FAQ do Zippy Catholic

Contratos usurários constituem um tipo de contrato que é intrinsecamente imoral por sua própria natureza

FAQ do Zippy Catholic

Fonte: zippycatholic.wordpress.com

“Não temos vergonha de pagar usura? Não contentes dentro dos limites dos nossos próprios meios, nós, ao darmos garantias e celebrarmos contratos, fabricamos o jugo da nossa escravidão.” – Plutarco

Exortamo-vos a não dar ouvidos àqueles que dizem que hoje a questão da usura está presente apenas no nome, visto que quase sempre se obtém lucro do dinheiro dado a outrem. Quão falsa é esta opinião e quão distante da verdade! Podemos facilmente entender isto se considerarmos que a natureza de um contrato difere da natureza de outro. – Vix Pervenit

Compreender a usura exige a compreensão de como a natureza de alguns contratos difere, fundamental e categoricamente, da natureza de outros. A usura não é uma questão do mesmo tipo de contrato diferindo apenas por 'juros excessivos'. Contratos usurários constituem um tipo de contrato que é intrinsecamente imoral por sua própria natureza. Este FAQ destina-se a ajudar as pessoas a entender o que é – e o que não é – a usura e responder a muitas das perguntas que surgem naturalmente.

[Nota: este FAQ também está disponível na forma de um ebook em domínio público. Também está disponível como um livro impresso.]

1) O que é Usura?

Usura é emprestar dinheiro por juros lucrativos. O termo “usura” muitas vezes se refere especificamente aos próprios juros – juros cobrados sobre um empréstimo mutuum (garantido pessoalmente pelo mutuário).

2) O que é “emprestar”?

Emprestar é um acordo entre um credor (mutuante) e um devedor (mutuário), no qual o credor dá bens ao devedor e o devedor se compromete a “devolvê-los” mais tarde. A frase “devolvê-los” pode significar devolver o bem específico que foi emprestado, ou pode significar devolver algum bem diferente – tipicamente do mesmo tipo e na mesma quantidade. É este último tipo de empréstimo que é o contexto para a usura: pedir dinheiro ou açúcar emprestado, não um cortador de grama ou aparador de sebes.

Neste tipo de empréstimo, o empréstimo é um contrato no qual o mutuário é pessoalmente obrigado, por seu próprio acordo, a devolver o montante principal do empréstimo ao credor em algum momento futuro: não um objeto específico emprestado, mas um montante específico emprestado. Isso é tradicionalmente chamado de “mutuum”.

São Tomás de Aquino define um empréstimo como um contrato no qual “o mutuário detém o dinheiro por sua conta e risco e é obrigado a devolvê-lo integralmente”: ou seja, o credor tem recurso contra o próprio mutuário para recuperar o montante emprestado.

Hoje, esse tipo de empréstimo é chamado de “empréstimo com recurso total” (full recourse loan), em contraste com um “empréstimo sem recurso” (non recourse loan)1. Portanto, usura é cobrar juros sobre um empréstimo com recurso total.

Um empréstimo com recurso total/garantido pessoalmente/mutuum é um empréstimo no qual a reivindicação do credor contra o mutuário permanece mesmo que o mutuário ‘consuma’ os recursos. ‘Consumir’ não é entendido no sentido de que o que é emprestado é literalmente destruído (embora possa ser, se for, por exemplo, comida); mas meramente que pode ser alienado do mutuário sem destruir a obrigação do mutuário para com o credor. A reivindicação do credor no contrato é contra a promissória pessoal (IOU - I owe you) do mutuário e não está confinada a alguma propriedade especificada que o mutuário ou o credor possua ou que seja comprada com os recursos.

Os termos modernos ‘empréstimo’ e ‘dívida’ podem significar coisas diferentes. Ao ler livros e documentos antigos sobre usura, é importante ter em mente que a palavra ‘loan’ (empréstimo) nas traduções inglesas é quase sempre uma tradução de ‘mutuum’ ou similar. Refere-se especificamente a empréstimos garantidos pela garantia pessoal do mutuário, às vezes chamados de ‘empréstimo para consumo’. Nem toda ‘dívida’ ou ‘empréstimos’ modernos são garantidos pela garantia pessoal de um mutuário ou mutuários.

3) A usura é sempre moralmente errada?

Sim. A usura, lucro de empréstimos mutuum, é sempre moralmente errada, sem exceção.

4) E se a taxa de juros for razoável?

A usura é sempre imoral, não importa qual taxa de juros seja cobrada. A ideia de que usura é apenas cobrar juros “não razoáveis” é uma ficção moderna. Usura não é uma taxa de juros “não razoável”: é qualquer juro que seja como termo de acordo em um tipo particular de contrato, o empréstimo mutuum.

Não se pode tolerar o pecado da usura argumentando que o ganho não é grande ou excessivo, mas sim moderado ou pequeno; nem pode ser tolerado argumentando que o mutuário é rico; nem mesmo argumentando que o dinheiro emprestado não é deixado ocioso, mas é gasto utilmente, seja para aumentar a fortuna, para comprar novas propriedades, ou para realizar transações comerciais. – Vix Pervenit

[Nota: na tradução inglesa de Vix Pervenit, o termo “loan” (empréstimo) é uma tradução de (formas da) palavra “mutuum”].

5) Qual é a diferença chave entre um mutuum e outros contratos?

Com um mutuum, o mutuário é pessoalmente obrigado, sob o contrato, a reembolsar o valor total do principal, não importa o que seja feito com os recursos ou com outros ativos específicos vinculados ao contrato.

6) E se o mutuário for uma instituição como um governo ou corporação, em vez de um indivíduo?

“Emprestar” a uma instituição não é um empréstimo mutuum, desde que o credor não possa ir atrás de indivíduos para recuperar o principal. Uma instituição não é uma pessoa: é uma coisa – uma societas – um conjunto objetivo de ativos transferíveis ou propriedade que pode mudar de mãos e no qual várias partes podem ter vários tipos de participação independentes de qualquer pessoa ou pessoas específicas. Assim, uma instituição pode, ela mesma, atuar como garantia em dívidas sem recurso [pessoal].

7) Eu não entendo. Por que cobrar juros sobre um empréstimo é sempre moralmente errado?

São Tomás de Aquino explica que o empréstimo usurário envolve vender algo que não existe. Isso é muito contraintuitivo para pessoas doutrinadas na modernidade, e ainda assim óbvio uma vez que se deixa de lado o antirrealismo moderno sobre propriedade e valor econômico. Aquino compara isso a tentar vender vinho e o consumo do vinho como duas coisas separadas.

Imagine que Bob empresta $100 a Harry, Harry empresta $100 a Fred, e Fred empresta $100 a Bob. Cada um gasta o dinheiro em cerveja e cobra 10% de juros na forma de uma taxa diferida. Os contratos tentam dar direito a cada um deles a $10 adicionais – totalizando $30. Esses $30 de novos direitos financeiros nos livros não estão conectados a nada ontologicamente real. A crise financeira de 2008 foi resultado de uma rede usurária de empréstimos imobiliários e, em última análise, esquemas circulares semelhantes a seguros que criaram esse tipo de riqueza ‘falsa’. Todo empréstimo usurário envolve a criação de riqueza falsa.

Outra maneira de ver que o que é comprado e vendido em um mutuum não existe é observar que, sob os termos do contrato, é possível que o credor não consiga recuperar tudo a que tem direito sob o contrato. Sob o que são (hoje em dia) chamados contratos sem recurso, o “credor” é sempre, por definição, capaz de recuperar tudo a que tem direito sob os termos do contrato: uma vez que os ativos subjacentes foram divididos, não há outro lugar para ir para recuperar seu investimento, e isso é precisamente o que as partes concordaram que seria o caso. Se o mutuário parar de fazer pagamentos em uma hipoteca residencial sem recurso, por exemplo, o credor executa a hipoteca da casa para recuperar seu investimento e não tem direito a quaisquer reivindicações que se estendam além da própria casa. Os direitos econômicos do “credor” sob o contrato estão vinculados a (e limitados por) algo que realmente existe: a casa.

A razão pela qual um credor com recurso total às vezes não consegue recuperar o que lhe é devido sob os termos do contrato é porque o que lhe é devido sob os termos do contrato não existe.

Investimento lícito – ou mesmo compra para consumo – sempre envolve a compra ou venda de um direito de propriedade sobre (ou seja, algum tipo de reivindicação econômica sobre) alguma propriedade específica que realmente existe. Contratos usurários fingem ser um direito de propriedade sobre algo – sobre alguma coisa – mas a propriedade sobre a qual afirmam um direito não existe realmente no momento em que é “vendida”. Se a propriedade realmente existisse, o mutuário não precisaria tomar nenhuma ação para produzi-la ou adquiri-la: se e quando o mutuário parasse de fazer pagamentos, o credor poderia simplesmente reivindicar sua parte econômica na propriedade real, porque a propriedade real existe. É assim que o “empréstimo” sem recurso funciona, bem como todos os tipos de outros contratos de investimento não usurários.

O Magistério faz e clarifica essa distinção vigorosamente (por exemplo, Questão 31, Questão 36).

A diferença entre contratos com recurso total (mutuum) e contratos sem recurso (societas) é central para o assunto da usura; portanto, se não estiver claro neste ponto, continue lendo.

8) Mas o valor econômico não é relativo? O valor não é redutível a quaisquer que sejam as preferências das pessoas?

Não. Por exemplo, um grupo de incendiários se reunindo e concordando que incendiar propriedades é valioso, e agindo sobre essa determinação incendiando propriedades, não cria valor econômico: eles destroem valor econômico.

9) E se o empréstimo for garantido por colateral (garantia)?

Juros sobre um mutuum garantido por colateral ainda são usura, porque se o colateral for destruído, o credor ainda pode perseguir o mutuário pela devolução do montante principal do empréstimo. Se o recurso do credor sob os termos do contrato for apenas ao colateral e não à pessoa do mutuário, não é um empréstimo mutuum e não é usura.

A diferença entre um mutuum e outros contratos entra fortemente em jogo quando o empréstimo entra em inadimplência. Se o credor puder (sob os termos do contrato) ir atrás da pessoa do mutuário para recuperar o principal, é um empréstimo mutuum. Se o credor tiver recurso apenas a ativos ontologicamente reais para recuperar o principal e quaisquer lucros, o contrato não é um mutuum e a proibição da usura não se aplica.

Em empréstimos sem recurso (societas), um credor sempre pode cobrar precisa e inteiramente o que lhe é devido sob o contrato, porque o que lhe é devido sob o contrato sempre existe realmente — se não existir como um ativo real no inventário de ativos reais que garantem o empréstimo, então, por definição, ele não tem direito a isso, já que seu recurso é apenas a essas coisas. Foi isso que ele concordou ao fazer o empréstimo — essa é a definição de um empréstimo sem recurso.

Que os credores com recurso total (mutuum) nem sempre conseguem cobrar precisa e inteiramente o que lhes é devido sob o contrato demonstra o ponto de Aquino de que a usura envolve vender o que não existe.

10) O colateral (garantia) precisa ser físico?

Não. Existem todos os tipos de ativos financeiros ou tipos de propriedade ontologicamente reais que não são estrita ou apenas de natureza física. Por exemplo, a lealdade e a boa vontade dos pacientes regulares de um dentista são um ativo real que, juntamente com o trabalho do dentista, produz renda regular. Dito de outra forma, o consultório de um dentista é um ativo econômico ontologicamente real. Dentistas comumente vendem seus consultórios quando se aposentam, por exemplo.

Para que uma coisa seja propriedade, deve ser possível que essa coisa seja alienada de qualquer proprietário ou possuidor particular, de modo que uma pessoa diferente possa possuí-la no tempo B da pessoa que a possuía no tempo A. Deve ser possível que essa coisa seja possuída, retomada, comprada, vendida ou transferida de um proprietário para outro. Se não puder ser alienada de alguma pessoa ou pessoas particulares, não pode ser propriedade ontologicamente real no sentido pertinente.

