até a partida do contingente.
A morte em um lance de dados
A sentença foi comunicada a Maubecín, que no mesmo dia, 28 de outubro, registrou o “cúmplase en todas sus partes” e fixou para a manhã seguinte, às oito horas, a execução. Uma ata preservada no Arquivo Histórico de Catamarca esclarece as circunstâncias que envolveram o acontecimento.
Na hora marcada compareceram à prisão o escrivão e as testemunhas. O primeiro ordenou que os réus Juan M. Lazarte, Pedro Arcadé e Javier Carrizo se ajoelhassem para ouvir a leitura da sentença. Em seguida, comunicou-se que “iriam sortear a vida” e, para dar cumprimento a esse macabro desígnio, pediu-se que acordassem entre si a ordem dos lançamentos e se a execução recairia sobre aquele que obtivesse maior ou menor número de pontos. Decidiu-se, então, que Javier Carrizo seria o primeiro a lançar os dados e que a pena de morte caberia a quem obtivesse a menor soma.
Definido o procedimento, vendaram-se os olhos dos condenados e trouxe-se uma “caixa de guerra bem esticada”, destinada a servir de improvisado tapete. Concluídas as formalidades, Javier Carrizo recebeu um par de dados e um copo.
Não é difícil imaginar a expectativa dramática desse instante, o silêncio tenso que precedia a decisão. A morte rondava incerta e sombria, como a fortuna, sobre a cabeça daqueles três homens. É provável que tenham dirigido a Deus uma silenciosa súplica para que lhes afastasse aquele cálice de amargura.
Carrizo colocou os dados no copo, agitou o braço e os lançou sobre o couro da caixa… Quatro! Chegava a vez de Lazarte repetir o gesto do companheiro de infortúnio. Lançou… Sete! Todos os olhares voltaram-se então para o terceiro. Pedro Arcadé sacudiu o copo e lançou… Cinco! A sorte assinalava Javier Carrizo com o sinal trágico.
A ata registra que foi chamado um sacerdote para que o condenado pudesse preparar cristãmente sua alma. Desenganado pelos homens, restavam-lhe apenas o consolo e a esperança da fé. O povo catamarquenho, tantas vezes sacudido por cruéis episódios das lutas civis, jamais havia assistido a um fuzilamento precedido de circunstâncias tão insólitas.
Cumpre acrescentar que a execução de Javier Carrizo atingiu o objetivo de servir de escarmento. Ao que se sabe, não houve posteriormente nova sublevação no batalhão de “voluntários” Libertad. Conduzido pelo próprio Maubecín até o porto de Rosário, o corpo de tropa chegou ao destino e combateu no front paraguaio com provas de heroísmo. Participaram das batalhas mais duras e sangrentas: Paso de la Patria, Tuiuti, Curupaiti e outras. Dos 350 soldados que partiram do Vale em 6 de novembro de 1865, apenas 115 regressaram cinco anos depois. Os demais tombaram nos pântanos paraguaios.
No Arquivo Histórico da Nação conserva-se ainda a fatura de um ferreiro de Catamarca: “Por duzentos grilhões para os voluntários da guerra do Paraguai”.
Fonte:
Armando Raúl Bazán – La Pena de Muerte por Sorteo en
Catamarca
Antook – Reclutamiento en Catamarca (2007)
Todo es Historia, Ano 1, nº 1, maio de 1967
A Batalha de Pehuajó (30-01-1866) – Imperícia ou
traição?
(Mitre encontrava-se distanciado e ressentido de Conesa desde
Cepeda.)
No dia 30 de janeiro de 1866 travou-se um curioso combate no paraje Corrales, ou Pehuajó. Um destacamento de 450 paraguaios havia desembarcado, e Mitre ordenou que fosse desalojado pela Divisão Buenos Aires de guardas nacionais de infantaria, comandada por Conesa. A divisão dispunha de 1.700 homens, mas seu armamento era precário, e os soldados, em sua maioria, eram gaúchos recrutados na campanha, “que teriam sido excelentes cavaleiros, mas era muito custoso transformá-los em infantes” (Carlos D’Amico, Buenos Aires, sus hombres, su naturaleza, sus costumbres, México, 1890 – apud J. M. Rosa, t. VII, p. 152).
Por ordem de Mitre, Conesa atacou de frente os paraguaios entrincheirados em um matagal. O resultado foi uma carnificina de gaúchos, sem que Mitre – acampado a curta distância – tivesse a iniciativa de reforçar seu subordinado, com quem mantinha desavenças desde Cepeda.
“Tão desigual foi o embate – comenta D’Amico, que dele participou – que a divisão teve 75% de baixas, quando, com as armas então usadas, a regra era de 8 a 10% mesmo nos combates mais sangrentos. Tão grave foi a mortandade que sargentos tiveram de assumir o posto de oficiais, já que a maioria destes estava fora de combate.”
Em contraste com as perdas paraguaias, as baixas argentinas foram enormes. Mas, como sempre, Mitre encontrou culpados para o desastre, lançando a responsabilidade sobre mortos e sobreviventes. Em seu relatório, depois de felicitar os que haviam sido enviados ao matadouro, recomendava-lhes que “nos próximos combates sejam menos pródigos de seu ardor generoso e de seu valor fogoso”, como se o desastre se explicasse pelo excesso de coragem da tropa.
Diante disso, reflete D’Amico: “Como se topar inesperadamente com o inimigo em posição fortificada fosse prodigalidade em valor; ou ver-se obrigado a lutar todo um dia sem receber reforços porque o general em chefe não os enviava fosse excesso de ardor. Que queria que fizessem aqueles pobres soldados lançados ao sacrifício? Que fugissem para cobrir-se de vergonha? Que traíssem a bandeira que lhes fora confiada?”
