PREFÁCIO DO PADRE LUAN GUIDONI AO LIVRO
"BRUNO, O GRANDE"
A supremacia espiritual de São Bruno e da ordem cartuxa forjaram a joia mais preciosa da vida religiosa do Sacro Império Romano-Germânico. Todos os homens de boa vontade podem contemplar, no mais alto dos céus, aquele resplandecente zênite branco que é São Bruno de Colônia. Um confrade anônimo, seguidor da tradição cartuxa de não firmar documentos com seu próprio nome e possuidor de uma visão aguçada, conseguiu contemplar, com distinta diligência, o quão divino é o silêncio cartuxo. Ele nos solicitou que escrevêssemos algumas palavras sobre a vida, obra e santidade de São Bruno. Ao nosso amigo silencioso, que escreveu este belo livro e que está imbuído de um verdadeiro espírito cartuxo, damos nossa bênção e saudações em Cristo.
Não foi sem surpresa que recebi tantas informações. No princípio, duvidei prudentemente de que algum homem da nossa geração degenerada pudesse dispor de um minucioso acervo sobre a ordem cartuxa. Eu estava enganado. Nosso devoto de São Bruno me apresentou, de modo sistemático, montanhas de documentos esquecidos durante séculos. Não pude deixar de exclamar, entusiasmado: “Você precisa começar a escrever esse livro imediatamente!”.
O objetivo central do autor consistia em sintetizar, da maneira mais apurada possível, os fatos de maior relevância da vida de São Bruno, utilizando-se das fontes mais antigas. Após ressuscitar a memória do colosso da vida solitária, ele pretendia restaurar o culto ao santo com orações tradicionais e incentivar a leitura das obras de São Bruno, transcrevendo algumas cartas escritas pelo pai da cartuxa. Apresentei um contra-argumento defendendo a tese de que tudo aquilo que fosse para a maior glória do santo deveria estar contido no livro, porque era necessário energizar esse arsenal literário com muitíssimas homenagens ao grande monge de Colônia, e não há melhor forma de realizar esse empenho do que traduzir os escritos originais de São Bruno, assim como os principais decretos da ordem. Se nosso amigo silencioso, porém, colocasse no papel todas as suas fontes, teríamos uma verdadeira “suma cartuxa”, mas como ainda não estamos neste grau de sofisticação e por acreditarmos que este grão de mostarda ainda se tornará grande, delimitamos a inserção de mais textos escritos por São Bruno e novas adições essenciais que não constavam no plano original. A alma do presente trabalho consiste, ademais, não apenas na intelectualidade única do patriarca da cartuxa, mas também na vida e nas virtudes de São Bruno e em como seu exemplo cristaliza a estratégia da guerra espiritual contra a modernidade e nos meios necessários para derrotá-la.
Quem é São Bruno de Colônia? Ele é um mestre da espiritualidade tradicional: exímio intelectual; conhecedor das letras sagradas e profanas; ardente lutador contra os vícios do clero; fundador da santa cartuxa; máximo penitente e zelador da vida religiosa; reformador do corpo eclesiástico; inspiração para São Bernardo de Claraval e a Ordem do Templo; conselheiro do Papa Urbano II (o papa das cruzadas); coluna da vida solitária; espelho de silêncio; realizador de grandes milagres e, acima de tudo, um homem consagrado ao combate espiritual. Sua trajetória nesse mundo dá-nos todos os sinais de um guerreiro desde o tempo em que ele pelejou contra a simonia do bispo Manassés de Gournay, dos santos conselhos que deu ao Papa Urbano II em prol da guerra santa e dos incentivos aos italianos na luta contra os invasores muçulmanos que haviam conquistado a Sicília. Não só contra os inimigos carnais lutou São Bruno, mas também contra os demônios que circulam nos ares e que tentam os homens constantemente. Sua contínua abstinência, silêncio e mortificação purificaram seu corpo e alma de tal forma que seus atos práticos e intelectivos refletiam o mais excelso ordenamento com a vontade divina. A cartuxa por ele fundada e seus escritos, especialmente os comentários aos salmos — uma obra tristemente esquecida pelos católicos na modernidade — reluzem o fogo que queimava em sua alma pela instauração do Império de Cristo sobre a terra. As obras de um religioso são o reflexo de um coração que está em Deus ou contra Deus, e enganam-se aqueles que creem que unicamente pela via intelectual é possível lograr grandes obras, pois é a alma na graça que opera maravilhas. Se São Bruno não fosse um homem espiritual, seus dons belicosos e racionais não teriam alcançado o cume daquela cordilheira altíssima que é a perfeição.