Uma promessa pessoal de reembolsar não pode ser alienada da pessoa que faz a promessa. Quando um empréstimo é garantido por uma promessa pessoal de reembolsar em vez de ou além de propriedade alienável, é um empréstimo mutuum.

11) Muitos contratos não-mutuum não são injustos?

Sem dúvida, muitos são, mas um contrato não é usura estritamente falando, a menos que seja um empréstimo mutuum por juros lucrativos.

Nem se nega que muitas vezes é possível para alguém, por meio de contratos inteiramente diferentes de empréstimos, gastar e investir dinheiro legitimamente, seja para prover-se de uma renda anual ou para se envolver em comércio e negócios legítimos. Desses tipos de contratos, pode-se obter ganho honesto. … Existem muitos contratos diferentes desse tipo. Nesses contratos, se a igualdade não for mantida, tudo o que for recebido acima do que é justo é uma injustiça real. Mesmo que não se enquadre na rubrica precisa de usura (visto que toda reciprocidade [mutuum], aberta e oculta, está ausente), a restituição é obrigatória. – Vix Pervenit

[Nota: na tradução inglesa de Vix Pervenit, o termo “loan” (empréstimo) é uma tradução de (formas da) palavra “mutuum”. Curiosamente, a palavra traduzida como “reciprocity” (reciprocidade) na versão inglesa também é “mutuum” no original, então a frase com o parêntese pode ser entendida como “Mesmo que não se enquadre na rubrica precisa de usura (porque esses contratos não são, aberta ou secretamente, empréstimos mutuum), a restituição é obrigatória.”].

Isso é semelhante à situação com contracepção e planejamento familiar natural. Assim como é possível praticar tipos de sexo de outra forma lícitos com uma “mentalidade contraceptiva”, também é possível celebrar tipos de contratos de outra forma lícitos com uma “mentalidade usurária”. O tipo (espécie) de contrato ou ato sexual em consideração pode não ser intrinsecamente imoral; mas o fato de não ser intrinsecamente imoral não torna impossível cometer um erro moral nos detalhes: nas intenções ou circunstâncias. A natureza de um tipo particular de contrato pode não ser usurária; mas não se segue que a escolha de concordar com um contrato particular desse tipo não possa, portanto, ser injusta.

Isso é exatamente como deveríamos esperar que fosse com uma doutrina moral cobrindo uma espécie particular de pecado. A proibição moral da contracepção, por exemplo, não é em si uma teoria abrangente da imoralidade sexual. Adultério e fornicação são pecados sexuais distintos da contracepção, e o que é verdade no domínio sexual também é verdade no domínio da propriedade: que roubo e usura são tipos distintos de pecados não torna nenhum deles particularmente ambíguo. Nem a proibição do roubo nem a proibição da usura constituem Teorias de Tudo sobre o uso moral da propriedade.

12) Por que eu emprestaria dinheiro a alguém se não posso cobrar juros?

Contratos mutuum são moralmente lícitos apenas como caridade. Emprestar dinheiro a alguém necessitado é uma boa ação. Se e quando o mutuário se recuperar e puder pagar o empréstimo, ele deve ao credor o dinheiro de volta por uma questão de justiça. Na Idade Média, os Franciscanos emprestavam dinheiro aos pobres como forma de mantê-los fora das garras da usura.

Além disso, você pode “emprestar” com lucro sob contratos não-mutuum. Juros sobre dívidas sem recurso [pessoal] não são usura.

13) A Igreja não permitiu aos Franciscanos cobrar "juros" acima e além do principal em seus empréstimos mutuum aos pobres? E quanto aos "títulos extrínsecos?"

Primeiro, não está claro que esses empréstimos aos pobres fossem, de fato, empréstimos mutuum (veja a Questão 47). Na medida em que o Magistério fez quaisquer pronunciamentos formais sobre o assunto, até onde pude determinar, eles se aplicam aos Montes Pietatis sem recurso [non-recourse] e a títulos que surgem de questões inteiramente extrínsecas ao contrato, como negligência, roubo ou fraude (veja a Questão 49).

Certamente houve muita discussão sobre o assunto entre os teólogos.

Alguns medievais argumentaram (com a ampla gama de opiniões típica da experiência humana) que certos custos reais incorridos pelo empréstimo (chamados "títulos extrínsecos") poderiam ser recuperados dos mutuários que pudessem pagar esses custos, além do valor principal do empréstimo, sob certas circunstâncias. Tenha em mente que emprestar aos pobres poderia variar desde simplesmente entregar dinheiro a um homem necessitado na rua e pedir que ele o devolva quando puder, até algo mais institucional e até mesmo agências patrocinadas pelo soberano.

Tomar dinheiro emprestado das primeiras agências de crédito franciscanas era muitas vezes uma forma para os necessitados se reerguerem, e os mutuários às vezes deixavam de pagar de qualquer maneira — mesmo depois de se recuperarem. Além disso, vários custos reais de administração dos empréstimos eram incorridos pelos Franciscanos, embora eles próprios vivessem sob votos de pobreza. "Títulos extrínsecos" eram permitidos, argumentava-se, porque é injusto para com os pobres que aqueles que já se beneficiaram de empréstimos caritativos esgotem o suprimento de capital disponível para emprestar àqueles que ainda precisam.

Em geral, a distinção entre empréstimos mutuum e outros tipos de empréstimo nem sempre era clara nessas disputas, e muitos tipos diferentes de títulos extrínsecos foram propostos e debatidos. As agências de crédito franciscanas foram precursoras das modernas casas de penhores, fazendo pequenos empréstimos sem recurso [non recourse] com propriedade como garantia, em vez de fazerem empréstimos mutuum. Também pertinente para entender as várias disputas é que os medievais não estavam preocupados apenas com a usura estritamente falando, mas com o tratamento justo em geral. Comentaristas modernos tendem a introduzir ambiguidade na compreensão da usura especificamente ao lerem as disputas medievais, devido a essa preocupação mais geral com coisas como o preço justo (veja a Questão 50).

Se Bob estava em situação de miséria [Skid Row] e os Franciscanos o ajudaram a se reerguer – ele agora tem os meios para pagar o que pegou emprestado – então o tipo de dívida que ele tem é diferente em espécie de uma dívida comercial baseada em propriedade. Ele tem uma dívida de gratidão e uma dívida de justiça: a primeira para com aqueles que o ajudaram, e a segunda para com os pobres que ainda estão em situação de miséria e agora precisam de sua ajuda.

Se ele for ingrato e mesquinho e se recusar a pagar o empréstimo, mesmo tendo os meios para fazê-lo, ele cometeu uma injustiça. Mas não é uma injustiça enraizada na propriedade: é uma injustiça enraizada na caridade.

Se uma ação legal é ou não justificada em tal caso era controverso. Os Dominicanos achavam que não e acusaram os Franciscanos de usura, mesmo por tentarem recuperar o principal no caso de mutuários que podiam pagar mas se recusavam, porque eles às vezes recuperavam mais do que apenas o principal de mutuários gratos. O Papa interveio a favor dos Franciscanos com respeito aos Montes Pietatis sem recurso, mas isso obviamente não resolve quais tipos de títulos extrínsecos e ações legais lícitas poderiam se aplicar no caso de empréstimos mutuum.

Os Dominicanos estavam argumentando por sua interpretação da visão de Aquino sobre o envolvimento da lei civil; mas note que todas as partes, no entanto, concordavam sobre a natureza fundamentalmente diferente do empréstimo mutuum inerentemente gratuito e da societas (sociedade/investimento) lícita com fins lucrativos ou do investimento sem recurso. Um empréstimo mutuum lícito não envolve a compra de um interesse de propriedade por um investidor; ele só é moralmente lícito como um ato gratuito de amizade. Eis Aquino:

A retribuição por um favor pode ser feita de duas maneiras. De uma forma, como uma dívida de justiça; e a tal dívida um homem pode ser obrigado por um contrato fixo; e seu montante é medido de acordo com o favor recebido. Por isso, o mutuário de dinheiro ou qualquer coisa semelhante cujo uso é seu consumo [isto é, qualquer coisa que deva ser devolvida em espécie em oposição a em particular: veja a Questão 35 – Ed.] não é obrigado a devolver mais do que recebeu em empréstimo: e, consequentemente, é contra a justiça se ele for obrigado a pagar de volta mais. De outra forma, a obrigação de um homem de retribuir por um favor recebido baseia-se numa dívida de amizade, e a natureza dessa dívida depende mais do sentimento com que o favor foi conferido do que da grandeza do próprio favor. Essa dívida não acarreta uma obrigação civil, envolvendo um tipo de necessidade que excluiria a natureza espontânea de tal retribuição.

Na prática, um mutuário devidamente grato que se tornou próspero através da ajuda de empréstimos caritativos tornar-se-ia ele mesmo um patrono desses mesmos esforços que o ajudaram a sair da pobreza. Mas essa "dívida" de gratidão não é uma dívida de propriedade e, por sua natureza, não pode ser capturada em uma taxa de juros fixa ou outro montante monetário específico. O próprio ato de tentar converter uma dívida de gratidão ou amizade – acima e além do que foi realmente emprestado – em alguma cobrança definida de um valor específico em dinheiro, desmascara as tentativas de negar a usura.

Gratidão ou amizade podem ser verdadeiramente devidas; mas gratidão ou amizade que podem ser compradas e vendidas por um preço específico não são verdadeira gratidão ou amizade.

Meu próprio entendimento dos títulos extrínsecos é que, se eles envolvem um direito que não surgiria de qualquer maneira sem ser incluído no contrato, eles não podem ser extrínsecos ao contrato. Certamente, títulos que surgem de roubo, fraude e negligência poderiam surgir independentemente do contrato. Mas se um título particular tem que ser incluído no contrato para que seja um título legítimo, ele, por definição, não é um título extrínseco.

14) A Igreja não aprovou a cobrança de juros para recuperar custos de oportunidade? E quanto ao valor do dinheiro no tempo?

Não. Um dos "títulos extrínsecos" propostos mais controversos foi o lucrum cessans, que alguns interpretam como uma licença geral para recuperar custos de oportunidade (mesmo que custos de oportunidade não sejam ontologicamente reais: veja a Questão 15) de empréstimos mutuum. Mas, embora o Magistério tenha aprovado o conceito de títulos extrínsecos em termos gerais para alguns tipos de "empréstimos" aos pobres (basicamente para defender os Franciscanos, em seu trabalho de ajudar os pobres, da acusação de usura), não há proclamação Magisterial dando um relato detalhado de quais "títulos extrínsecos" são e não são válidos e quando se aplicam.

Além disso, a recuperação do "custo de oportunidade" ou do "valor do dinheiro no tempo" como algo em si foi explicitamente condenada pelo Magistério:

[A seguinte proposição é condenada como errônea:] Como o dinheiro à vista é mais valioso do que aquele a ser pago, e como não há ninguém que não considere o dinheiro à vista de maior valor do que o dinheiro futuro, um credor pode exigir algo além do principal do mutuário, e por esta razão ser isento de usura. – Vários Erros sobre Assuntos Morais (II), Papa Inocêncio XI por decreto do Santo Ofício, 4 de março de 1679 (Denzinger)

Também foi estabelecido que o silêncio Magisterial sobre uma questão moral ou doutrinária não constitui aprovação. Aqueles que insistem que o Magistério aprovou o título de lucrum cessans de todo, e muito menos que o título proposto pode ser interpretado como uma licença para recuperar custos de oportunidade em empréstimos mutuum com fins lucrativos, em oposição a empréstimos caritativos aos pobres onde não há intenção de recuperar nem mesmo o principal daqueles que não podem pagar, estão simplesmente errados. A razão pela qual essas pessoas nunca produzem uma proclamação Magisterial para esse efeito é porque isso nunca aconteceu.