Segundo J. M. Rosa (Guerra del Paraguay, p. 242), “Pehuajó foi um crime”. Poucos acreditaram na imperícia de Mitre ao ordenar o ataque contra posição fortificada sem reforço; muitos viam ali um propósito deliberado de aniquilar os gaúchos da divisão, seus oficiais – entre eles Dardo Rocha, salvo milagrosamente – e o próprio coronel Conesa, inimigo de Mitre desde que, em Cepeda, o desobedecera para salvar o exército portenho, quando Mitre ainda não havia reconhecido a derrota. “A imprensa de Buenos Aires disse então – continua D’Amico – que Mitre quisera livrar-se de numerosos e influentes adversários políticos enviando aquela divisão a tão perigosa ação em vez de uma divisão de linha, e mantendo-se em inexplicável inação durante todo o dia, apesar do intenso fogo ouvido no acampamento” (Carlos D’Amico, op. cit., apud J. M. Rosa, t. VII, p. 152).
Sendo Mitre o comandante, ambas as hipóteses permanecem possíveis: imperícia ou traição.
Em carta a sua esposa, datada de 3 de março, Venancio Flores comenta: “Não sei o que será de nós… perder quase totalmente a Divisão Oriental, e se à crítica situação em que estamos se acrescenta a constante apatia do general Mitre, pode muito bem acontecer que, indo por lã, saiamos tosquiados.”
O duque de Caxias conhecia Mitre, e escrevia ao seu governo relatando sua opinião. Suas cartas foram publicadas em 1902. Numa, datada de 20 de setembro de 1867, pedia ser relevado do comando para não ter de cumprir ordens extravagantes, indagando: “Mas que faço eu aqui, submetido às ordens de um homem que tudo pode ser, menos general?”… Em outra posterior acrescentava: “Estou cada vez mais convencido de que Mitre não deseja terminar a guerra… Creio que pode ser tudo, menos general.”
Mitre, mais hábil com a pena do que com a espada, respondeu indignado nas páginas de La Nación: “Quem jamais teve iniciativa, nem sequer a ideia de um plano de operações, nunca teria imaginado falsificar a história… Se a alguém cabe essa acusação, é a ele mesmo (Caxias), ao negar o título de general a quem lhe dava lições militares.”
Os prisioneiros: “Civilização e barbárie”
Os aliados incorporavam os prisioneiros em suas próprias fileiras, forçando-os a lutar contra a pátria e contra os próprios irmãos; se tentassem escapar, eram fuzilados como desertores. Palleja relata esses fuzilamentos constantes. Em Recuerdos de la campaña del Paraguay, J. Garmentdia observa: “Há algo de bárbaro e deprimente nesse ato inaudito de obrigar alguém a atirar contra a sua bandeira”. E Carlos María Ramírez, em Montevidéu, acrescentava: “Os prisioneiros de guerra foram repartidos entre os corpos de linha, sob a bandeira e com o uniforme dos aliados, compelidos a voltar suas armas contra os defensores de sua pátria. Jamais o século XIX presenciou ultraje maior ao direito das gentes, à humanidade, à civilização!” (JMR, t. VII, p. 149).
“Durante a rendição de Humaitá ocorreu algo notável: um dos que se rendiam abandonou de imediato seus companheiros, precipitou-se como louco sobre um dos nossos, abraçou-o e não quis soltar-se dele; era um sargento de artilharia da fortaleza. Aconteceu que esse sargento era uma sargenta, disfarçada em uniforme de artilheiro, que havia participado do cerco da fortaleza de Humaitá. Nosso companheiro, um paraguaio, era seu marido, que lutava como prisioneiro…” (Lopracher, citado em Genocídio Americano – A guerra do Paraguai, p. 150, Julio José Chiavenatto, São Paulo).
Também foi generalizado o roubo de prisioneiros pelos aliados para serem vendidos e usados como escravos. Nenhum oficial deixou de levar consigo alguns “paraguaiozinhos” como butim. Em carta a Marcos Paz, Mitre confessa: “Nosso lote de prisioneiros em Uruguaiana foi de pouco mais de 1.400. Estranhará o senhor o número, que deveria ser maior; mas por parte da cavalaria brasileira houve tal roubo de prisioneiros que ao menos arrebataram 800 ou 1.000 deles; roubaram-nos para escravos, e até hoje andam roubando e comprando prisioneiros. O comandante Guimarães, chefe de uma brigada brasileira, dizia-me outro dia que, nas ruas de Uruguaiana, precisava afirmar que não era paraguaio para não ser roubado” (Carta de Mitre a Marcos Paz).
Em carta datada de 20 de novembro em Humaitá, López protesta junto a Mitre contra o tratamento dado pelos aliados aos prisioneiros paraguaios. Entre outros pontos, escreve: “É uso geral e prática entre as nações civilizadas atenuar os males da guerra mediante leis próprias, livrando-a de atos de crueldade e barbárie que, desonrando a humanidade, marcam com mancha indelével os chefes que os ordenam, protegem ou toleram. E eu esperava isso de V. Exa. e de seus aliados…”
E prossegue a carta de López:
“A estrita disciplina dos exércitos paraguaios em território argentino e nas povoações brasileiras assim o comprova… enquanto V. Exa. iniciava a guerra com excessos e atrocidades… A bárbara crueldade com que foram passados ao fio da espada os feridos no combate de Yatay… e ações ainda mais ilegais e atrozes cometidas contra os paraguaios que tiveram a desgraça de cair prisioneiros em Yatay e Uruguaiana: V. Exa. obrigou-os a empunhar as armas contra a pátria, tornando-os traidores, e aqueles que quiseram resistir a destruir sua pátria com seus braços foram imediatamente e cruelmente sacrificados. Os que caíram nessa sorte iníqua serviram para fins não menos inumanos e repugnantes, pois em sua maior parte foram levados à escravidão no Brasil; e os que menos se prestavam, pela cor branca de sua pele, para serem vendidos, foram enviados de presente, como curiosidades sujeitas à servidão. Esse desprezo, não apenas às leis da guerra, mas à própria humanidade, essa coação bárbara e infame que coloca os prisioneiros de guerra entre a morte e a traição, ou entre a morte e a escravidão, é o primeiro exemplo que conheço na história das guerras. E a V. Exa., ao imperador do Brasil e ao atual mandatário da República Oriental cabe a infâmia de produzir e executar tanto horror.”