Gostaríamos de insistir um pouco mais nessa questão espiritual. O que queremos dizer por espiritualidade tradicional? Queremos dizer o espírito dos primeiros séculos do catolicismo como uma escola espiritual que cresceu até atingir seu ponto mais alto no amanhecer de São Bento de Núrsia e que teve seu entardecer em Santo Inácio de Loyola, pois já não vemos mais aqueles grandes luzeiros nos céus após o fundador dos jesuítas. Essa espiritualidade medieval e monástica fundada na sólida rocha da lectio divina, da liturgia e no conselho beneditino ora et labora parece-nos, catastroficamente, quase totalmente perdida. Ela continua viva, graças ao bom Deus, nos ecos das catedrais, na poeira de manuscritos antigos e parece despertar lentamente, depois de um longo sono, nas consciências mais tradicionais. É necessário restaurá-la.
A gênese dessa espiritualidade é uma corrente dourada unida pelos elos de santos ilustríssimos. Nosso Senhor Jesus Cristo, verdadeiro Deus e verdadeiro Homem, ensinou-nos o caminho para a perfeição. Ele confiou aos seus doze apóstolos, em especial São Pedro, o ensino da doutrina e também elegeu Maria, sua santa e Imaculada Mãe, como protetora da santa Igreja. Com a evangelização das nações, um número incontável de santos mártires abundou a Igreja de sangue e graça. Alguns homens mais piedosos enxergaram a corrupção do mundo e desejaram apartar-se dele, como Santo Antão. Santo Irineu de Lyon, Santo Atanásio, Santo Ambrósio, São João Crisóstomo e São Jerônimo formaram um batalhão poderosíssimo de apologetas contra as heresias.
Com Constantino, o Grande, a Igreja Romana finalmente atingiu sua liberdade. Santo Agostinho e o Papa São Leão Magno fortaleceram ainda mais a fé católica pelo orbe através de seus escritos e ações. São Bento de Núrsia, pai da espiritualidade católica ocidental, erigiu a vida monástica por toda a Europa e sua vida foi santamente escrita pelo Papa São Gregório Magno. São Remígio, Santo Isidoro de Sevilha, Santo Agostinho de Cantuária, São Bonifácio e São Patrício expandiram ainda mais o espírito católico pelo mundo, consolidando a cristandade nos pontos centrais da Europa, e a chave histórica desse período está centrada na figura régia do Imperador Carlos Magno.
São Romualdo, fundador dos camaldulenses, fez renascer a austeridade na veia beneditina, porque já no ano mil iniciaram-se algumas anomalias na Igreja. São Pedro Damião combateu a degeneração eclesiástica nas ordens religiosas e no clero secular. É no século XI que vemos pela primeira vez o surgimento da modernidade como um corpo ainda disforme que evoluirá até o absoluto caos revolucionário. Apesar disso, ainda surgiram grandes atletas da fé durante esse tempo, como o Santo Rei Henrique II do Sacro Império Romano-Germânico, São Hugo de Grenoble, Papa Urbano II e o nosso herói São Bruno de Colônia. Posteriormente, Pedro de Amiens, São João da Mata, fundador dos trinitários, e São Félix de Valois consagraram suas vidas pela libertação da Igreja oprimida na Terra Santa, da mesma forma que São Pedro Nolasco, fundador da ordem dos mercedários. São Bernardo de Claraval, o viril santo da ordem cisterciense, escreveu a regra dos templários e com o suporte de São Norberto de Xanten, fundador da ordem premonstratense, combateu o antipapa de seu tempo e reformou a vida religiosa cada vez mais decadente.
Foi necessária uma intervenção divina nas almas de São Francisco de Assis, São Domingos de Gusmão e São Luís IX, rei da França, para combater a heresia e a perversão dos costumes, e ainda dois outros santos, Santo Antônio de Pádua e Santo Tomás de Aquino, para fundamentar com mais força o desejo dos fundadores da ordem franciscana e dominicana de reformar a sociedade católica. Girolamo Savonarola deu o último grito contra a renascença hermética para defender as ruínas da idade média. Por fim, Santo Inácio de Loyola, o soldado que se tornou santo, e São Francisco Xavier foram os últimos grandes astros que iluminaram a Igreja com a luz da espiritualidade tradicional. Depois disso, o Sol se pôs.
A espiritualidade tradicional é transcendental, racional, ocidental, romano-germânica, antiga-medieval, litúrgica, monástica-hierárquica, ascética e guerreira. Sua antítese, a espiritualidade moderna, é a adversária ctônica declarada da tradição espiritual da Igreja Romana. A origem da espiritualidade moderna, paradoxalmente, é antiga. Aquilo que chamamos de modernidade é apenas a reformulação dos velhos enganos do passado dentro de uma tática dialética anticatólica e com tendência anti-metafísica. As ideias dos modernos já foram escritas alguns milênios atrás, mas eles não sabem disso.