15) Um investidor não deveria ser compensado por abrir mão do custo de oportunidade de investir seu dinheiro em outra coisa?

Não. Custos de oportunidade não são ativos ontologicamente reais. Quando um credor mutuum tenta vender seu "custo de oportunidade" a um mutuário em troca de pagamentos de juros sobre o empréstimo, a coisa que ele tentou vender na verdade não existe. Se ela realmente existisse, então, quando o mutuário deixasse de pagar, o credor seria capaz de executar a garantia e recuperar sua propriedade, ou a propriedade na qual ele comprou um direito. O fato de ele não poder fazer isso demonstra o ponto de São Tomás de Aquino de que cobrar juros sobre um empréstimo mutuum (usura) envolve vender o que não existe.

16) O trabalho futuro de um trabalhador não constitui um 'ativo real' contra o qual um empréstimo pode ser garantido?

Não. O "trabalho futuro de um trabalhador" é uma potencialidade, não uma atualidade. Essa potencialidade inere em uma pessoa, não em um ativo. É moralmente lícito comprar ativos (incluindo ativos com potencialidades), mas não é moralmente lícito comprar pessoas. O "trabalho futuro de um trabalhador" não é um ativo ou pedaço de propriedade: não é algo cuja propriedade possa ser transferida do trabalhador para o credor quando a transação é feita, porque o trabalho futuro do trabalhador não pode ser alienado do próprio trabalhador.

17) Escolásticos tradicionalistas afirmavam que não se pode vender tempo; escolásticos progressistas afirmavam que o salário do trabalhador é um contraexemplo. Os progressistas não estavam certos?

Não. O tempo é apenas um substituto conveniente para a produtividade real do trabalhador. Se o tempo em si fosse um ativo vendável, então o trabalhador teria direito a compensação mesmo se ficasse em casa na cama e nunca fosse trabalhar.

O trabalhador é pago pelo que ele, através de seus próprios poderes, torna atual.

Atualidades têm sua própria existência distinta, enquanto potencialidades inerem em coisas atuais das quais não podem ser separadas. É lícito comprar e vender coisas atuais, seja para consumo ou para adquirir potencialidades econômicas que inerem em coisas atuais. Mas não é lícito comprar pessoas para adquirir potencialidades econômicas que inerem em pessoas. Tentar comprar as potencialidades de uma pessoa é uma tentativa de comprar uma participação econômica em uma pessoa, em oposição a uma coisa: isso é o que faz a usura cair no mesmo gênero da escravidão.

18) Escolásticos tradicionalistas afirmavam que não se pode vender risco; escolásticos progressistas afirmavam que uma apólice de seguro [insurance bond] é um contraexemplo. Os progressistas não estavam certos?

Não. Se o risco qua risco [enquanto risco] fosse um ativo financeiramente transferível, os jogadores teriam direito a um lucro. Uma apólice de seguro é apenas um agrupamento de ativos financeiros em que uma parte se beneficia quando as coisas correm conforme o planejado, e as perdas da outra parte são mitigadas por compensação financeira se as coisas não correrem conforme o planejado. Desde que o recurso [recourse] seja limitado pelo contrato ao conjunto de ativos reais, independentemente de como esteja estruturado, o arranjo não é usura.

19) Um título corporativo [corporate bond] é usura?

Não. Investidores que emprestam dinheiro a corporações não podem buscar acionistas individuais para o retorno do principal. As reivindicações em um título corporativo são reivindicações contra a propriedade que realmente existe por si só: a corporação. As corporações são elas mesmas propriedades: podem ser compradas e vendidas e seus funcionários – os trabalhadores que "cultivam" a propriedade – às vezes mudam completamente de um conjunto de pessoas para outro. Como uma fazenda, um açougue, uma ferraria, um terreno de caça, etc., uma corporação é propriedade que pode ser alienada de pessoas particulares.

A venda de reivindicações contra a propriedade – reivindicações vinculadas a propriedade específica e apenas essa propriedade específica – é uma venda de algo que realmente existe. Ainda é possível que os preços dessas reivindicações sejam injustos, etc.: veja a Questão 11. Mas contratos como dívida corporativa não são usura estritamente falando, desde que sejam limitados: desde que sejam reivindicações contra propriedade específica e não afirmem quaisquer garantias pessoais por pessoas específicas.

Veja também a Questão 31.

20) Um empréstimo para automóvel [financiamento de carro] é usura?

Quase sempre. É usura a menos que seja um empréstimo sem recurso [non recourse].

21) Um empréstimo imobiliário [financiamento habitacional] é usura?

Um empréstimo imobiliário sem recurso [non recourse] não é usura, porque o credor tem recurso à casa e somente à casa para recuperação do principal e juros. Na prática, porém, a maioria das hipotecas permite um julgamento por insuficiência [deficiency judgment] contra o mutuário (ou seja, permitem que o credor busque o pagamento do saldo devedor diretamente do mutuário se a venda da casa não cobrir toda a dívida), e essas hipotecas são usurárias.

22) Cartões de crédito são usura?

Sim. Todos os empréstimos individuais sem garantia que cobram juros são usura. Mesmo empréstimos garantidos são usura se preveem um julgamento por insuficiência [deficiency judgment] contra o mutuário em caso de inadimplência.

23) Isso significa que não posso fazer um empréstimo estudantil sem cometer pecado mortal?

Aqui está a resposta de Aquino (ST II-II, Q78, A4):

Consequentemente, devemos também responder à questão em pauta que de modo algum é lícito induzir um homem a emprestar sob condição de usura: contudo, é lícito tomar emprestado com usura de um homem que está disposto a fazê-lo e é um usurário por profissão; desde que o mutuário tenha em vista um bom fim, como o alívio de sua própria necessidade ou de outrem. Assim também é lícito para um homem que caiu entre ladrões apontar-lhes seus bens (que eles pecam em tomar) a fim de salvar sua vida, segundo o exemplo dos dez homens que disseram a Ismael (Jeremias 41:8): "Não nos mates, pois temos reservas no campo."

Como tomar emprestado com usura é inerentemente escandaloso, provavelmente depende da extensão da necessidade. Mas você tem uma discrição moral bastante ampla para entregar sua propriedade a ladrões, então provavelmente tem uma latitude prudencial semelhante aqui. Como questão de moralidade intrínseca, a usura – insistir em juros ao fazer um empréstimo mutuum – é um pecado por parte do credor, não do mutuário.

24) O que há de errado com contratos entre adultos consentindo?

Esse é um assunto diferente, mas relacionado. Contratos são sempre negociados à sombra da lei, que limita que tipos de contratos são executáveis e afeta as posições de negociação das partes. Se o governo deve se recusar a executar um contrato em que uma pessoa se vende como escrava, o governo deveria igualmente se recusar a executar um contrato em que um mutuário se escraviza através da usura.

25) Todos os empréstimos improdutivos não são usura? Belloc não estava certo quando disse que a distinção entre empréstimos usurários e não usurários era que os últimos são produtivos?

Este é um mal-entendido comum de pessoas bem-intencionadas que gostariam que a usura fosse levada mais a sério como um erro moral. A usura é, na verdade, mais clara e direta do que eles propõem: todos os empréstimos mutuum por juros lucrativos são usura, e outros tipos de contratos não são usura. (Isso não significa que outros tipos de contratos sejam moralmente lícitos por definição: apenas que não são usura.)

Essa visão baseia-se em uma compreensão errônea do que significa 'empréstimo para consumo', assumindo que o oposto de um empréstimo para consumo deve ser um empréstimo para produção. Isso traz todo tipo de bagagem intelectual e visões conflitantes da teoria econômica que são irrelevantes para a usura.

A ideia de que um empréstimo mutuum com juros não é usura quando o dinheiro é gasto produtivamente foi condenada na encíclica Vix Pervenit. Um empréstimo mutuum com juros em que o mutuário investe os recursos em alguma atividade produtiva é tão usurário quanto um empréstimo mutuum com juros em que o mutuário gasta o dinheiro com vinho, mulheres e música. Que o contrato é usurário é estabelecido pelo fato de ser um mutuum cobrando juros, independentemente de como o mutuário por acaso usa os recursos.

Além disso, empréstimos sem recurso [non recourse] “improdutivos” não são usura. Se eu tenho patrimônio líquido [equity] na minha casa e vendo parte dele a um "credor" sem recurso para levantar dinheiro para férias, isso não é usura: eu simplesmente decidi gastar parte do capital que possuo em férias. (Regimini Universalis: mutuários sem recurso “oneram seus bens, suas casas, seus campos, suas fazendas, suas posses e heranças”). O credor não pode vir atrás de mim para recuperar seu principal e juros: ele só pode ir atrás da casa da qual ele e eu agora somos coproprietários; e os "juros" que eu pago são apenas uma taxa de aluguel pela parte da casa que ele agora possui depois que eu a vendi para ele. O foco em arranjos "produtivos" versus "não produtivos" é uma distração da natureza direta dos contratos usurários, introduzindo complexidade e ambiguidade desnecessárias.

26) O comércio e a moeda não mudaram de tal forma que a usura não seja mais uma grande preocupação?

Não. A usura e a criação de falsa riqueza [faux-wealth] através de contratos usurários são um problema generalizado nas economias modernas, e a natureza da moeda não mudou. No entanto, mesmo que postulemos que a natureza da moeda tenha mudado, isso não altera a proibição de empréstimos usurários, devidamente compreendida.

Acontece que o tipo de moeda usada é irrelevante para a questão da usura (Questão 35), portanto, várias opiniões sobre moeda fiduciária, a chamada moeda "forte" [hard currency], e outros tokens de negociação ou commodities fungíveis são inteiramente distintas do assunto da usura per se. Se um contrato é usurário, ele é necessariamente usurário em todos esses diferentes tipos de moedas. Portanto, mesmo que você discorde de mim sobre a natureza da moeda, nossas diferentes visões sobre a moeda não têm qualquer efeito sobre a condenação de empréstimos usurários denominados nessas moedas.

Nós vos exortamos a não dar ouvidos àqueles que dizem que hoje a questão da usura está presente apenas no nome, já que o ganho é quase sempre obtido do dinheiro dado a outro. Quão falsa é esta opinião e quão distante da verdade! Podemos facilmente entender isso se considerarmos que a natureza de um contrato difere da natureza de outro. – Vix Pervenit

27) O governo não é o maior violador de todos?

Não. Uma garantia soberana não é a mesma coisa que uma garantia pessoal. A dívida soberana era tratada como algo diferente dos empréstimos com recurso total pelos medievais, e o soberano difere dos indivíduos de várias maneiras importantes. Duas das mais importantes são que o soberano não é uma pessoa, mas, qua soberano, é uma instituição; e o soberano tem o poder de emitir moeda. O soberano pode pagar "juros" com receitas fiscais, mas não faz parte do contrato que ele deva fazê-lo; portanto, mesmo a noção de que a dívida governamental exige intrinsecamente recurso total aos contribuintes está errada. O lugar para discutir isso é no post linkado não aqui, porque está realmente fora do tópico [off topic] do assunto da usura. (Nota: veja também discussões mais recentes sobre assuntos relacionados aqui, aqui, e aqui).

Acontece que o tipo de moeda usada é irrelevante para a questão da usura (Questão 35), portanto, várias opiniões sobre dívida soberana e moeda fiduciária são inteiramente distintas do assunto da usura per se.

Isso não significa que a forma como nosso governo está agindo seja sábia, prudente ou mesmo algo perto da sanidade. Apenas significa que a dívida soberana não é usura: é um assunto categoricamente diferente.

Muitas práticas governamentais podem ser não apenas imprudentes, mas intrinsecamente imorais, sem serem usura. Por exemplo, apresentei alguns argumentos de que os impostos sobre a propriedade são intrinsecamente injustos, e nenhum postula que os impostos sobre a propriedade sejam usura estritamente falando, embora o primeiro se baseie em conceitos relacionados à usura.