Quem, senão Mitre, representava a barbárie?
Mitre respondeu com seu habitual cinismo, negando em público o que reconhecia em cartas privadas:
“Longe de obrigar os prisioneiros a ingressar voluntariamente nas fileiras do exército aliado, ou de tratá-los com rigor, todos eles foram tratados não apenas com humanidade, mas com benevolência, sendo muitos postos em completa liberdade.”
As mentiras e o cinismo de Mitre não têm paralelo em nossa história.
Entrevista de Yatay-Corá
López, talvez em sua ótica de patriota, julgou que poderia convencer Mitre a pôr fim à guerra e firmar a paz sobre milhares de cadáveres. Convidou-o, então, para uma entrevista em Yatayty-Corá.
Por intermédio do secretário de Mitre, José María Lafuente, sabe-se que López procurou persuadi-lo, falando-lhe da política expansionista do Brasil e ressaltando que os termos da aliança condenavam os paraguaios a lutar até o aniquilamento — esse era o verdadeiro fim do pacto. Polidoro, o representante brasileiro, afirmou: “As instruções de Sua Majestade me ordenam travar batalha com ‘esse homem’; não tenho ordens para tratar com ele, nem para estabelecer relações sociais.” Mitre, por sua vez, segundo a ata, “limitou-se a ouvir, respondendo que se remeteria ao seu governo e à decisão dos aliados, em conformidade com seus compromissos.”
Dois dias depois, Mitre escreveu a López informando que conversara com Polidoro e que “convimos em remeter tudo à decisão dos respectivos governos, sem introduzir modificação alguma na situação dos beligerantes” (cit. JMR, t. VII, p. 164). Bela maneira de “lavar as mãos”.
Isso demonstra não apenas que Mitre não tinha firmeza para tomar decisões por conta própria, mas também que respondia a outros senhores, permanecendo a mesma marionete de sempre a serviço dos brasileiros e, em última instância, dos ingleses, verdadeiros ideólogos do genocídio paraguaio.
Curupayty – A “estratégia” do massacre.
Mitre demonstraria mais uma vez sua imperícia militar. A ação de Curupaití teria sido digna de uma obra tragicômica, se não fosse o fato de ter ocorrido em uma guerra sangrenta que custou milhares de vidas.
Necessitado de um triunfo para levantar seu prestígio militar em queda — prestígio apenas literário e imaginário, na realidade — Mitre decidiu atacar Curupaití, uma simples fortificação de troncos, defendida por apenas sete regimentos de infantaria com 49 pequenos canhões e dois esquadrões de cavalaria. Em contrapartida, Mitre contava com 17 mil homens e acreditava que “literalmente” arrasaria os paraguaios, conquistando assim a vitória de que tanto necessitava.
Estudioso das “estratégias europeias”, elaborou um plano que, em sua visão, era inquestionável: ordenar um ataque frontal à baioneta com todo o exército, simular uma retirada para atrair os inimigos em perseguição e, em seguida, dar meia-volta para esmagá-los fora da fortificação. O que Mitre não considerou foi, primeiro, o terreno pantanoso, encharcado após três dias de chuvas, que separava suas tropas do inimigo; e, segundo, que os paraguaios, por instinto ou talvez pela leitura dos mesmos manuais de estratégia, não saíram em perseguição, limitando-se a observar os aliados atolados na lama. O exército de Mitre atravessou o pântano três vezes, em meio aos cadáveres de seus próprios soldados, até transformar a operação em tragédia. O saldo foi desastroso: 10 mil mortos entre argentinos e brasileiros contra apenas 92 baixas paraguaias.
“…os infantes voltaram à carga no campo enlameado, obstruído de cadáveres, extenuados pelo peso das armas. Protegidos em suas trincheiras, os paraguaios faziam estragos, e os aliados não respondiam porque não viam o inimigo.” Mitre, embriagado do mesmo otimismo doentio e heroico que já revelara em Cepeda, ordenava avançar, avançar sempre. O massacre só não prosseguiu noite adentro porque Porto Alegre, com firmeza respeitosa, impôs a retirada.
De Buenos Aires, Martín Piñeiro escreveu a Sarmiento: “Só Mitre poderia fazer perecer tantos argentinos… não se pergunta quem morreu, mas sim quem sobreviveu… causa tristeza sair à rua.”
Em Curupaití também tombou Dominguito, o filho de Sarmiento. Piñeiro lhe escreveu: “O desastre brutal revelou a incapacidade do general-em-chefe (Mitre), que, apenas por sua parte oficial, teria sido fuzilado por um conselho de guerra.”
Derrota de Tuyú-Cué ou a Segunda Tuyutí – Nem para guardar o depósito (03-11-1867)
Diante da sequência de derrotas e desastres provocados pela congênita imperícia do “general farsante”, os brasileiros exigiram seu afastamento em favor de Caxias. Firmou-se um acordo: a esquadra ficaria sob comando exclusivo do Brasil, Caxias assumiria a ofensiva, e Mitre seria relegado à reserva e aos depósitos em Tuyutí.
Assim, Mitre permaneceu em Tuyutí, encarregado da guarda do parque e da artilharia. Em 3 de novembro de 1867, mais uma vez se destacou o “colecionador de derrotas”:
“Ao amanhecer ouviram-se os primeiros tiros. A batalha foi terrível — comenta Blanco Fombona — embora os paraguaios fossem menos de um sexto do inimigo, Mitre foi derrotado. O acampamento incendiado: artilharia, munições de boca e de guerra, mulas, tendas, carros, tudo caiu em mãos paraguaias. Mitre perdeu até sua correspondência.”