Antes que a escrita existisse, práticas religiosas subversivas já reinavam pelo globo. Centenas de artes mágicas nasceram aos pés do que sobrou de Babel, e miríades de demônios espalharam ideias contra Deus pelo mundo. O Oriente recebeu de braços abertos todos os erros criados pela mente humana e pelas diversas inteligências diabólicas. Canaã, Egito, Babilônia e os antigos magos orientais encabeçaram o posto de corruptores da humanidade. Contrariando as conspirações satânicas, Cristo condenou todos os que vieram antes dele, todos aqueles que estavam por vir, e proclamou ser o único caminho.
Derrotado pelo Messias, o exército infernal preparou-se para uma escaramuça contra os seguidores de Jesus Cristo através de três movimentos espirituais anticatólicos: o gnosticismo, o neoplatonismo e a magia. Simão, o mago, Cerinto, o gnóstico, e Amônio Sacas, o neoplatônico, formaram o cérbero de três cabeças e um só corpo contra a Igreja. Essa foi a primeira resposta das forças ocultas do tártaro contra os apóstolos. Cismas e heresias se multiplicaram quando os donos do cérbero soltaram a besta contra a Igreja e o sangue dos mártires jorrou por todos os lados. Foram precisamente os descendentes destes gnósticos, neoplatônicos e magos que mataram a fé do Imperador Juliano, tornando-o apóstata. O esforço contínuo dos doutores e santos, no entanto, conseguiu banir da cristandade qualquer fluxo orientalista na espiritualidade, mantendo-a pura por vários séculos.
Foi João Escoto Erígena, neoplatônico e tradutor de Pseudo-Dionísio, o Areopagita — outro neoplatônico do qual se desconhece a real identidade — que introduziu muitos conceitos estranhos na vida intelectual do período escolástico. Iniciava-se a ominosa alvorada da modernidade. O cisma do Oriente piorou ainda mais a situação religiosa da cristandade. Pedro Afonso, cujo real nome é Moses Sephardi, iniciou o movimento hebraísta dentro da Igreja. Arnaldo de Bréscia e Pedro Valdo começaram movimentos espirituais revolucionários no seio da Europa. Quem mais se destacou, porém, por causa da grande fama que gozava no alto clero, foi o revolucionário Joaquim de Fiore, um monólito de pura heterodoxia. As terríveis heresias milenaristas de Joaquim de Fiore se estenderam pelo tempo e influenciaram os cátaros, os “fraticellis” e os irmãos apostólicos. O ignorante Amalrico de Bena escandalizou toda a França com seu panteísmo. Os costumes decaíam cada vez mais graças aos livros publicados pela seita dos “Fedeli d'Amore”, e também por causa do livro Roman de la Rose, e a “Fête des Fous” testemunha que a religião já não era considerada com grande seriedade. A queda espiritual resultou na queda intelectual, tanto que só foi possível ocorrer a ascensão da má filosofia depois do ano mil, nas figuras de Roscelino, Pedro Abelardo, Duns Escoto, Marsílio de Pádua, Guilherme de Ockham, Nicolau de Lira e Raimundo Lúlio.
O maior responsável pela consolidação da modernidade dentro da espiritualidade foi o herético Mestre Eckhart. Ele é o ponto de inflexão mais importante na transição do tradicional para o moderno no mundo da espiritualidade. Eckhart, mestre das heresias, foi uma das principais fontes da devotio moderna, e seus seguidores cresceram rapidamente. Henrique Suso e Johannes Tauler trataram de manter viva a memória de Eckhart e seus tentáculos expandiram as novas doutrinas místicas de modo sútil por meio de Geert Groote; Floris Radewyns; pela comunidade dos “fratres vitae communis”; dos “gottesfreunde”; do misterioso “Gottesfreund vom Oberland”; das beguinas; Marguerite Porete; Jeanne Daubenton; dos irmãos do livre espírito; Rulman Merswin; Gerard Zerbolt de Zutphen; Jan van Ruusbroec; Henricus Harphius; Gabriel Biel; Johannes Mauburnus; Hendrik Mande; e da seita dos “homines intelligentiae”.