Isso é exatamente como deveríamos esperar que fosse com uma doutrina moral cobrindo uma espécie particular de pecado. A proibição moral da contracepção não é em si uma teoria abrangente da imoralidade sexual. Adultério e fornicação são pecados sexuais distintos da contracepção, e o que é verdade no domínio sexual também é verdade no domínio da propriedade: que roubo e usura são tipos distintos de pecados não torna nenhum deles particularmente ambíguo. Nem a proibição do roubo nem a proibição da usura constituem Teorias de Tudo sobre o uso moral da propriedade. Pessoas que tentam transformar a doutrina moral sobre a usura em uma marreta multiuso para promover suas próprias teorias econômicas mais amplas prestam um desserviço tanto à doutrina quanto às suas teorias. Que a usura é um tipo particular de pecado e não cobre todos os pecados no domínio do dinheiro e do comércio foi afirmado em Vix Pervenit (veja a Questão 11).

O ponto principal para os propósitos atuais é que questões de moeda fiduciária, tributação e dívida soberana são distintas do assunto da usura. Usura, por definição, são juros lucrativos cobrados sobre um empréstimo mutuum: um contrato livremente celebrado entre uma pessoa (o mutuário) e algum credor (seja uma pessoa ou uma instituição), no qual o mutuário se compromete pessoalmente a pagar o empréstimo.

28) Quem diabos é você para ficar nos dando lições sobre usura, afinal?

Eu sou apenas um cara qualquer. Tenho um MBA, comecei e administrei algumas pequenas empresas e tenho bastante experiência como investidor. Fiquei interessado em usura em 2008 durante a crise financeira e fiquei surpreso ao me encontrar em perfeito acordo (pelo que posso dizer) com São Tomás de Aquino sobre o assunto. Li todas as declarações Magisteriais sobre o assunto no Denzinger, tudo que pude encontrar de Aquino, vários livros antigos, alguns artigos acadêmicos e um monte de coisas na web. Acho que entendi corretamente, mas não sou nenhuma autoridade pomposa.

Parte do que tornou a doutrina da usura clara para mim quando comecei realmente a compreendê-la (em oposição a – e eu era tão culpado disso quanto qualquer um – descartar superficialmente caricaturas enraizadas no modernismo antirrealista) é que, como investidor e empreendedor, vejo contratos de investimento envolvendo garantias pessoais de reembolso como inerentemente disfuncionais. Se o investidor ou o empreendedor sente a necessidade de incluir garantias pessoais na mistura para fechar o negócio, isso é um grande sinal de alerta [red flag] de que a estrutura de capital proposta para o investimento não faz sentido por si só. Normalmente, isso ocorre porque os riscos de propriedade – os riscos de perda parcial ou total do capital investido – no investimento são altos o suficiente para tornar inadequado um simples instrumento de dívida com juros fixos. Em vez de garantias pessoais, a estrutura deveria ser algo como uma nota conversível [convertible note], com potencial de ganho de capital [equity upside], ou deveria ser garantida por uma base maior de capital existente (embora provavelmente ilíquido). Basicamente, alguém está tentando consumir capital que não tem e/ou transferir seus próprios riscos – os riscos inerentes aos seus próprios portfólios de propriedade – para terceiros, pessoalmente.

De qualquer forma, eu realmente não acrescentei nada de novo ao entendimento antigo da usura aqui. Eu era apenas um cara que por acaso estava no lugar certo para ver o que causou o desastre [train wreck], e estou tentando explicar o que vi em nossa linguagem moderna comum da melhor maneira possível. Como o roubo, a usura muitas vezes compensa, pelo menos a curto prazo, e causa todo tipo de dano que impacta diferentes pessoas de forma diferente e injusta. A usura é inerentemente disfuncional e moralmente má, como o roubo. Pode ser levemente interessante sociologicamente que a Igreja Católica esteve certa por milênios sobre uma verdade financeira e moral central e simples que as pessoas modernas, com toda a sua suposta sofisticação econômica e técnica, entenderam completamente errado.

29) Sei que a usura foi tradicionalmente considerada um pecado mortal execrável. Mas a Igreja não mudou o direito canônico e a prática pastoral para remover as penalidades e o estigma associados à usura? A maioria dos teólogos católicos não aceitou que o mundo superou a época em que a proibição da usura fazia sentido?

Bem, você perguntou, então vou opinar e dar minha visão pessoal.

Minha resposta é sim. A tática progressista de divorciar a doutrina da prática pastoral e jurídica não é uma inovação nova do Vaticano II direcionada especificamente a questões de sexo e casamento. Progressistas anteriores foram "bem-sucedidos" em deixar a doutrina sobre a usura formalmente intacta, como uma espécie de decoração que não faz exigências importantes a ninguém, apesar de sua participação na Missa Tradicional em Latim. Humanae Vitae poderia facilmente se tornar a nova Vix Pervenit. Apologistas da contracepção aprenderam com apologistas anteriores da usura e estão usando as mesmas táticas. Progressistas pensam que o dinheiro é inerentemente fecundo e que o sexo não é inerentemente fecundo.

A aceitação da usura e da contracepção são ambos produtos da negação de que as coisas têm uma natureza objetiva independente das preferências humanas. Séculos de aceitação 'pastoral' e doutrinação do relativismo econômico pavimentaram o caminho para outras expressões de relativismo moral.

Você pode pensar nisso como a "hermenêutica da continuidade do Inferno".

Deve ser dito, porém, que livrar-se das penalidades eclesiásticas para a usura foi uma decisão de julgamento pastoral, e eu não necessariamente discordo dela. Por exemplo, antes de uma declaração do Santo Ofício encerrando a prática em 31 de agosto de 1831, era frequentemente imposto que um usurário fizesse uma prestação de contas de todo o dinheiro que havia ganhado através da usura e fizesse restituição antes de receber a absolvição sacramental. Isso é completamente diferente da situação de uma pessoa divorciada e 'recasada' que está objetivamente cometendo adultério de forma contínua. O primeiro pode estar totalmente arrependido e totalmente comprometido a não pecar mais, sem ter os meios práticos para fazer a prestação de contas e a restituição. O último, por definição, não está comprometido a não pecar mais. A restituição material por erros passados, em suma, é um assunto pastoral inteiramente diferente do requisito sacramental básico de um firme propósito de emenda.

Também acontecia que a usura era frequentemente mal compreendida, e muitos contratos que não eram usura eram condenados como tal por pessoas excessivamente zelosas [overzealous], mas financeiramente ignorantes. Um caso análogo no contexto da revolução sexual seriam os 'rigoristas' que condenam o PFN (Planejamento Familiar Natural - NFP) como forma de contracepção, e suas contrapartes 'laxistas' que fazem a mesma afirmação, mas concluem dela que, portanto, a contracepção é moralmente lícita. Aquino e os Papas que abordaram a questão em bulas e encíclicas podem ter entendido a diferença entre investimento sem recurso (societas) e empréstimos com recurso total (mutuum), mas muitos padres no nível paroquial não entendiam. O espetáculo de um penitente, inocente de usura, perseguido e tendo a absolvição negada por um confessor excessivamente zeloso que não entende adequadamente o assunto, pode ser uma ficção risível agora; mas nem sempre foi o caso.

Isso foi especialmente confundido pelo uso, por escolásticos progressistas, de uma distinção proposta entre empréstimos mutuum com juros supostamente 'produtivos' para empresários (explicitamente condenados em Vix Pervenit, veja a Questão 25) e mutuaa supostamente 'improdutivos'. O argumento sobre empréstimos mutuum 'produtivos' vs 'improdutivos' enganou [snookered] os tradicionalistas ao enquadrar o debate em termos de petição de princípio [question begging], obscurecendo a distinção essencial (a distinção, ao contrário de 'produtivo'/'não produtivo', realmente encontrada em documentos Magisteriais sobre usura como Cum Onus e Regimini Universalis) entre empréstimos mutuum (recurso total) e investimento empresarial legítimo sem recurso (societas).

Uma tática argumentativa de falsa bandeira [false-flag] especialmente perniciosa dos apologistas da usura atuais é adotar a abordagem 'rigorista' como forma de desacreditar a doutrina. Estes argumentarão, por exemplo, que o entendimento tradicional da usura proibiria todos os contratos do tipo censo [census-type] envolvendo pagamentos regulares de principal e juros (por exemplo, títulos corporativos), não apenas aqueles contratos de censo com reivindicações que terminam em pessoas em oposição ou em adição à propriedade real. (Veja a questão 31). Essa abordagem de 'falsa bandeira' é auxiliada e incentivada por idiotas úteis [useful idiots] do lado tradicionalista ou reacionário que aplaudem seus argumentos 'rigoristas'.

Nada disso tem qualquer influência sobre o status objetivo da usura como um pecado mortal execrável.

A usura seria, obviamente, intrinsecamente imoral mesmo que isso, contrafactualmente, tornasse a indústria e o comércio impossíveis ou se fosse prejudicial em algum sentido para a indústria e o comércio — assim como a contracepção permaneceria intrinsecamente imoral mesmo que sua falta levasse inexoravelmente à superpopulação e à miséria. Mas a proibição moral de cobrar usura não faz tal coisa. Como a doutrina moral sobre a contracepção, ela meramente proíbe ações que são objetivamente prejudiciais tanto às partes envolvidas quanto ao bem comum – embora envolvam uma 'recompensa' [payoff] de curto prazo, razão pela qual são tentadoras. É por isso que os argumentos a favor da lassidão [laxity] na contracepção e na usura tendem a espelhar-se e a fazer referências cruzadas entre si (inúmeros exemplos podem ser encontrados simplesmente pesquisando no Google várias combinações dos termos "usura", "Católico" e "contracepção").

Apologistas da contracepção aprenderam o manual [playbook] com os apologistas da usura: prestar homenagem de boca para fora [lip service] à doutrina como uma peça decorativa importante da teologia lá no céu; "pastoralmente" tirar suas presas [defang it] para que, na prática, possa ser ignorada no chão; continuar a "dialogar" até que o resultado "pastoral" correto seja alcançado; encurralar [paint... into a corner] qualquer oposição como impiedosa, impraticável e desconectada da realidade; e afirmar que este resultado "pastoral" foi um desenvolvimento da doutrina, ignorando o cão que não late [dog that doesn't bark] — os documentos de ensino inexistentes do Magistério representando um "desenvolvimento" doutrinário real. Faça o último número suficiente de vezes durante um período suficientemente longo para que todos comecem a aceitá-lo como um dado adquirido, incluindo grande parte do clero. Continue a apontar vários "defeitos" na compreensão "simplista" articulada nos documentos Magisteriais, e certifique-se de reiterar regularmente que eles não são infalíveis. Ah, e aponte os pecadilhos sexuais, quero dizer, práticas econômicas, no clero e no Vaticano: porque se o Vaticano faz algo em suas operações ou práticas seculares que constitui uma proclamação infalível de que as práticas não podem ser imorais, desde que sejam as coisas que queremos que não sejam imorais, e de qualquer forma não é realmente imoral, mas se a Igreja realmente quer dizer o que diz doutrinariamente naqueles documentos defeituosos não infalíveis, então está sendo hipócrita. Cale [Shout down] qualquer descrição alternativa da situação nessa frente como desculpismo [excuse-making]. Uma vez que tudo isso seja alcançado, todas as objeções restantes devem ser marginalizadas e ridicularizadas. Dê um tapinha na cabeça [Pat... on the head] dos velhos celibatários economicamente analfabetos na Santa Sé por sua imaturidade boba anterior, parabenize os leigos por sua sabedoria sobre os "fatos da vida" e o sensus fidelium, e siga em frente [move on].