O comandante argentino refugiou-se em Tuyú-Cué, onde estava Caxias com o grosso do exército. Os paraguaios, retirando-se com todo o parque capturado, deixaram Mitre livre para, como em outras ocasiões, tentar transformar a derrota em vitória. Mas já era demais. Blanco Fombona escreveu:
“Aquela derrota e aquela fuga são indefensáveis, pois, de seu imenso exército, atacado apenas por uma legião de heróis, teve Mitre duas mil baixas… Já não lhe era possível, sob nenhum ponto de vista, permanecer à frente do exército. Nada podia sustentar sua autoridade.”
Acostumado a frases altissonantes — como a dita após a fuga em Cepeda, “Aqui trago intactas vossas legiões”, ou a proferida em banquete de homenagem, ao regressar a pé desde Sierra Chica, derrotado por Calfucurá: “O deserto é inconquistável” —, também encontrou palavras para esta circunstância: “Quando nossos guerreiros regressarem de sua longa e gloriosa campanha para receber a merecida ovação que o povo lhes consagre, poderá o comércio ver inscritas em suas bandeiras as grandes doutrinas que os apóstolos do livre-câmbio proclamaram para maior glória e felicidade dos homens.”
E, em meio a aplausos, o jornal La Nación celebrava em triunfo este “apóstolo do livre-câmbio”, que não hesitou em contribuir para o genocídio de um povo irmão, apenas para inscrever em suas bandeiras os “grandes princípios do livre-câmbio”.
Lomas Valentinas. (21-12-1868)
Em Assunção, a população agonizava nas ruas. No dia 21 de dezembro, sob o comando de López, os paraguaios resistiram ao assalto dos aliados, imensamente superiores em número. O general e ministro dos Estados Unidos presenciou a batalha a partir de seu acampamento:
“Seis mil feridos, homens e crianças, chegaram a esse campo de batalha em 21 de dezembro e lutaram como nenhum outro povo jamais lutou para preservar sua pátria da invasão e da conquista… outros fugiram (em direção ao próprio exército) das pocilgas que os invasores utilizavam como prisão… o quartel paraguaio começou a encher-se de inválidos, incapazes de prosseguir na luta. Crianças de tenra idade arrastavam-se com as pernas despedaçadas por horríveis ferimentos de bala. Não choravam nem gemiam, nem pediam socorro médico. Quando sentiam o toque misericordioso da morte, deitavam-se no chão para morrer em silêncio.”
Multiplicaram-se os prodígios de coragem: Felipe Toledo, de oitenta anos, carregou dez vezes à frente da escolta presidencial até cair na décima investida; Valois Rivarola, com uma ferida recebida em Avay, abandonou o hospital, tomou o primeiro cavalo que encontrou e voltou ao combate. Uma bala lhe rompeu o crânio: sustentando com os dedos a massa encefálica que lhe escorria, disparava a carabina com a outra mão. (JMR, t. VII, p. 204)
López já “não tinha soldados, não tinha projéteis, não tinha o que comer. Apenas noventa fantasmas o rodeavam no cume da trágica colina, aguardando sua palavra para correr à morte”. Retirou-se com os sobreviventes e, no dia 27, conseguiu reunir “dois mil combatentes de inválidos e crianças, aos quais foi preciso colocar barbas postiças para disfarçar o aspecto infantil. Foram eles que, durante oito horas, contiveram o ataque de vinte e oito mil aliados. A batalha terminou quando terminou o nosso exército.” (O’Leary, cit. JMR, t. VII, p. 205)
O massacre de Acosta-Ñu
Na batalha de Acosta Ñu, em 16 de agosto de 1869, cerca de 3.500 crianças paraguaias enfrentaram 20.000 homens do exército aliado, episódio lembrado como um ato de heroísmo sem paralelo. Pela tragédia que se seguiu, o Paraguai consagra essa data como o Dia da Criança.
“As crianças de seis a oito anos, em meio ao fragor da batalha, aterrorizadas, agarravam-se às pernas dos soldados brasileiros, implorando que não as matassem. Eram degoladas no ato. Escondidas na mata próxima, as mães acompanhavam o desenrolar do combate. Muitas empunharam lanças e chegaram a comandar grupos de meninos na resistência. Ao fim de um dia de luta, os paraguaios foram derrotados.”
“O Conde d’Eu, um sádico no comando da guerra… depois da insólita batalha de Acosta Ñu, quando esta já estava encerrada, ao cair da tarde, as mães paraguaias saíam da mata para resgatar os cadáveres de seus filhos e socorrer os poucos sobreviventes. O Conde d’Eu ordenou incendiar o matagal, matando queimados os meninos e suas mães.”
“Determinou ainda cercar o hospital de Peribebuí, onde se encontravam enfermos – em sua maioria jovens e crianças – e mandou incendiá-lo. O edifício em chamas foi cercado pelas tropas brasileiras que, cumprindo as ordens daquele príncipe insensato, empurravam a ponta de baioneta para dentro do fogo os doentes que, milagrosamente, tentavam escapar das labaredas. Não se conhece, na história da América do Sul ao menos, crime de guerra mais hediondo do que este.” (da mesma fonte – Chiavenatto, A guerra do Paraguai)
Os números do genocídio
Concebida pelo Império Inglês para pôr fim ao progressista Paraguai e a todo o seu povo, e executada por seus cipayos – o Brasil de Pedro II, a Argentina de Mitre e o Uruguai de Venancio Flores – as cifras do genocídio são difíceis de assimilar:
População do Paraguai no início da guerra: 800.000 (100,00 %)
População morta durante a guerra: 606.000 (75,75 %)
População do Paraguai após a guerra: 194.000 (24,25 %)
Homens sobreviventes: 14.000 (1,75 %)
Mulheres sobreviventes: 180.000 (22,50 %)
Homens sobreviventes menores de 10 anos: 9.800 (1,22 %)
Homens sobreviventes até 20 anos: 2.100 (0,26 %)
Homens sobreviventes maiores de 20 anos: 2.100 (0,26 %)
(Fonte: Genocídio Americano, A Guerra do Paraguai, p. 150 – Julio José Chiavenatto, São Paulo)
Foi exterminado 99% da população masculina acima dos 10 anos.
