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Sucessão de Carlos Antonio López
No dia 10 de setembro de 1862 faleceu Carlos Antonio López, presidente do Paraguai, deixando um país em plena prosperidade. Após anos de política protecionista, o Paraguai apresentava uma situação sólida e em franco desenvolvimento: recusando-se a contrair empréstimos, não possuía dívida externa; seus produtos eram exportados em navios próprios; era o único país americano com estrada de ferro e telégrafo; e o primeiro a lançar embarcações a vapor capazes de atravessar o Atlântico. Contava com um exército forte, abastecido por sua própria produção de armamentos. Os jovens paraguaios eram enviados para estudar na Europa, retornando para servir à pátria, que quase não dependia de técnicos estrangeiros — e, quando necessário, estes eram contratados pelo Estado.
O filho mais velho de Carlos Antonio, Francisco Solano López, que exercia a vice-presidência e chefiava o exército, convocou um Congresso após a morte do pai para a eleição presidencial, sendo ele mesmo escolhido para o cargo. De caráter firme e instruído, havia estudado e viajado pela Europa, destacando-se ainda como hábil diplomata.
O Paraguai mantinha questões pendentes de limites com o Brasil e com a Argentina. Tratados firmados em 1856 haviam estabelecido uma trégua de seis anos, que expirava justamente quando Solano López assumia a presidência. Conta-se que Carlos Antonio aconselhou o filho a resolver o delicado assunto “com a pena, e não com a espada”. Seguindo tal conselho, assim que tomou posse, López convidou Mitre a resolver amigavelmente a questão fronteiriça. Durante mais de um ano, trocaram correspondência repleta de elogios mútuos, mas sem alcançar o acordo esperado por López. Algo, contudo, se tramava nos bastidores de Mitre.
A situação da Banda Oriental
Enquanto isso, na Banda Oriental governava o Partido Blanco (federal). Mitre apoiava secretamente Venancio Flores, conhecido como “o degolador de Cañada de Gómez”, que havia servido ao mitrismo em aventuras políticas e guerras civis argentinas. Incentivado por Mitre, Flores preparava uma revolução no Uruguai contra o governo “blanco” de Bernardo Berro, recebendo armas e suprimentos para tal. Foi justamente no período das afetuosas cartas entre Mitre e López que Flores iniciou a revolução contra Berro, coincidindo com a intervenção do Brasil.
Berro, iludido pelas demonstrações de amizade de Mitre, ignorou os avisos sobre o que se tramava. No dia 1º de abril de 1863, cometeu o erro de licenciar as tropas que guarneciam alguns departamentos. Nove dias depois, Flores desembarcava nas praias orientais, desencadeando a revolução.
A oportunidade do Império
Era também o momento oportuno para o Brasil. No dia 6 de maio de 1864 chegou a Montevidéu o hábil diplomata imperial José Antônio Saraiva, apresentando enérgicas reclamações por supostos “danos e prejuízos” sofridos por súditos do Império na Banda Oriental — episódio conhecido como a “política do marinheiro ferido”.
Naquele momento, Berro já havia sido sucedido por Anastasio Aguirre, cujo Ministro de Relações Exteriores, Juan José de Herrera, respondeu com firmeza à nota de Saraiva, apresentando inclusive uma lista ainda mais extensa de crimes cometidos em território brasileiro.
A peça que faltava
Entram então em cena os atores que faltavam. Viaja a Montevidéu uma comissão “pacificadora” composta por Rufino de Elizalde (Ministro das Relações Exteriores de Mitre e, ao mesmo tempo, funcionário inglês) e Mr. Eduardo Thornton, representante de Sua Majestade Britânica, à qual se une, para completar o quadro, o próprio Saraiva.
Apesar de conhecer a atitude desleal de Mitre, o governo uruguaio recebe a comissão e assina uma anistia aos revolucionários, chegando inclusive a atender a exigência de Flores quanto a uma indenização de meio milhão de pesos, referente a gastos realizados justamente para promover a revolução. Contudo, por mais que cedesse o governo uruguaio, a paz não chegaria, pois a “comissão” não visava a paz, mas sim a instalação de Flores no poder, em vista de propósitos ulteriores.
As negociações com a “comissão pacificadora” são então rompidas, enquanto a imprensa argentina satisfaz Mitre, protestando veementemente contra Aguirre, sobre quem recaía a responsabilidade pelo fracasso, e exaltando “a atitude humanitária” do governo argentino.