Mas acontece que a proibição de cobrar usura é e sempre foi uma limitação perfeitamente razoável ao comércio moralmente lícito; uma limitação que meramente proíbe o tráfico de seres humanos como se fossem propriedade e, assim, cria riqueza falsa, investida em propriedade inexistente, que polui a economia real.

30) Se o soberano deve negar-se a fazer cumprir contratos usurários, não se segue que o soberano deva negar-se a fazer cumprir qualquer contrato de troca que [confira poder a/permita a] uma parte buscar um julgamento por insuficiência [deficiency judgment] contra a outra parte pessoalmente, independentemente de quaisquer ativos reais dados como garantia?

Sim. Veja as perguntas 35 e 36. Uma "exceção", por assim dizer, aplica-se a casos de roubo, fraude e negligência. Mas nesses tipos de casos, o conteúdo do próprio contrato é irrelevante: qualquer título extrínseco que a parte lesada tenha a danos no caso de negligência ou crime é um título que ela possui, não importa o que o contrato diga (veja a Questão 49).

31) Eu realmente não entendo. Por que você diz novamente que investimentos de renda fixa em (por exemplo) corporações (títulos corporativos) não são usura?

Um título corporativo (não usurário) não é garantido por quaisquer garantias pessoais: é garantido apenas pela própria corporação, que é um ativo (algo que pode ser possuído e vendido), não uma pessoa ou pessoas. Um título corporativo é um tipo de contrato que costumava ser chamado de census. Um exemplo de census é um investidor pagando por sementes e suprimentos para um agricultor em troca de uma cota fixa da produção esperada da fazenda, convertida em um pagamento regular em dinheiro. Isso é moralmente lícito desde que seja garantido pela fazenda como um conjunto de ativos ou propriedade, não por uma garantia pessoal do agricultor.

O Papa Pio V declarou na bula Cum Onus (19 de janeiro de 1569) que a diferença entre um census lícito e a usura era que em um census lícito, a renda e o principal eram garantidos pelos ativos – a fazenda – e não garantidos pessoalmente pelo agricultor. Contratos de census lícitos devem ser garantidos por um 'bem fixo e imóvel' – propriedade alienável – não por uma garantia pessoal de reembolso.

Teóricos econômicos modernos entenderam mal isso ao assumir que 'dinheiro' não é um 'bem fixo e imóvel', e, portanto, concluem que a doutrina da usura depende de alguma teoria particular do dinheiro que, na melhor das hipóteses, não se aplica mais. Mas, ao fazerem isso, eles falham em fazer a distinção claramente feita por Aquino (veja a Questão 52) e pelo Magistério entre dinheiro real (ou outra propriedade alienável) na posse do mutuário e uma mera promessa pessoal, pelo mutuário, de pagar.

Não é que 'dinheiro' (entendido equivocamente) falhe em ser um 'bem fixo e imóvel': é que uma nota promissória pessoal [personal IOU], uma mera promessa pessoal de pagar, falha em ser um 'bem fixo e imóvel'. Dinheiro real em posse (títulos financeiros ou outra propriedade convencionalmente usada para troca), ou outra propriedade garantindo o empréstimo, pode ser alienado do mutuário e retomado [repossessed] se o mutuário parar de fazer pagamentos do census. Notas promissórias pessoais não podem ser alienadas do mutuário e retomadas.

Contratos de census garantidos pessoalmente foram declarados ilícitos, assim como contratos de census onde o resgate do principal poderia ser forçado pelo comprador ("credor") antes do término do contrato de census, assim como contratos de census que não poderiam ser resgatados a qualquer momento pelo vendedor ("mutuário").

John de Lugo explica que o conceito correto do census é que:

… parte do usufruto do campo sobre o qual o census é constituído é comprada. Então, … por outro contrato, que está implicitamente contido na própria constituição de um census real, é acordado pelas partes que, pela esperança do fruto que o comprador tem daquele usufruto, o vendedor se obriga a pagar tal pagamento anual em dinheiro; — e desta forma o contrato anterior é reduzido à obrigação de pagar apenas uma soma anual, pela qual o vendedor resgata o usufruto parcial do campo que havia vendido; o próprio campo, no entanto, permanecendo realmente obrigado à maneira de um penhor [pledge] pelo pagamento do dinheiro prometido …

(Noonan, The Scholastic Analysis of Usury, Oxford University Press, 1957).

Quando você possui um título corporativo, você possui um interesse de propriedade na corporação – uma coisa objetiva. Corporações são coisas, geralmente agregados de coisas, e podem ser possuídas e vendidas como propriedade. (Se não fossem coisas – se fossem pessoas – seria imoral possuí-las, negociar ações delas e coisas do gênero). É por isso que é sempre possível executar a garantia [foreclose] sobre a corporação e reivindicar sua propriedade: porque a coisa que você possui realmente existe. (Que seu valor possa ter sido reduzido a nada por infortúnio nos negócios é irrelevante: uma casa pode pegar fogo, mas o fato de que pode pegar fogo não significa que não seja uma coisa).

Uma nota garantida pessoalmente parece, superficialmente, o mesmo tipo de contrato; mas não é. Ela – especificamente a garantia pessoal – não é um interesse de propriedade em uma coisa. Ela tenta afirmar um interesse de propriedade em nenhuma coisa: nada. O fato de que você não pode executar a garantia e coletar sua propriedade demonstra o ponto de Aquino: a coisa na qual o contrato afirma um interesse de propriedade ou outra reivindicação não é coisa alguma: nada. As maçãs foram comidas, o vinho foi bebido, e o mutuário tem que agir para adquirir maçãs ou vinho novos e diferentes precisamente porque a coisa à qual o credor mutuum reivindica direito não existe.

Um mutuum por juros parece superficialmente um contrato de census contra o campo de um agricultor, como descrito por John de Lugo e afirmado como moralmente lícito por Pio V. A diferença é que não há campo: em vez de representar uma compra com arrendamento de volta [buy-leaseback] de fato de uma reivindicação contra um campo ou outra propriedade real, a nota garantida pessoalmente representa uma compra com arrendamento de volta de nada.

32) Na pergunta 16 você diz que o valor do trabalho futuro não é um ativo real que pode ser usado como garantia [collateral] em um empréstimo com fins lucrativos. Mas não era relativamente comum antes da era moderna que pessoas fossem vendidas como escravas para pagar uma dívida?

Sim. Ambas as coisas são verdadeiras. É possível que a hesitação moral [moral waffling] sobre a escravidão de bens móveis [chattel slavery] tenha mantido a porta aberta para a usura na mente de muitas pessoas. Outras pessoas podem ver os trabalhos na prisão como um tipo de 'trabalho escravo' e propor que é imoral jogar pessoas na prisão apenas para obter trabalho delas, mesmo que estejam dispostas a concordar com isso. Mas deixando de lado esse tipo de especulação e casuística, claramente o trabalho futuro de um escravo não pode, como questão de fato objetivo, ser alienado do próprio escravo.

33) São Paulo não diz aos escravos para obedecerem a seus senhores?

Sim, embora isso provavelmente não tenha as implicações que as pessoas modernas presumem que tenha. A linguagem pode não significar o que elas pensam que significa, a relação entre senhor e escravo é (como a relação entre usurário e mutuário) moralmente assimétrica, a doutrina moral realmente se desenvolve à medida que ganhamos uma compreensão mais profunda das verdades eternas e encontramos novas situações, as pessoas modernas geralmente têm um conceito distorcido de propriedade, e também tendemos a ver qualquer tipo de sujeição à autoridade como desumanizante.

É verdade, porém, que, pelo menos no meu entendimento da teologia moral, a rejeição da escravidão de bens móveis e da usura estão intimamente conectadas.

34) A salvaguarda [safe harbor] da falência pessoal não implica que os empréstimos modernos são realmente sem recurso [non recourse]?

Não. Mesmo com a salvaguarda da falência pessoal, um contrato usurário é – por sua natureza de recurso total [full recourse] – uma compra das potencialidades de uma pessoa. As potencialidades de uma pessoa não são algo que realmente exista no momento da compra. Lembre-se que, para "possuir uma participação econômica" em (ou ter acesso econômico a) as potencialidades de uma coisa, você deve possuir uma participação em (ou ter algum tipo de reivindicação de propriedade contra) a coisa atual; e não é moralmente lícito comprar e vender participações econômicas em pessoas como se fossem propriedade.

Continuando a comparação com a escravidão (já que usura e escravidão estão no mesmo gênero moral), o fato de um escravo poder ter certos remédios legais no caso de um senhor abusivo, ou poder sob certas condições ter uma oportunidade de escapar de sua condição, não o torna menos escravo. Ele pode estar em melhor situação do que outros escravos que não têm esses remédios e oportunidades; mas ele ainda é um escravo.

Além disso, o fato de a proteção da falência pessoal estar disponível em casos de extrema dificuldade financeira não muda o fato de que os contratos mutuum exigem a devolução do que é emprestado em espécie em oposição a em particular (veja a Questão 35): que o que é emprestado é, nos termos de Aquino, consumido em seu uso pelo mutuário. O empréstimo mutuum por juros ainda cobra aluguel por literalmente nenhuma coisa, nada, e é, portanto, intrinsecamente injusto. A proteção da falência pessoal, portanto, não muda a natureza básica de um contrato usurário.

35) E se o empréstimo mutuum for feito em trigo, ouro ou carros de aluguel em vez de dólares fiduciários?

Note que, em um empréstimo mutuum, o que é devolvido ao credor pelo mutuário – que garante pessoalmente essa devolução sob os termos do contrato – não são as coisas reais e originais que foram emprestadas. Em vez disso, o que é devolvido é 'em espécie' — um empréstimo mutuum de um carro exigiria que o mutuário devolvesse um carro novo (ou qualquer carro velho) no final do contrato, não o carro real que foi emprestado. O mutuum trata inerentemente a moeda usada como fungível: como um tipo de coisa onde qualquer unidade de moeda é intercambiável com qualquer outra. Uma vez que o mutuário usou o que foi emprestado sob um empréstimo mutuum, ele não o possui mais e não pode devolvê-lo em particular ao credor. Portanto, realmente não importa o que foi usado como o token de troca ou moeda no contrato mutuum. Se o contrato exige que o mutuário se comprometa pessoalmente a devolver em espécie em vez de em particular, é um empréstimo mutuum, e cobrar juros é usura.

Um compromisso pessoal de devolver 'em espécie' é um compromisso de devolver algo que não existe realmente como uma coisa atual: é apenas abstratamente uma 'coisa' de tal e tal tipo. Um compromisso de devolver 'em particular' é um compromisso de devolver algo que existe realmente como uma coisa atual. Formalmente, então, a distinção entre moeda e propriedade no contexto de um contrato de investimento é que a moeda é devolvida em espécie, enquanto a propriedade é devolvida em particular. A primeira é a base de um mutuum; a última é uma condição necessária (mas não suficiente) para a formação de uma societas lícita.

Uma societas lícita pode criar, e frequentemente cria, retornos de investimento em espécie quando as coisas correm conforme o planejado ("Destes contratos [não-mutuum] pode-se obter ganho honesto." – Vix Pervenit). Mas todas as reivindicações contratuais de todas as partes devem terminar em propriedade realmente existente, não em reivindicações contra pessoas, a fim de evitar a usura. É por isso que fazer a pergunta "e se as coisas não correrem conforme o planejado?" é particularmente útil para distinguir contratos usurários de contratos não usurários.

São Tomás de Aquino refere-se a objetos prometidos em espécie como objetos "consumidos em seu uso", distintos dos objetos prometidos em particular. Isso obviamente não significa que as moedas de ouro originais sejam literalmente comidas ou derretidas e destruídas pelo mutuário (embora isso possa ser o caso em um empréstimo mutuum de, digamos, comida). Significa apenas que as moedas de ouro originais não estão mais na posse nem do credor nem do mutuário uma vez que o mutuário as usa. Um mutuum é esse tipo de acordo: uma promessa de devolver em espécie em oposição a em particular.