“Quanto tempo, quantos homens, quantas vidas e quantos recursos precisaremos para terminar a guerra? Para reduzir a fumo e pó toda a população paraguaia, para matar até o feto no ventre da mãe.” (Caxias em informe a Pedro II)
Genocidas e traidores
Foram Sarmiento e Mitre alheios a esse genocídio? O primeiro insuflava pela imprensa, e Mitre foi partícipe e cúmplice. Quando foi afastado pelos brasileiros por sua inutilidade – não venceu uma única batalha, apesar da superioridade numérica – foi substituído pelo Duque de Caxias, que menciona Mitre em um informe ao imperador:
“O General Mitre está plenamente resignado e sem reservas às minhas ordens: faz tudo o que lhe indico, pois está de acordo comigo em tudo, inclusive em que os cadáveres coléricos sejam lançados ao Paraná, tanto da esquadra como de Itapirú, para levar o contágio às populações ribeirinhas, principalmente as de Corrientes, Entre Ríos e Santa Fé, que lhe são hostis (…) O general Mitre também está convencido de que devem ser exterminados os restos das forças argentinas que ainda lhe restam, pois só vê nelas perigo para a sua pessoa.”
“Chegamos a duvidar que exista o Paraguai. Descendentes de raças guaranis, índios selvagens e escravos que agem por instinto ou falta de razão. Neles, perpetua-se a barbárie primitiva e colonial… São cães ignorantes… Ao frenético, idiota, bruto e feroz bêbado Solano López acompanham milhares de animais que obedecem e morrem de medo. É providencial que um tirano tenha levado à morte todo esse povo guarani. Era necessário purgar a terra de toda essa excrescência humana, raça perdida cujo contágio é preciso eliminar.” (Carta de Mitre, 1872 – artigo de El Nacional, 12.12.1877)
E pensar que o covarde foi morrer no Paraguai, pedindo ser envolvido com as bandeiras do Paraguai, do Chile e da Argentina!
Mitre: farsante, traidor, mentiroso, colecionador de derrotas militares, falsificador da história, genocida. Nunca um argentino recebeu tantos elogios por tantas “felonias” quanto Mitre.
“…algum dia teremos que fazer um ato de contrição diante do mausoléu onde repousam os heróis paraguaios, por uma traição que não cometemos, mas que mancha a honra de todos os argentinos.” (Atilio García Mellid – Proceso al liberalismo argentino)
Os “Legionários da Liberdade”
Antes de iniciar-se a Guerra do Paraguai, um grupo de “liberais” autoexilou-se em Buenos Aires para pedir ao governo “liberal” de Mitre e ao “monárquico” Brasil que “libertassem” sua pátria do “tirano”. Eram cerca de quarenta paraguaios que formaram uma comissão de “Legionários da Liberdade”, escrevendo diatribes na imprensa liberal sarmientina (El Nacional) e na liberal mitrista (La Nación).
Esses “legionários da liberdade” redigiram um Memorial dirigido ao imperador do Brasil, Pedro II, que dizia textualmente:
“Todos, Senhor, conhecem bem que a guerra que o Brasil vai sustentar em território paraguaio é justa e santa… uma cruzada de civilização, de liberdade política, de navegação, de indústria, de comércio, enfim, de completa regeneração… todos percebem que, depois da vitória brasileira, é que aquela terra desgraçada será livre, independente, senhora de seus destinos e de seus direitos…” (Memorial, Rio de Janeiro, 10 de abril de 1865)
Aqueles legionários, que acreditavam que a guerra duraria apenas três meses, como prognosticara Mitre, chegaram a decidir quem seria o novo presidente do Paraguai “livre do tirano”.
Formaram uma pequena legião, com bandeira paraguaia, que se incorporou à retaguarda de Mitre como propagandistas, espiões, guias e comerciantes oportunistas, mas não participaram de nenhuma ação militar por muito tempo.
Esses “legionários”, que há cinco anos arrastavam-se na retaguarda dos acampamentos, viram-se obrigados a demonstrar a “fúria sagrada de liberdade” que os animava; a oportunidade surgiu em um encontro com uma tropa de carretas em Campo Pedrozo, já quase finalizada a guerra e o genocídio do povo paraguaio.
Para evitar suspeitas, transcreve-se diretamente o informe transmitido pelo coronel argentino Donato Álvarez ao general Emilio Mitre (irmão de Bartolomé Mitre):
“Ordenei o retorno do Esquadrão Paraguaio (os “legionários liberais”) para colocarem-se à disposição de Vossa Excelência, pois o ardor da luta que essa gente demonstra ao encontrar seus compatriotas os leva a cometer excessos de mortandade e pilhagem, comprometendo a disciplina das demais tropas e a rapidez dos movimentos da vanguarda. Na recente ação, apesar das ordens peremptórias que expedi, não foi possível evitar que saqueassem as 17 carretas que o inimigo possuía, degolando os carreteiros que tentavam conduzi-las para fora do combate.” (Publicação oficial do Exército Argentino, ano 1970)
Bela forma de levar liberdade e civilização a seus compatriotas paraguaios!
Terminada a guerra, os aliados impuseram ao Paraguai um triunvirato “que, a juízo dos plenipotenciários aliados, poderia ser o mais dócil às suas pretensões e digno de confiança” (Justo Pastor Benítez).
Os negócios da guerra
Se a guerra foi uma calamidade econômica para o Paraguai e para os Aliados, muitos lucraram com ela — sobretudo argentinos, brasileiros e, naturalmente, a Inglaterra.
Urquiza vendeu a bom preço trinta mil cavalos ao exército brasileiro e tornou-se fornecedor militar. (Ver Urquiza e La defección de Urquiza). Mas não foi o único.