Os acontecimentos se precipitam: em 4 de agosto de 1864, Saraiva apresenta um “ultimato”, ameaçando com “represálias” por parte das forças navais e terrestres caso, no prazo de seis dias, não fossem atendidas todas as exigências. No mesmo dia, Pimienta Bueno solicitava ao Congresso brasileiro que as fronteiras fossem estendidas até o rio Arapey, dando mostras de sua contínua política expansionista.
O governo uruguaio rejeita a nota de Saraiva, que se retira para cumprir suas ameaças por intermédio do vice-almirante Joaquim Marques Lisboa, Barão de Tamandaré, o qual dá início à agressão destruindo os vapores orientais General Artigas e Villa del Salto.
Situação geopolítica
Vejamos quais eram os interesses geopolíticos de cada um dos atores:
O Brasil prosseguia em sua invariável política expansionista sobre a Bacia do Prata, buscando ampliar seu território e, sobretudo, obter influência e direitos sobre as vias navegáveis rumo ao Mato Grosso, única via de comunicação da região. Já havia ocupado a Banda Oriental, de onde foi forçado a se retirar militarmente após a derrota em Ituzaingó, em 1827. Em 1842, reconheceu a independência do Paraguai (que Rosas considerava parte da Confederação Argentina), para posteriormente subjugar esse país e, ao mesmo tempo, enfraquecer a própria Confederação — exatamente como Rosas advertira López em 1842, ao não reconhecer a independência. Estava prestes a cumprir-se a predição de Rosas, feita mais de vinte anos antes. Eis alguns trechos da resposta de Rosas ao pedido de reconhecimento da independência do Paraguai em 1842:
*Que o Brasil se apressaria em reconhecer a independência da República por possuir produções semelhantes e porque, sendo também reconhecida por Buenos Aires, equilibrar-se-iam os direitos de importação pagos ao Brasil.
Que o Brasil seria capaz de prejudicar o Paraguai, fomentando até as correrias dos índios com armas.
Que, reconhecida a independência do Paraguai, este se encheria de ministros e cônsules estrangeiros, que procurariam semear discórdias, como acontecia em Buenos Aires, e até mesmo conquistá-lo, se pudessem.
Que, ao contrário, incorporando-se à Confederação, formaria uma grande nação que imporia respeito aos estrangeiros…
Que ele não reconhecia nem deixava de reconhecer a independência da República, desejava sua felicidade e pedia a Deus que a conservasse sem admitir estrangeiros, os quais são como más pragas; que sua felicidade consistia em ter súditos de uma só religião, enquanto Buenos Aires sofria a desgraça de estar cheia de templos protestantes, grande mal causado pelos antigos selvagens unitários ao firmarem tratados com ingleses, situação que já não podia ser remediada.
Que aos estrangeiros estabelecidos no país nada se poderia dizer nem fazer, pois logo reclamavam seus ministros ou cônsules, de modo que pretendiam gozar de maiores vantagens e prerrogativas que os nacionais.*
O outro ator era a Inglaterra, interessada em abrir as vias navegáveis e o comércio do Paraguai — então protecionista — e em colocar seus empréstimos. Em defesa desses interesses, participaram da “comissão pacificadora” Mr. Thornton e Rufino de Elizalde, funcionário inglês de quem se dizia ser “o primeiro Mr. que falava inglês com sotaque tucumano”.
O mitrismo, que havia imposto “a sangue, fogo e intrigas” o “liberalismo” no interior, subjugando as províncias argentinas, interessava-se em depor o governo federal “blanco” e impor o “colorado”, de orientação liberal. O passo seguinte seria levar a “civilização” ao Paraguai. E não se pode deixar de mencionar outro motivo: a ambição de Mitre em obter a glória de ser Comandante em Chefe de uma aliança contra o Paraguai — perspectiva que os brasileiros chegaram a alimentar como isca, até que tiveram de exigir sua substituição diante da interminável sequência de fracassos militares durante a guerra.
Por sua parte, o Uruguai buscava manter sua independência frente aos vizinhos cobiçosos, preservando o equilíbrio do Prata mediante uma aliança com o Paraguai.