É verdade que o usurário pode acidentalmente receber de volta algumas das mesmas moedas de ouro (digamos) que ele emprestou, à medida que essas moedas circulam. Mas isso é puramente acidental: o que o contrato mutuum exige é que o mutuário garanta pessoalmente a devolução do principal em espécie, não preservar e devolver ativos reais alugados ou em copropriedade em particular.

36) Espere, isso significa que se eu emprestar meu carro e o mutuário o destruir, ele não me deve nada?

Depende dos detalhes do contrato. O princípio orientador é que contratos com recurso a ativos reais e especificados (e apenas esses ativos reais e especificados) são lícitos como investimentos que produzem lucro. Contratos com recurso total [full recourse] não são lícitos como investimentos que produzem lucro.

Primeiro, deve ser dito que questões de roubo, vandalismo, fraude, negligência e similares são questões criminais e, portanto, ficam fora do que é intrínseco ao próprio contrato. (Veja a Questão 49).

Mas acidentes acontecem, então suponha que um aconteceu e o carro foi destruído. Talvez um meteoro atingiu o carro e o destruiu. Suponhamos também que este foi um aluguel comercial com fins lucrativos: o mutuário foi contratado para pagar pelo uso do carro, não foi apenas um empréstimo amigável.

Se o mutuário ofereceu garantia e/ou a compra de cobertura de seguro fazia parte do contrato, a garantia e/ou os ativos da companhia de seguros cobrirão a perda.

No entanto, se o contrato diz que o mutuário deve (digamos) $5000 se o carro for destruído, e que ele é pessoalmente responsável [personally on the hook] por pagar juros sobre os $5000 se não puder pagar tudo de uma vez, então isso é usura.

Contratos sem garantia com fins lucrativos são problemáticos em geral quando (explícita ou implicitamente) afirmam recurso a pessoas particulares para recuperar perdas. Um contrato lícito deve sempre cobrir as várias contingências, terminando totalmente em ativos reais e existentes que garantem o contrato, a fim de evitar a usura. Se o credor quer $5000 em garantia para cobrir o carro em caso de acidente, ele deve obtê-lo como um depósito, uma garantia sobre o patrimônio líquido da casa [lien on home equity] ou outra propriedade, ou como uma apólice de seguro [insurance bond], em vez de tentar cobrá-lo após o fato.

A usura do lado do mutuário frequentemente envolve tentar gastar dinheiro ou arriscar outros recursos que você não pode realmente pagar com base nos ativos que você realmente possui. Se você não pode pagar para oferecer garantia ou pagar por uma apólice de seguro, você provavelmente não pode realmente arcar com o risco de alugar o carro.

Aqui está o Magistério sobre a questão específica (Papa Calisto III (1455-1458), Usura e Contrato de Aluguel), descrevendo um contrato moralmente lícito (citação completa aqui):

Mas o [credor], por outro lado, mesmo que os ditos bens, casas, terras, campos, posses e heranças pudessem, com a passagem do tempo, ser reduzidos à destruição e desolação completas, não teria poder para recuperar nem mesmo em relação ao preço pago.

Ou seja, um contrato de aluguel lícito que gera renda (que pode ou não ser rotulado como 'empréstimo' na linguagem moderna) é sem recurso [non recourse].

37) Vejo que o Magistério e Aquino foram realmente claros que a falta de recurso explícito a ativos reais é central para a usura: que empréstimos com recurso total [full-recourse lending] com fins lucrativos é o que é definido como o problema moral. Mas por que esse é o caso?

A usura envolve tratar pessoas (sujeitos) como coisas (objetos), porque envolve comprar "Bob me deve principal e juros" em oposição a comprar participações naquele projeto ali ou naquele conjunto de ativos ali, distintos de pessoas particulares. A forma mais extrema de tratar pessoas como propriedade é a escravidão de bens móveis [chattel slavery]. (Alguns autores discordam, vendo a usura como pior, e o argumento tem algum mérito). A usura está no mesmo gênero moral da escravidão.

Além disso, "Bob me deve principal e juros" não é uma coisa que realmente existe. Cobrar aluguel por literalmente nada, nenhuma coisa, é intrinsecamente injusto.

38) Mas você disse que coisas intangíveis ou apenas parcialmente tangíveis como patentes e negócios em operação podem ser 'objetos', e, portanto, podem ser propriedade. Então, como eu diferencio o que pode ser propriedade ontologicamente real do que não pode?

Propriedade ontologicamente real consiste em objetos. (Propriedade em geral refere-se a uma relação entre proprietários, sujeitos e objetos; mas o que ordinariamente chamamos de 'propriedade' como substantivo são os objetos nesta relação). Objetos podem ser alienados de pessoas e possuídos ou controlados por diferentes pessoas em diferentes momentos.

A economia moderna é muito antirrealista: está sob a ilusão de que o valor econômico é puramente subjetivo, ou seja, puramente uma função das preferências humanas, quaisquer que sejam. Mas o valor econômico não é puramente subjetivo: ele tem uma objetividade ineliminável. (A modernidade em geral é caracterizada pelo materialismo antirrealista).

Objetos, falando de forma muito geral, são coisas que têm uma existência independente de pessoas particulares (sujeitos). O contrário de objeto é sujeito, então objetos são coisas que existem por direito próprio independentemente das pessoas: coisas que não são pessoas e que são capazes de serem trocadas independentemente de pessoas particulares.

Empréstimos sem recurso [non recourse] representam reivindicações de propriedade em objetos: os ativos especificados aos quais o credor tem recurso (sob os termos do contrato) para recuperar principal e juros. Empréstimos com recurso total [full recourse] tentam afirmar um interesse de propriedade em pessoas, em oposição a (ou em adição a) objetos.

Note que quando Bob morre, o 'valor' de sua dívida com recurso total (qua recurso total) morre com ele. O valor de quaisquer contratos de dívida sem recurso não morre com nenhuma pessoa em particular, precisamente porque esse valor está ligado aos objetos específicos, não a um sujeito (pessoa) particular. Tudo a que um credor sem recurso tem direito sob o contrato pode sempre, por definição, ser recuperado (exceto em caso de roubo, fraude, vandalismo ou outros atos criminosos) da realidade objetiva. Mesmo que o valor da garantia vá a zero, foi especificado no contrato que essa garantia específica é tudo o que o credor sem recurso tem direito a recuperar. Foi isso que o credor concordou, pela definição de um contrato sem recurso.

Credores com recurso total frequentemente falham em recuperar totalmente seus direitos contratuais precisamente porque esses direitos são a 'coisas' que não são reais.

39) Mas espere, um credor com recurso total não pode ir atrás do espólio de Bob quando ele morre?

O recurso a pessoas específicas – o recurso a Bob – a parte que torna o empréstimo de recurso total – morre com Bob. A pessoa a quem os termos do contrato especificavam o recurso (implícita ou explicitamente) era Bob, e Bob já partiu deste mundo. É (às vezes, mas nem sempre) verdade que os credores podem ir atrás do espólio do falecido, mas isso é semelhante a uma situação com uma hipoteca de recurso total. Não é a falta de garantia que torna um empréstimo de recurso total: é o recurso financeiro total à pessoa, independentemente dos ativos nomeados, que torna um empréstimo de recurso total.

Na prática, quando uma pessoa morre, sua dívida de recurso total (às vezes) converte-se em dívida sem recurso, tendo seu espólio como os ativos. Mas ela não existe mais como dívida de recurso total: não há mais nenhuma pessoa específica que o credor possa perseguir para a recuperação do principal e dos juros; apenas ativos.

40) O Banco do Vaticano não faz empréstimos com recurso total?

Acho que não, mas não sei realmente a resposta para essa pergunta e ela não é muito relevante.

A maioria dos empréstimos e financiamentos institucionais é sem recurso, então o ponto que o artigo da Enciclopédia Católica sobre usura levanta sobre propriedades eclesiásticas é irrelevante para a questão da usura. Por outro lado, acho que havia caixas eletrônicos na Cidade do Vaticano quando estive lá, então provavelmente há pelo menos negócios próximos feitos com usurários. Quase todo mundo faz negócios próximos com usurários no primeiro mundo moderno.

Estipular tudo isso, no entanto, não teria qualquer influência na questão moral. A Igreja tem sido bastante explícita não apenas que o silêncio sobre uma questão não é evidência de aprovação, mas que as práticas seculares reais da Igreja estiveram erradas em alguns momentos. Veja o CIC 2298, por exemplo. O fato de a Igreja fazer algo institucionalmente (estipulado, embora neste caso isso não esteja estabelecido) não constitui aprovação moral disso.

41) E quanto àquele artigo da Enciclopédia Católica, afinal?

O artigo da EC [Enciclopédia Católica] falha em distinguir entre empréstimos com recurso total (mutuum) e empréstimos sem recurso (societas); uma distinção central para alguns dos pronunciamentos Magisteriais autoritativos sobre usura (e.g. veja as Questões 36 e 31) e central para o entendimento de Aquino sobre um “empréstimo”. O ponto que levanta sobre propriedades eclesiais hipotecadas é irrelevante, por exemplo, porque a Igreja é uma instituição, não uma pessoa, e as hipotecas eclesiais não são financiadas por empréstimos pessoais ou empréstimos garantidos por garantias pessoais. O melhor que se pode dizer é que a falha em distinguir entre empréstimos mutuum e outros tipos de contratos cria ambiguidade no artigo.

O fato de o artigo da EC tentar minar a autoridade de uma encíclica papal (Vix Pervenit), e considerar minar a autoridade dessa encíclica central para sua tese, também deve ser considerado. Defensores do artigo frequentemente afirmam sem evidências que este artigo de um grupo de editores de Nova York reflete a mente da Santa Sé na época. O máximo que se pode dizer sobre isso é que a EC passou pela revisão dos censores católicos sob o ordinário local; mas isso dificilmente torna as visões expressas nela inequívocas, muito menos magisteriais.

42) Por que você diz que a crise financeira de 2008 foi fundada na usura?

A causa raiz da crise financeira de 2008 foram os empréstimos imobiliários com recurso total com índices empréstimo-valor (loan-to-value ratios) de instáveis a absurdos. Sem esse inventário de empréstimos ruins na base da pirâmide, todo o esquema de ‘títulos imobiliários com classificações “melhoradas” por uma rede circular autorreferencial de credit default swaps’ nunca teria ‘funcionado’.

A usura não foi o único tipo de atividade financeira moralmente fraudulenta envolvida, no entanto. Veja este post para minha análise sobre a securitização circular que foi sobreposta à pirâmide de empréstimos usurários.

Sem a execução de contratos usurários (ou seja, com recurso total), credores sãos interessados em sua própria sobrevivência financeira não fariam empréstimos (sem recurso, que seria o único tipo executado pelo governo) com índices empréstimo-valor de instáveis a absurdos. Isso não resolveria todos os problemas do mundo, claro, mas tornaria mais difícil engajar-se em muitos dos esquemas tipo Ponzi que surgem em mercados financeiros altamente abstraídos.

A razão pela qual a usura ‘funciona’ é porque os usurários podem comprar ‘cotas de escravidão’ em indivíduos (em oposição a cotas de propriedade em ativos); e indivíduos de poucos recursos são tentados a isso porque vender uma parte de si mesmos em escravidão os faz sentir (e gastar) como se fossem mais ricos do que realmente são.

43) Isso significa que, idealmente, os consumidores deveriam sempre pagar à vista por coisas como casas e carros?

Não necessariamente. Provavelmente há muitas ocasiões em que faz todo o sentido para um “credor” e um “mutuário”, digamos, comprar colaborativamente uma casa ou um carro juntos para o mutuário ocupar ou usar.