“Lanús, sócio do Presidente Mitre, é o fornecedor geral do exército.” (Natalicio Talavera, Crónica de la guerra, Campamento de Paso Pacú, 27-10-1866. El Semanario n° 653. AGM, t.II, p.281)
A firma Lanús Hnos., administrada por Anacarsis Lanús, foi uma das que levantaram fortunas fabulosas com a guerra, sob a proteção de Mitre.
Carlos D’Amico, governador de Buenos Aires, publicou em 1890, no México, um livro denunciando que durante a administração Mitre “seus empregados levaram o abuso até a mais escandalosa exageração… roubavam até as caixas de cirurgia do exército”. Ainda que supusesse que Mitre “não participava de modo algum daquela rapina”, admitiu que a moral “começou a cair quando os fornecedores, cujas fortunas insolentes haviam sido feitas à sombra de Mitre, lhe presentearam a casa onde hoje se encontra a opulenta tipografia de La Nación”.
A “doação” foi formalizada por escritura em 23 de janeiro de 1869, diante do tabelião José Victoriano Cabral. Em representação dos “doadores” atuaram o Dr. Ángel María Méndez, Juan José Méndez e Mauricio Pennano, que alegaram como motivo do “homenagem” o fato de a atuação de Mitre no governo ter permitido “aos homens industriosos dar impulso a seus trabalhos e alento a suas operações”.
O “presente” não se demorou: a escritura foi feita apenas três meses após Mitre deixar o governo.
Seu sucessor, Sarmiento, escreveu em carta privada a seu correspondente no Chile, Mariano E. de Sarratea:
“…sua casa foi negociada por agentes e obtida mediante a subscrição dos fornecedores que, com o desperdício das rendas, ganharam milhões, como Lezica, Lanús, Galván, que afinal custearam quase em sua totalidade…” e acrescentava: “Mitre sabe que, com um pouco de insistência e manhas conhecidas, com muitos homens que lhe devem ou a impunidade ou a fortuna mal adquirida, tudo pode ser conseguido…” (Sarmiento a Sarratea, Buenos Aires, 17 de março de 1869. Arquivo da família Sarratea Prats. Félix Nieto del Río, Como recordaba Sarmiento a Chile, El Mercurio, edição especial do centenário, Valparaíso, 12 de setembro de 1927. AGM, t.II, p.283)
Os brasileiros acusavam os argentinos de prolongarem a guerra para continuar seus “negócios”.
Durante a interpelação ao governo na Câmara de Deputados da Argentina, em 1868, o deputado José Mármol declarou: “Desde o início da guerra, uma má inteligência ou uma fraqueza de nosso governo fez com que o tratado da Tríplice Aliança não fosse cumprido e, por isso, a guerra não se concluísse. Há uma política e uma vontade decidida pela prolongação da guerra.” (Sessão de 1° de junho de 1868)
O Dr. Teodosio González foi ainda mais claro: “Levantaram-se durante a contenda as grandes fortunas argentinas… vendendo ao aprovisionamento brasileiro suas vacas, cavalos, ovelhas e farinha, por cinco vezes seu valor…” (Teodosio González, Infortunios del Paraguay, p.30. AGM, t.II, p.284)
Após os exércitos chegaram ao Paraguai diversos “comerciantes oportunistas” (para usar uma expressão suave), entre eles o ex-ministro das Relações Exteriores de Mitre e um dos artífices do Tratado da Tríplice Aliança: Rufino de Elizalde. Já não ocupava cargo durante o governo Sarmiento, e a razão de sua viagem a Assunção fica clara em sua correspondência a Mitre, publicada no Archivo del General Mitre (tomo V):
“Tratei de meus assuntos e espero conseguir algo importante”, escrevia em 7 de março ao ex-chefe dos exércitos aliados; “Está acertado o principal dos negócios que vim tratar”, informava em 11 de março; e no dia 16 acrescentava: “Ainda não resolvi meus outros negócios”. Em cartas de 24 e 31 de março reiterava: “Meus negócios vão muito bem”. (Elizalde a Mitre. Archivo Mitre, t.V, p.213-27. AGM, t.II, p.285)
O escândalo dos negócios começou a ganhar repercussão e foi muito comentado em Buenos Aires. O jornal La Época, órgão do partido radical de Hipólito Yrigoyen, afirmava:
“Durante a guerra do Paraguai, nossos soldados morriam de fome nos esteros, enquanto fornecedores afortunados, gente de altas influências, amontoavam milhões. Aqueles abusos chegaram a tão escandaloso grau que um enérgico movimento de opinião exigiu a investigação das turvas aprovisionadorias. Mas um providencial incêndio consumiu os arquivos de contas da guerra do Paraguai. As chamas cancelaram toda dívida e apagaram os restos de todo delito. O incêndio salvou muitos nomes e muitas reputações, purificando muitas biografias.”
Ao mesmo tempo em que a opinião pública condenava as “turvas proveedurías”, em Buenos Aires constituía-se uma Sociedade Anônima, integrada pelo general Mitre, Anacarsis Lanús, Cándido Galván, Ambrosio Lezica, Rufino de Elizalde e outros, dedicada à atividade jornalística.
A sociedade assumiu o jornal La Nación Argentina, fundado em 17 de setembro de 1862 por José María Gutiérrez (ex-secretário de Mitre), para preparar a opinião pública para a guerra do Paraguai. A nova sociedade suprimiu a palavra “Argentina”, restando apenas La Nación. No editorial de estreia, o próprio Mitre explicava a mudança:
“O nome deste diário é substituição do que o precedeu: ‘La Nación’ substituindo ‘La Nación Argentina’ basta para marcar uma transição, encerrar uma época e assinalar os novos horizontes do futuro. ‘La Nación Argentina’ era um posto de combate; ‘La Nación’ será uma tribuna de doutrina…” (La Nación, Ano 1, n°1, Buenos Aires, 4 de janeiro de 1879. AGM, t.II, p.286)
Com essa mudança, e com a queima dos arquivos, nada restava a esconder.