Por fim, o Paraguai. Sendo uma nação mediterrânea, sua existência independente estava vinculada à independência da Banda Oriental, que lhe assegurava a saída ao mar através dos rios do Prata. Para descrever os interesses paraguaios, recorramos às autorizadas palavras de Juan Bautista Alberdi:
_“Montevidéu é para o Paraguai — escrevia Alberdi em 1865 — o que o Paraguai é para o interior do Brasil: a chave de sua comunicação com o mundo exterior. Tão estreitamente estão ligados os destinos do Paraguai aos da Banda Oriental, que no dia em que o Brasil se tornasse senhor desse país, o Paraguai poderia já ser considerado colônia brasileira, ainda que conservasse sua independência nominal. E, pela mesma razão de estar situado às margens do canal formado pelos rios Paraguai, Paraná e Prata, ficariam as províncias brasileiras mais ao norte sujeitas a seguir destino solidário com ele e com a Banda Oriental. O governo do Paraguai teria dado mostras de cegueira se tivesse vacilado em reconhecer que a ocupação da Banda Oriental pelo Brasil visava assegurar tanto as províncias imperiais ao norte quanto a própria República.
‘Com Montevidéu ocupado pelo Brasil, a República do Paraguai se veria, de fato, no meio dos domínios do Império. Eis por que o Paraguai se viu, e tinha de se ver, ameaçado em sua própria independência pela invasão brasileira na Banda Oriental. Assumiu como sua a causa da independência oriental, porque ela realmente o era, e sua atitude de guerra contra o Brasil é essencialmente defensiva, embora as necessidades da estratégia o tenham levado além de suas fronteiras.
‘Essa identidade de causa entre o Paraguai e a Banda Oriental se comprova pelo manifesto em que o Brasil acaba de anunciar às potências amigas sua decisão de fazer guerra ao Paraguai. Nele reconhece o Senhor Paranhos que “a questão de limites é a causa principal da contenda”.
‘Questão esta que, já duas vezes nos últimos dez anos, levou o Brasil às armas e que ainda não foi resolvida. É justamente essa questão que o Império pretende resolver de fato, aproveitando-se da vantagem que tem sobre o Paraguai por estar situado mais abaixo do Mato Grosso, com a ocupação da Banda Oriental, que é a chave da navegação exterior paraguaia. Eis por que o Paraguai viu em iminente perigo sua liberdade de navegação, desde que percebeu o Brasil a caminho de se apoderar da Banda Oriental, como já o fizera em 1820. A cumplicidade de Buenos Aires com o Brasil na ocupação da Banda Oriental só torna ainda mais ameaçadora para o Paraguai a atitude do Império…”_
Assim via as coisas Alberdi, observando à distância a grande conflagração. Suas opiniões contrárias à guerra contra o Paraguai não seriam toleradas por Mitre, originando a polêmica Mitre-Alberdi, na qual este, longe de se calar, lançou-lhe em rosto diversas acusações passadas.
Às razões expostas por Alberdi, muitas outras poderiam ser acrescentadas para justificar a atitude do governo paraguaio. Não se devem esquecer os antecedentes históricos. É preciso considerar a tendência secular da diplomacia luso-brasileira e a justificada desconfiança com que esses países sempre olharam o Império. As disputas territoriais, antes e depois da independência, as sucessivas usurpações, a dominação do Uruguai em 1820, as missões secretas de San Amaro e Abrantes para obter intervenção europeia nos assuntos do Prata, o propósito de separar a “república mesopotâmica”, as intermináveis questões de limites — nada disso era motivo de tranquilidade, nem permitia contemplar sem graves suspeitas a forma brutal e violenta com que o monarca bragantino tratava o território que fora sua província cisplatina.
Além disso, o Paraguai, que já tivera mais de uma vez litígios de fronteira com o Brasil a ponto de quase ir à guerra, apesar da prudência de Carlos Antonio López, não podia olhar com indiferença o procedimento que seu adversário inaugurava como meio de resolver suas questões com os vizinhos.
“O governo paraguaio — afirma um distinto escritor brasileiro — tinha de desconfiar das intenções secretas da monarquia. Não podia acreditar que o Imperador, por mero amor aos republicanos orientais, se convertesse de repente em seu libertador, quando em seu próprio território mantinha em servidão abjeta mais de quatro milhões de africanos. O lógico era esperar que o Império, depois de resolver violentamente suas questões com o Uruguai, tratasse de fazer o mesmo com o Paraguai.”
Olhos que não veem?
Mas Mitre era cego, ou movido por outros interesses, pois favoreceu o Império sem ter nada a ganhar. Ele mesmo justificava suas ações com o pretexto de levar “a civilização” ao Paraguai, depois de ter imposto sua “política a golpes” no interior, numa “guerra de polícia” marcada por fuzilamentos e degolas.