O que isso significa é que pessoas que não conseguem apresentar garantias suficientes (na forma de entradas, apólices de seguro, ônus sobre outros ativos reais e similares) não conseguiriam um empréstimo para algo que realmente não podem pagar. Significa que, em geral, as forças de mercado manteriam os índices empréstimo-valor sãos. Sem a capacidade de perseguir os mutuários enquanto pessoas independentemente dos ativos reais, credores e mutuários teriam que operar dentro de seus próprios meios e não poluiriam o bem comum com valor econômico fraudulento que na verdade não existe.

Veja este post no Orthosphere para uma discussão mais aprofundada.

44) Suponha que estou pensando em concordar com um contrato financeiro que produzirá alguns juros ou outro lucro para mim – digamos, abrindo uma conta bancária. Como posso ter certeza de que o que estou prestes a fazer não é usura?

Se você puder identificar indivíduos específicos que são pessoalmente responsáveis pelo acordo para devolver seu principal e pagar juros lucrativos, o contrato é usura. Se você não puder identificar tais indivíduos, o contrato não é usura.

Os próprios bancos tendem a fazer empréstimos com recurso total (ou seja, usurários) a indivíduos. Abrir uma conta remunerada é, portanto, cooperação material remota com o mal quando esse é o caso – e quase sempre é o caso nas economias modernas. No entanto, o acordo de conta poupança ou corrente remunerada que você faz com o banco não tem recurso total a nenhuma pessoa ou pessoas específicas, portanto, não é em si usurário. Você não fez nada intrinsecamente errado ao abrir a conta.

Falo mais sobre o que as contas bancárias são e não são neste post.

Na verdade, mesmo empréstimos para férias ou para comprar mantimentos não são necessariamente usurários. Depende se o ‘empréstimo’ em questão é um mutuum (recurso total) ou uma societas (sem recurso).

45) É moralmente lícito cobrar juros sobre um empréstimo com recurso total apenas para cobrir a inflação?

Não. A resposta está implícita na Questão 35 — uma vez que você compreendeu a diferença entre mutuum e societas, fica claro que o preço da ‘moeda’ muito provavelmente flutuará por toda parte em relação a outras coisas, qualquer que seja a coisa usada como moeda. O mutuum pode ser em trigo ou laranjas ou mesmo computadores ou carros, em oposição a dólares; mas isso não muda a natureza do contrato.

Portanto, se for um mutuum com juros, é usura, e a taxa de inflação (ou a flutuação de preços entre commodities ou moedas em geral) é irrelevante.

Na prática, o que o usurário “apenas-para-cobrir-a-inflação” está tentando fazer é escravizar o mutuário (em oposição a comprar direitos sobre alguma propriedade realmente existente) como um hedge contra a inflação. Toda propriedade está sujeita à entropia, decadência, desvalorização, roubo, agitação política, mudanças nas condições de mercado ou circunstâncias pessoais, e outros riscos. É aceitável, em termos gerais, fazer investimentos como um hedge contra isso, em um esforço para preservar a riqueza; mas não é moralmente lícito fazer empréstimos usurários como um hedge contra isso.

[Algumas pessoas acharam esta abordagem da resposta confusa, então eu a respondi novamente de uma perspectiva ligeiramente diferente na Questão 53]

46) E quanto aos contratos futuros? São usurários?

Eu poderia continuar e falar sobre todos os tipos de contratos diferentes e as implicações práticas. Mas o ponto principal é que esses contratos são geralmente aceitáveis, desde que sejam garantidos em última instância pelo recurso a algum inventário de ativos reais e apenas a esse inventário de ativos reais – se forem sem recurso. Quase qualquer estrutura criativa de contrato é possível em teoria — desde que ativos reais sejam postos como garantia e as partes concordem que todo o recurso termina nesses ativos reais. (Isso não significa que todo e qualquer contrato criativo sem recurso seja moralmente lícito por necessidade: apenas significa que eles não são especificamente usurários. Veja a Questão 11).

Darei um exemplo simples de um contrato futuro não usurário. (Um exemplo real poderia envolver apólices de seguro ou similares como parte da arbitragem sobre os ativos reais vinculados ao contrato; mas tentarei tornar isso o mais simples possível para descrevê-lo conceitualmente).

Suponha que seja primavera, e o Fazendeiro Bob e o Investidor Bill discordam sobre se os preços do trigo vão subir ou descer. Bill acha que haverá uma seca, e Bob acha que a colheita será grande. Dada a oferta e a demanda, então, Bill espera preços altos do trigo no outono e Bob espera preços baixos do trigo.

Então Bob e Bill celebram um contrato sem recurso sob o qual Bill paga a Bob 1000 groats agora, e Bob concorda em entregar uma tonelada de trigo a Bill em 1º de novembro.

O contrato é sem recurso porque Bob penhora o campo real onde planeja cultivar o trigo como garantia, e Bill concorda que seu recurso está limitado à execução da garantia sobre aquele campo. Na prática, Bill agora é co-proprietário do campo com Bob, e seus interesses comerciais mútuos – sua societas – estão limitados àquele campo: um ativo real distinto das pessoas.

Agora, talvez Bob estivesse certo, ou pelo menos ele cultivou o trigo com sucesso, e em 1º de novembro ele entrega uma tonelada de trigo a Bill. Mas talvez Bill estivesse tão certo que Bob não conseguiu cultivar o trigo. A seca destruiu a colheita de Bob. Nesse caso, Bill e Bob concordaram em executar a garantia, e Bob terá que vender o campo para comprar uma tonelada de trigo para entregar a Bill.

No entanto, como o contrato é sem recurso, esse é o limite do recurso de Bill – conforme acordado pelas partes desde o início, intrínseco ao contrato. Se a venda do campo não levantar dinheiro suficiente para comprar o trigo agora muito caro, Bill recebe apenas o tanto que o valor arrecadado puder realmente comprar. Além disso, se a venda do próprio campo levantar apenas 800 groats, então Bill recupera apenas 800 groats — menos que o valor principal de seu investimento inicial. O recurso de Bill – como eles concordaram desde o início – é limitado pela propriedade real penhorada no contrato.

A conclusão, mesmo que você não siga o exemplo, é que a proibição da usura não proíbe o investimento razoável, incluindo aqueles que envolvem arriscar ativos que você realmente possui com base em como você acha que as coisas se desenvolverão no mercado.

O que a proibição da usura proíbe é escravizar seu semelhante às suas expectativas, mesmo quando ele está disposto a ser escravizado assim: ela proíbe contratos com recurso total visando lucro.

47) Qual é a evidência contra Tomás de Aquino e a favor da visão moderna de que uma quantia razoável de lucro sobre um simples empréstimo mutuum é moralmente lícita?

Existem três pilares principais de evidência que são citados: (a) mudanças no Direito Canônico e na prática pastoral; (b) o conceito escolástico de “títulos extrínsecos” sobre empréstimos mais ou menos aprovados (ou explicitamente-não-explicitamente negados, mais precisamente) como uma noção geral (sem nenhum específico explicitamente aprovado) pelo Magistério; e (c) declaração Magisterial de que as práticas específicas dos “Montes de Piedade” – agências de crédito medievais patrocinadas pela Igreja para ajudar os pobres fazendo “empréstimos” a juros baixos – não eram usurárias e, de fato, eram louváveis.

a) O primeiro pilar são as mudanças no Direito Canônico e na prática pastoral. Como mencionado anteriormente (Questão 29), antes de uma declaração do Santo Ofício encerrando a prática em 31 de agosto de 1831, era frequentemente imposto que um usurário fizesse uma prestação de contas de todo o dinheiro que havia ganhado através da usura e fizesse restituição antes de receber a absolvição sacramental. Também era frequentemente verdade que (como é o caso agora) confessores e leigos não compreendiam com precisão a doutrina da usura; assim, empresários que se envolviam em contratos e transações perfeitamente lícitos eram às vezes assediados, tinham os sacramentos negados, eram instruídos a liquidar seus bens e tinham o enterro cristão negado.

A intervenção da Santa Sé sobre a questão, através do Santo Ofício e da revisão do Direito Canônico, basicamente afirmou que, desde que um penitente estivesse preparado para seguir as instruções da Santa Sé sobre a questão da usura, ele deveria receber a absolvição e, em geral, ser deixado em paz. Isso, na prática, removeu o problema de entender os detalhes da usura da alçada dos confessores (que frequentemente eram financeiramente ingênuos).

Que este conjunto de mudanças pastorais e legais não poderia, nem mesmo em princípio, modificar a doutrina é manifesto.

b) O segundo pilar, os títulos extrínsecos (mencionados brevemente na Questão 13 e Questão 14), são um assunto que poderia – mas realmente não precisa – ocupar um livro inteiro por si só. A razão pela qual poderia ocupar muita discussão é mais histórica do que conceitual: os escolásticos passaram um bom tempo discutindo e debatendo o assunto. O conceito de “títulos extrínsecos” é abordado brevemente em Vix Pervenit, que explicitamente não nega explicitamente a validade do conceito de títulos extrínsecos:

Por estas observações, porém, não negamos que por vezes, juntamente com o contrato de empréstimo, certos outros títulos - que não são de todo intrínsecos ao contrato - possam correr paralelamente a ele. Destes outros títulos, surgem razões inteiramente justas e legítimas para exigir algo acima e além do montante devido no contrato.

Como acontece com quase tudo, há várias maneiras de interpretar isso conceitualmente, porque os termos podem ser entendidos como significando várias coisas diferentes e às vezes incompatíveis. Por exemplo, uma maneira de pensar sobre um “empréstimo” sem recurso (e você verá algumas pessoas discutindo isso sob esse tipo de enquadramento) é pensar nele como um mutuum juntamente com um contrato adicional. Este contrato “adicional” remove a garantia pessoal de reembolso e a substitui por uma promessa de transferir a propriedade de bens específicos se o mutuário parar de fazer pagamentos: assim obtemos um empréstimo sem recurso. É a partir deste segundo contrato adicional, que concede ao credor um interesse de propriedade na garantia e cancela a obrigação pessoal do mutuário de reembolsar, que surge um justo título ao lucro.

No entanto, quando a terminologia é usada dessa forma – quando a propriedade mais essencial de um mutuum (Aquino: “o mutuário detém o dinheiro por sua conta e risco e é obrigado a devolvê-lo integralmente”) é removida e substituída por uma promessa de propriedade realmente existente que limita e encerra totalmente a obrigação do mutuário – é editorialmente mais claro apenas reconhecer que o que temos é um tipo de contrato essencialmente diferente. Esses tipos de contratos, de fato, têm seus próprios nomes: um census (Veja a Questão 31) ou hipoteca sem recurso (veja a citação completa de “Usura e Contrato de Aluguel” de Regimini Universalis), juntamente com a aprovação explícita pelo Magistério como não usurários quando sem recurso.

O Magistério (e Aquino) tornam a distinção entre contratos com recurso total e sem recurso central para a usura em várias proclamações autoritativas (veja a Questão 31 e Questão 36). Não é surpreendente, então, que usar uma linguagem que reflita essa distinção essencial seja editorialmente esclarecedor, enquanto uma linguagem que ignora a distinção tende a turvar as águas; mesmo nos casos em que pode ser interpretada de maneira tecnicamente correta.

Isso não sugere que justos títulos a algo acima do principal não possam surgir no caso de um simples empréstimo mutuum. O título específico de “damnum emergens”, ou compensação pelos custos reais do credor ou danos reais decorrentes diretamente da concessão do empréstimo, foi aceito até mesmo pelo linha-dura da usura, Aquino.

A aprovação conceitual (ou não desaprovação) de títulos extrínsecos em geral, combinada com a aprovação Magisterial explícita das práticas específicas dos “Montes de Piedade” (a seguir na parte (c)), constituem o principal argumento católico progressista a favor da cobrança de juros lucrativos sobre um simples empréstimo mutuum.