Com a razia orientalista contra o Ocidente ocorrendo dentro dos próprios mosteiros, os inimigos de Cristo rapidamente aproveitaram o momento de debilidade e construíram uma nova fortaleza em Florença. A Academia Neoplatônica Florentina foi o quartel-general do bruxo Gemisto Pletão, do sacerdote esotérico Marsílio Ficino e do principal feiticeiro da renascença, Giovanni Pico della Mirandola, o pupilo amado de Yohanan Alemanno. A gnose, o neoplatonismo e a magia andavam livremente pela Igreja da renascença. O caso do abominável João Tritêmio é singular pela absurdidade histórica que ele significou; Pietro Colonna Galatino defendia o orientalismo fanaticamente; e Nicolau de Cusa era considerado um teólogo de respeito. Não é sem razão que Johann Reuchlin, um dos mestres de Martinho Lutero, era um culto conhecedor das artes das trevas, pois, se ao lado do Vaticano se perpetravam inúmeros casos de diabolismo, quanto mais além dos montes. O incidente envolvendo Giordano Bruno foi uma vergonha para os dominicanos italianos, e durante o mesmo período na Espanha os alumbrados caminhavam nas sombras.
A espiritualidade moderna é imanentista, irracional, oriental, árabe-hebraísta, renascentista-humanista, psicológica, comunitária-igualitária, sentimental e ecumênica. João Escoto Erígena, Pedro Afonso, Joaquim de Fiore, Mestre Eckhart, Giovanni Pico della Mirandola e Martinho Lutero são os pais dela. Apenas aqueles que compreendem — de forma plena — o peso escatológico dessas bestas poderão entender o armagedom religioso em que nos encontramos.
Nossa brevíssima exposição da espiritualidade tradicional e da espiritualidade moderna não encapsula todos os personagens ou eventos históricos que geraram essas formas antagônicas de espiritualidade. Tampouco nos detivemos em estranhas ocorrências de mistura entre ambas, isto é, quando encontramos elementos tradicionais e modernos mesclados numa mesma escola espiritual ou num mesmo indivíduo histórico, mas acreditamos que um leitor com um olhar atento saberá tirar proveito deste pequeno texto e estudar os principais nomes listados por nós.
Esse buraco abissal de decadência que se chama modernidade conseguiu deixar o espírito humano em coma. A alma do homem moderno transformou-se em um palácio de demônios por causa das heresias e da letargia espiritual generalizada. Podemos afirmar infalivelmente que existe mais vida na alma vegetal de um cacto do deserto do Saara que dentro do coração dos homens deste século. As escuridões exaladas das profundezas do Hades tentam de todos os modos cobrir o Sol da verdade católica até o ponto de eclipsar toda a criação de Deus. Perante esse virulento espetáculo de putrefação moderna, afirmamos com máxima veemência que a cura para essa pestilência se encontra na espiritualidade de “Bruno von Köln”. No silêncio da cartuxa, quando respeitado, não há espaço para anticristos. A abstinência não permite que os vícios penetrem na casa de Deus e o ofício divino é o aço forte daquela armadura que reveste o espírito da corrupção profana. Vemos neste livro, Bruno, o Grande, uma verdadeira luta pela restauração da espiritualidade de São Bruno. Um feixe de luz emana desta obra que agora prefaciamos.
Observamos com indignação a gélida indiferença de muitos homens pseudo-espirituais que permitiram que as obras de São Bruno caíssem no esquecimento ao longo do tempo. A obscuridade moderna não teria triunfado se os manuscritos do mestre cartuxo tivessem sido mais divulgados entre o povo católico, assim como tantos outros nobres santos da vida religiosa, igualmente esquecidos pela maioria dos eclesiásticos. A restauração de uma espiritualidade começa na alma e depois nas letras, e não cremos que seja possível permitir por mais tempo que as palavras de sabedoria de São Bruno permaneçam apenas em livros esquecidos nas bibliotecas de antigos mosteiros — onde, ordinariamente, as aranhas são mais familiarizadas aos títulos que os próprios monges. Corruptio optimi péssima est.
Aqueles que desejam beber da tradição, tal como os cervos bebem das fontes de água pura, devem agarrar este livro e orar no mesmo espírito de São Bruno. A biografia aqui contida revivifica o espírito dos mornos: os escritos recuperados da cartuxa são meditações das mais elevadas, as orações exercitam a alma e as imagens acendem o fogo da vontade. Aqui está sendo dado o primeiro passo para a ressurreição do espírito de São Bruno, e rogamos aos céus para que não seja o último. Nosso amigo silencioso ainda terá muito trabalho pela frente com suas milhares de traduções de textos cartuxos. Com as orações dos novos devotos de São Bruno em seu favor, cremos que do alto descerão as graças necessárias para que ele realize essa obra silenciosa, mas que ressoará aos ouvidos de todos.
Ao nosso irmão neo-copista, devoto de São Bruno e autor deste livro de excelso valor, dou minha bênção sacerdotal e irrestrita aprovação. Que Nosso Senhor Jesus Cristo e sua Mãe, Maria Santíssima, nos abençoem em nossa luta pela restauração da espiritualidade tradicional. Amém.
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Padre Luan Guidoni
2 de Dezembro de 2024