Os “transparentes” empréstimos ao Paraguai
Encerrada a guerra e instalado o governo “liberal” em 15 de agosto de 1869, foram tomadas algumas medidas de ordem econômica destinadas a satisfazer as exigências da chamada “livre empresa”, naturalmente estrangeira.
Por decreto de 20 de dezembro, o governo comissionou Díaz de Bedoya para negociar em Buenos Aires um empréstimo de dois milhões de pesos, oferecendo como garantia os imóveis urbanos, edifícios públicos da cidade de Assunção e a estrada de ferro – construída pelos próprios paraguaios – com todos os seus bens e utilidades.
Buenos Aires, porém, não tinha condições de conceder o empréstimo, pois a própria oligarquia portenha sobrevivia graças ao oxigênio que vinha de Londres. A guerra promovida por Mitre havia obrigado a Argentina a endividar-se em cifras desproporcionais junto ao Brasil e aos banqueiros londrinos (39.741.000 pesos fortes). Assim, prestando um “favor” a seus “irmãos liberais”, indicaram a Bedoya o caminho de Londres, que eles já haviam trilhado.
A missão de Bedoya em Buenos Aires fracassou “parcialmente”, já que o mesmo decreto autorizava a venda de “toda a prataria destinada ao culto”, preservada por Solano López até a queda de Peribebuy. A prata paraguaia foi leiloada com sucesso em Buenos Aires, no salão de Mariano Billinghurst, na rua San Martín. O produto das vendas foi recebido pelo comissionado, que se viu obrigado a embarcar para a Europa sem tempo hábil para remeter ao Paraguai as quantias arrecadadas.
Quanto ao empréstimo, o governo paraguaio nomeou Mariano Terrero, ligado à firma Robinson, Fleming & Co., de Londres, para contratar um empréstimo de um milhão de libras esterlinas. O contrato foi assinado em setembro de 1872, mas as libras não chegaram a Assunção. Para “acelerar o trâmite”, uma lei de 2 de outubro do mesmo ano autorizou um novo empréstimo de dois milhões. Porém, uma lei complementar estabelecia que o Poder Executivo “não poderia utilizar os fundos sem a anuência do Poder Legislativo”. O governo vetou a disposição, alegando “a veemente suspeita que o Legislativo demonstra em relação à honestidade do Poder Executivo”. (Pelo visto, adivinhavam a sorte entre ciganos).
Após várias gestões e incidentes, Terrero foi substituído pelo financista inglês doutor León Levy, que exigiu da firma Robinson, Fleming & Co. a prestação de contas. A firma apresentou uma liquidação de 562.200 libras, das quais, descontados 40.875 aplicados em um projeto de imigração (42.000), além de gastos, comissões, agentes e salários, restava apenas um saldo de 243.739 libras.
A primeira remessa de 125.000 libras chegou a Assunção em 17 de junho de 1873. Como o país se encontrava em estado de sítio (revolução do general Caballero), o Ministério da Fazenda mandou transportar as libras “durante a noite” para as residências particulares do presidente Jovellanos e dos ministros Ferreira e Soteras. O Tesouro não recebeu uma libra sequer.
O jornal Los Debates denunciou o desaparecimento da Memória do Ministério da Fazenda de 1872, que tratava dos empréstimos. Uma comissão bicameral investigou o caso: não havia desaparecido apenas a de 1872, mas todas as anteriores a 1875 (relatório de 8 de abril de 1877 – AGM, t. II, p. 443).
As penúrias econômicas do Paraguai impediram o cumprimento dos pagamentos. Em 1885, José Segundo Decoud foi encarregado de renegociar a dívida e, em 4 de dezembro, assinou um convênio com os detentores dos títulos: reconhecia uma dívida de 1.602.000 libras esterlinas, acrescida de 1.500.400 por juros em atraso, totalizando 3.102.400 libras. Parte dessa dívida foi compensada mediante a entrega de terras públicas.
Novos ajustes ocorreram em 1895 e 1924, e em 1º de janeiro de 1927 realizou-se um balanço: o custo total chegava a 3.222.029 libras esterlinas, enquanto a receita efetiva para os cofres paraguaios fora de apenas 430.000.
Juan Bautista Alberdi observou que “os empréstimos paraguaios tiveram inspirações estrangeiras ao Paraguai”. Ele identificava nesses episódios um claro processo de vassalagem e extorsão financeira contra o país, definindo os empréstimos como “um embuste que, por sua origem e inspiração, não foi paraguaio, mas exótico, surgido de fora por gente há muito afiliada à obra de destruir o Paraguai, no interesse de um poder que aspirava absorver tudo depois de devastado”. E afirmava com razão:
“López não deixou dívida externa paraguaia. A tirania não pensava como o liberalismo de seus adversários, que provaram seu ‘patriotismo’ endividando seu país em milhões que seu escasso tesouro não podia pagar. Feitos após a guerra e como consequência dela, poder-se-ia dizer que esses empréstimos foram a continuação da campanha contra o país, coincidindo seus efeitos e condições desastrosas com o papel de seus inspiradores durante a célebre contenda.” (J. B. Alberdi, cit. AGM, t. II, p. 444)
A chegada da “civilização”
Como todos sabemos, a Guerra da Tríplice Aliança foi conduzida pelos liberais em nome da “liberdade, da civilização e do progresso”.
Antes da guerra, o Paraguai possuía 435 escolas. O ensino primário era gratuito e obrigatório, e o analfabetismo não existia. O povo paraguaio era o mais avançado da América. Cada família possuía sua terra, cultivava por conta própria e tinha alimentação farta.
Um século mais tarde, o escritor liberal Gregorio Benítez, em Formación social del pueblo paraguayo, reconheceria: “O liberalismo levou a guerra ao Paraguai para lhe dar progresso e satisfazer todas as suas necessidades, mas, em matéria tão essencial como a alimentação, não conseguiu restabelecer o nível de vida de que antes desfrutava.”