Apesar de tudo, o Paraguai manteve-se em uma silenciosa expectativa. Essa postura estava de acordo com as tradições da diplomacia paraguaia. Assim o compreendia López, quando, em 20 de dezembro de 1863, escreveu ao general Mitre:
“Os princípios da mais estrita neutralidade, observados por todos os governos do Paraguai desde a sua independência, em questões internas e externas de seus vizinhos, constituem também a base da política do governo atual, que ainda não encontrou motivos para abandonar essa política tradicional.”
A neutralidade manifestada por López era absolutamente genuína. Note-se, no entanto, como López pressentia o futuro na expressão “ainda não encontrou motivos”. Ele já conhecia muito bem a índole de Mitre.
“Não pretendo com isto — continua López — afirmar que esse princípio seja tão absoluto que os acontecimentos não possam limitá-lo, quando a própria segurança exija demonstrar interesse por tais acontecimentos, caso possam comprometer essa segurança. Este, que é um direito inerente a todo governo, tem ainda maior peso para o Paraguai, dada sua posição geográfica e outros poderosos motivos, que é desnecessário mencionar a V.Exa., por já os conhecer.”
López tinha plena clareza sobre a situação; Mitre, por sua vez, talvez não conhecesse esses “outros poderosos motivos” do Império — motivos que López poderia, eventualmente, ter lhe revelado.
As duas faces da moeda
O governo paraguaio estava informado sobre os acontecimentos na Banda Oriental, mas manteve uma postura prudente e até chegou a oferecer mediação, como fizera em 1859. Mitre, por sua vez, prosseguia com sua política velada e, tentando dissipar as suspeitas de López, escreveu-lhe em 2 de janeiro de 1864:
“Estou muito distante de negar à República e ao governo do Paraguai o direito que possa ter, em determinados casos, de influir nos acontecimentos que se desenrolem no Rio da Prata. V.Exa. encontra-se, sob muitos aspectos, em condições mais favoráveis do que as nossas, à frente de um povo tranquilo e laborioso, que se engrandece pela paz e chama a atenção do mundo nesse sentido; com poderosos meios de governo extraídos justamente dessa mesma situação pacífica; respeitado e estimado por todos os vizinhos que mantêm com ele relações comerciais profícuas; sua política está traçada de antemão e sua tarefa talvez seja mais fácil do que a nossa nestas regiões tempestuosas, pois, como bem observou um jornal inglês desta cidade, V.Exa. é ‘o Leopoldo destas regiões’, cujos vapores sobem e descem os rios superiores, erguendo a bandeira pacífica do trabalho, e cuja posição será tanto mais elevada quanto esse modo de ser se normalizar nestes países.”
As palavras de Mitre… não revelam uma espécie de inveja do estado paraguaio? É incrível o comportamento de Mitre, que, após chamá-lo de “o Leopoldo destas regiões”, pôs-se a serviço do Imperador para destruir todo aquele “povo tranquilo e laborioso”… “com meios poderosos de governo que se originam dessa mesma situação pacífica; respeitado e estimado por todos os vizinhos” — e decretar a morte de López, sob a alegação de ser um perigo para a civilização, por considerá-lo “bárbaro” e “tirano”. Pretendia “levar a civilização” de mãos dadas com um governo que escravizava milhões de pessoas e, apenas um ano após essas palavras elogiosas a López e ao povo paraguaio, fingindo ainda neutralidade, forneceria bombas à frota brasileira para bombardear Paysandú, no que ficou conhecido como “o infame espetáculo”, dando início ao maior genocídio da Hispano-América.
Fontes:
- Castagnino L. Guerra del
Paraguay. La Tripe Alianza contra los paises del Plata
- García Mellid, Atilio. Proseso a los falsificadores de la Guerra del
Paraguay.
- Irazusta Julio. Vida política de Juan Manuel de Rosas.
- O´Leary, Juan E. Historia de la Guerra de la Triple Alianza. Carlos
Schauman Editor. Asunción.1992
- Rosa, José Maria. Historia Argentina. Editorial Oriente.
Bs.As.
- Rosa, José Maria. La Guerra del Paraguay y las montoneras arentinas.
Bs.As.
- Rosa, José Maria. Rosas y el Imperialismo - La caída. Offsetgrama.
Bs.As. 1974.
- La Gazeta Federal www.lagazeta.com.ar