O mesmo ocorreu com a educação. As escolas do regime de López (435) foram arrasadas durante a guerra e jamais reconstruídas. O próprio Decoud, que fez parte do governo títere liberal, admitia em 1877: “Não se fundou uma só escola no interior, nem nenhum instituto de educação, exceto o colégio que hoje se projeta fundar na capital para educar apenas cinquenta internos gratuitamente. Em contrapartida, há cerca de cem mil crianças na República que vegetam na mais espantosa ignorância.” (Decoud. Cuestiones políticas y económicas)
Também o general argentino Lucio V. Mansilla, adepto dos ideais liberais, testemunhou: “É fato comprovado que no Paraguai, durante e depois do governo do doutor Francia, era raro encontrar quem não soubesse ler e escrever. Em toda vila ou aldeia, os três edifícios que primeiro se construíam pelo Estado, situados diante da praça, eram a igreja, o quartel e a escola.” (Mansilla, Entre-Nos, t.II, p.3, nota de rodapé)
A essas confissões de liberais soma-se o depoimento de um “representante do povo bárbaro do Paraguai”, o tenente Manuel Frutos, um dos poucos sobreviventes daquele genocídio, que em 1914 evocava a guerra nestes termos: “Fomos muito ricos, senhor; nadávamos em abundância, éramos felizes. Minha terra natal, Tbytimí, hoje pobre povoado, tinha então vinte e quatro escolas, e hoje conta apenas com uma. Com isso lhe digo tudo… Não havia cidadão sem sua casa, seus instrumentos de lavoura e vastas plantações. Não conhecíamos a fome. Éramos um povo bem alimentado, sadio e forte. Éramos alegres e felizes… apesar do que chamam nossa tirania, um governo patriarcal exercido por verdadeiros patriotas, que só desejavam a prosperidade do país… Mas veio a guerra e tudo perdemos. Lutamos desesperadamente, porque todos tínhamos algo a perder e porque amávamos nossa terra com loucura…”
Vencedores e vencidos
A mentalidade febril e enferma de Mitre o levou a proclamar: “Nem vencedores nem vencidos”. Mas era evidente que houve: os vencidos foram Paraguai, Argentina, Brasil e Uruguai; e os vencedores, a Inglaterra.
O Paraguai salvou sua honra e glória, mas sofreu o genocídio de 50% de sua população total e a morte de 99,4% de seus homens maiores de 10 anos. Também perdeu grande parte de seu território para os aliados, e o restante foi entregue a proprietários estrangeiros.
Brasil, Argentina e Uruguai, além da perda de inúmeras vidas, perderam também a vergonha, ficando endividados e submetidos ao capital inglês até nossos dias.
Em 29 de setembro de 1868, num banquete oferecido pela maçonaria a Sarmiento e Mitre, este último, erguendo um instrumento maçônico, declarou: “O que é Sarmiento? Um pobre homem como eu, um instrumento como este…” (Mitre. Discurso maçônico. Arengas Selectas, p.83). Vicente F. López acrescentava na Câmara de Deputados em 1873: “O que somos agora? Não somos senão agentes servis e pagos a módico preço das praças estrangeiras.” (Diario de sesiones, 1873, p.261)
Os ingleses, sem perder um só homem e sem nenhum sacrifício, “mataram um mau exemplo” (o Paraguai) e ainda lucraram enormemente.
“Os Aliados foram libertar os guaranis de seu tirano e abrir de par em par as portas da civilização moderna, sob a forma de concessões, financiamentos, investimentos estrangeiros e outras emanações das bolsas de Berlim, Londres, Nova York e Buenos Aires. As bênçãos do laissez-faire substituíram os males do paternalismo e, como sempre, o camponês converteu-se em peão explorado e sem terra.” (Pelham Horton Box. Los orígenes de la Guerra de la Triple Alianza, trad. Pablo Ynsfrán, Ed. Nizza, Buenos Aires, 1958)
Já Avellaneda declarava: “A guerra mais notável que apresentou a América do Sul depois das de sua independência terá em breve seu último episódio (…) para oferecer-se ao comércio, à habitação e à indústria de todos os homens.” (Mensagem ao Congresso Nacional, 1876). — Com que direito Avellaneda oferece o patrimônio paraguaio a “todos os homens”?
Também Mitre, em 1869, dizia: “Quando nossos guerreiros regressarem de sua longa e gloriosa campanha… poderá o comércio ver inscritos em suas bandeiras os grandes princípios que os apóstolos do livre-câmbio proclamaram para maior glória e felicidade dos homens.” (Arengas I)
Evidentemente, os guerreiros são nossos, mas o comércio, os apóstolos e os homens felizes pertencem à Grã-Bretanha.
Bibliografía:
- Castagnino L. Guerra del
Paraguay. La Tripe Alianza contra los paises del Plata
(JMR) José Maria Rosa: Historia Argentina.
(AGM) Atilio García Mellid. Proceso a los falsificadores de la historia del Paraguay. Teoría.
(AGNA) Archivo general de la Nacion Argentina.
(M.R.E.P.) Ministerio de Relaciones Exteriores del Paraguay.
(ANA) Anchivo Nacional de Asunción.
Julio José Chiavenatto: “Genocidio Americano, A guerra do Paraguai.-Sao Paulo
Adolfo Saldías. Historia de la Confederación Argentina.
Carlos D´Amico. Bs.As., sus hombres su naturaleza, sus costumbres. México 1890
Norberto Galasso. De la banca Baring al FMI
J.Sulé: “Los heterodoxos del 80”
Alcibíades Lappas: “La masonería Argentina a través de sus hombres”.(Bs.As.1966)
Otras fuentes:
Revista del Museo Histórico Sarmiento
Revista de la Biblioteca Nacional
D.F. Sarmiento, “La Tribuna”, El Nacional”
Peña, Milcíades, “La era de Mitre”
J. Pandá Cológeras. “Formaçao histórica do Brasil
Agustín Rivera Astengo: “Juarez Celman”.
Coronado, Misterios de San José.
Carlos Pereira. Francisco Solano López, y la guerra del Paraguay.
La Gazeta Federal www.lagazeta.com.ar