Vale ressaltar novamente, porém, que o Magistério condenou diretamente a cobrança de juros sobre um mutuum para recuperar o “custo de oportunidade” ou o “valor do dinheiro no tempo” (Veja as Questões 14 e 15). Como veremos, quando se trata do terceiro pilar do caso progressista, a evidência real, de fato, vai contra a ideia de que obter lucro com um simples empréstimo mutuum seja moralmente lícito por qualquer motivo.

c) A Questão 13 abordou o terceiro pilar de forma geral e breve. Os chamados “Montes de Piedade” foram um desenvolvimento institucional de esforços para fornecer crédito aos pobres para ajudá-los a escapar de situações terríveis, incluindo a usura e outras explorações por credores gananciosos. Essas instituições às vezes emprestavam dinheiro sem taxas ou juros, mas é claro que mesmo uma instituição sem fins lucrativos tem despesas reais e alguém tem que arranjar o dinheiro para pagá-las. Assim, juros eram mais frequentemente cobrados nesses empréstimos de “microcrédito” ou “microfinanças” aos pobres. Houve um tremendo conflito sobre se essas instituições específicas eram ou não culpadas de usura. Esse conflito foi resolvido pelo Magistério:

Com a aprovação do sagrado Concílio (Quinto Concílio de Latrão), declaramos e definimos que os referidos “Montes de piedade” estabelecidos pelas autoridades civis e até agora aprovados e confirmados pela autoridade da Sé Apostólica, nos quais uma taxa moderada de juros é recebida exclusivamente para as despesas dos funcionários e para outras coisas pertencentes à sua manutenção, como está estabelecido, para uma indenização destes no que diz respeito a esta matéria, além do capital sem lucro para estes mesmos Montes, não oferecem nenhuma espécie de mal, nem fornecem um incentivo ao pecado, nem de forma alguma são condenados, mas sim que tal empréstimo é meritório e deve ser louvado e aprovado, e de modo algum considerado usura. – Leão X, Inter Multiplices, 28 de abril de 1515 (citado em Denzinger). (Ênfase minha)

Provavelmente, a segunda coisa a notar, seguindo a repudiação direta da obtenção de lucro nesta declaração, é que não está claro se os “empréstimos” feitos pelos Montes eram empréstimos mutuum. Tenho sido crítico da ambiguidade e precisão da Enciclopédia Católica sobre usura (Questão 41) porque ela omite inteiramente – talvez seus autores fossem simplesmente ignorantes dos documentos necessários – a distinção Magisterial (também encontrada em Aquino) entre contratos com recurso total e sem recurso (Questão 31 e Questão 36); o artigo também afirma que Vix Pervenit “condena formalmente” o crédito institucional na Igreja vinculado à propriedade da Igreja – o que na verdade não faz, já que a encíclica não discute hipotecas sobre propriedades da Igreja – sugerindo que a Igreja aprova juros sobre “empréstimos” (como um termo ambíguo) “na prática”.

Se a Enciclopédia Católica tiver os fatos corretos sobre os Montes de Piedade, então não está claro se eles faziam empréstimos mutuum. Os Montes operavam como casas de penhores modernas, recebendo propriedades existentes como garantia e fazendo empréstimos sem recurso contra a propriedade:

O valor de um determinado empréstimo era igual a dois terços do valor do objeto penhorado, que, se não resgatado dentro do prazo estipulado, era vendido em leilão público, e se o preço obtido por ele fosse maior que o empréstimo com os juros, o excedente era entregue ao proprietário.

Claro, como explicado na Questão 11 deste documento, só porque um contrato não, nas palavras de Bento XIV, “cai sob a rubrica precisa da usura” não significa que não seja explorador e errado. Os agiotas judeus e lombardos muitas vezes também exigiam garantias e cobravam quantias ultrajantes de juros. Não sei quais índices empréstimo-valor eles mantinham ou se sempre executariam sentenças de deficiência contra os mutuários, mas lembre-se que só porque um contrato não é tecnicamente usura não significa que não seja explorador e errado. É importante entender a usura corretamente; mas focar demais especificamente na usura poderia facilmente se tornar uma distração de outras injustiças reais.

E isso é sempre algo importante a reconhecer: que mesmo quando um determinado contrato não “cai sob a rubrica precisa da usura” (Vix Pervenit), “tudo o que é recebido acima e além do que é justo é uma injustiça real.” (Ibid)

48) E quanto à definição do Quinto Concílio de Latrão?

O Quinto Concílio de Latrão em um ponto define a usura desta forma:

[N]osso Senhor, segundo o evangelista Lucas, nos vinculou por um mandamento claro de que não devemos esperar nenhum acréscimo à soma do capital quando concedemos um empréstimo [mutuum]. Pois esse é o verdadeiro significado da usura: quando, a partir de seu uso, uma coisa que nada produz é aplicada à aquisição de ganho e lucro sem nenhum trabalho, nenhuma despesa ou nenhum risco.

Isso é perfeitamente consistente com a usura como entendida ao longo deste FAQ, nas outras declarações Magisteriais citadas (na verdade, o mesmo concílio já foi citado ao discutir os Montes de Piedade na Questão 47), e nos escritos de Aquino sobre o assunto. Em particular, um empréstimo mutuum, como Aquino também observa, é um tipo de contrato no qual o risco normal associado à propriedade é suportado pelo mutuário. O lucro para o credor de um empréstimo mutuum nunca é moralmente lícito: o mutuário, em um sentido literal, tornou-se o proprietário do que foi emprestado, porque ele pode fazer com isso o que quiser e qualquer risco de perda é dele.

Outros tipos de contratos – contratos que não são empréstimos mutuum, ou seja, que são contratos sem recurso – podem produzir lucros lícitos, mesmo a uma taxa de retorno fixa, limitados pelo conjunto de propriedades sobre as quais o contrato é uma reivindicação (veja a Questão 31); como afirmado em várias declarações Magisteriais citadas ao longo deste FAQ. Mas esses lucros sempre vêm em associação com os riscos inerentes às reivindicações contra a propriedade, sem garantias pessoais. Se a propriedade for perdida devido a desastre natural, etc., e não houver um pool de propriedades designadas como seguro, etc., então o investimento é perdido: nenhuma outra pessoa está carregando o risco, então o lucro pode ser lícito sob a definição do Quinto Concílio de Latrão. A definição do Quinto Concílio de Latrão não está em conflito com Vix Pervenit e os outros documentos Magisteriais citados aqui que afirmam a licitude do lucro em investimentos legítimos sem recurso.

A confusão muitas vezes surge porque as pessoas modernas têm o hábito de se referir a tipos de contratos fundamentalmente diferentes com a única palavra “empréstimo”.

49) É aceitável que um comerciante cobre multas por atraso no pagamento?

É certamente moralmente aceitável que vítimas genuínas de fraude ou roubo sejam compensadas por suas perdas reais. Um comprador de produtos ou serviços que é capaz de pagar, mas se recusa a pagar quando esses produtos ou serviços foram recebidos, cometeu um ato de roubo ou fraude. Um comprador que não é capaz de pagar, mas finge ser, está igualmente cometendo roubo ou fraude.

Um caso mais complicado é quando um comerciante concede crédito e permite que um comprador pague depois. Se o 'comprador' for uma instituição e a garantia do crédito comercial for o balanço patrimonial de uma instituição, isso não é um empréstimo mutuum, então a proibição da usura não se aplica. Se o comprador for um indivíduo que está garantindo pessoalmente o pagamento ao comerciante, isso é um empréstimo mutuum e a proibição da usura se aplica. Isso dá origem a dois casos possíveis. Em um caso, o comprador é capaz de pagar em dia, mas se recusa. No outro caso, o comprador sofreu alguma catástrofe e não consegue pagar. O primeiro é roubo ou fraude; o último é infortúnio comercial, um risco associado à atividade empresarial. Se o comerciante não tiver a garantia adequada, ele deve absorver a perda até que o comprador possa pagar e não deve insistir em nenhuma penalidade acima do valor devido. Se o comerciante não quiser ficar exposto a esses tipos de perdas, ele pode providenciar algum tipo de garantia (reivindicações contra propriedades especificadas) ou pode exigir pagamento na entrega em vez de conceder crédito.

Minha própria visão provisória é que roubo e fraude deveriam geralmente envolver condenação criminal e penalidades de algum tipo, não meramente a compensação da vítima no nível do ilícito civil, porque roubo e fraude prejudicam o bem comum, não apenas a vítima. Uma maneira pela qual prejudicam o bem comum é abrindo a porta para vários tipos de 'usura oculta' — ladrão e 'vítima' em conluio tentam contornar a proibição da usura, criando uma situação na qual o mutuário 'frauda' o credor, piscadela, piscadela, de modo que o mutuário deve uma penalidade além do principal. O conluio em falsa-fraude para produzir penalidades sob o sistema legal – usura oculta – simplesmente tornaria ambas as partes culpadas.

Se isso parecer severo, considere que roubar um pacote de chicletes é roubo criminal, porque roubar prejudica não apenas a vítima, mas o bem comum. Categorizá-lo como criminal não diz realmente nada sobre a gravidade da ofensa em um caso específico; apenas reconhece o dano ao bem comum além da vítima, ou a fraude ao soberano pelas partes em conluio. Uma discussão sobre crime versus ilícito civil está além do escopo deste FAQ atual, mas é suficiente apontar que a 'usura oculta' neste tipo de caso envolve (assumindo um sistema legal justo que se recusa a executar contratos usurários) uma conspiração entre mutuário e credor para falsificar um ato de fraude para que o sistema legal execute uma penalidade.

50) John Noonan e outros estudiosos afirmaram que não podemos compreender a doutrina da usura sem entrar na teoria medieval do preço justo. No entanto, você diz que a doutrina da usura não depende de nenhuma teoria econômica ou teoria do preço justo. Por que alguns estudiosos dizem que existe uma dependência entre a doutrina da usura e a teoria medieval do preço justo?

A maneira de descobrir se um contrato para ganho é usurário ou não é procurar por termos contratuais que tratem uma garantia pessoal como se fosse propriedade. É moralmente lícito para um proprietário lucrar com o uso de sua propriedade, ou de propriedade contra a qual ele tem reivindicações. Mas a promessa de um mutuário de reembolsar o principal que foi consumido não é propriedade. Uma mera promessa de maçãs não é, em si, maçãs reais. E o fato histórico de que existiram algumas maçãs que foram consumidas ou dinheiro que foi gasto não é — o fato histórico não é — maçãs ou dinheiro reais.

Se uma mera promessa de reembolso em espécie fosse realmente propriedade, ela poderia ser alienada do mutuário e retomada pelo credor, caso o mutuário parasse de fazer pagamentos. Cobrar aluguel ou auferir lucros de uma mera promessa de reembolso – cobrar “aluguel” por “propriedade” que não existe independentemente de qualquer pessoa em particular – é usura. O fato de que o que é devido sob um mutuum não pode ser recuperado da realidade, mas deve por definição ser recuperado de uma pessoa, demonstra que não existe no sentido pertinente necessário para justificar aluguéis ou lucros.

Eu disse em vários lugares (porque é verdade) que a doutrina moral que condena a usura não depende de nenhuma teoria econômica mais ampla ou teoria do preço justo, e é, de fato, compatível com muitas dessas teorias. Por outro lado, é verdade que os usurários muitas vezes se aproveitavam das ambiguidades de preço para cobrar o que os medievais chamavam de “usura oculta”. É daí que surge o mito da interdependência entre a doutrina da usura e a teoria medieval do preço justo. Como parece ocorrer em muitas áreas da teologia moral, se as pessoas não estivessem tentando obter uma isenção para cometer um erro moral por um tecnicismo, a questão nunca teria surgido em primeiro lugar.

Suponha que eu lhe empreste 100 maçãs e concorde em ser reembolsado em dois meses. Mas em vez de pedir o reembolso em maçãs, peço que você garanta pessoalmente (aham) o reembolso de 100 laranjas. Como as laranjas valem mais do que as maçãs quando assinamos nosso contrato – e é aqui que o preço justo pode entrar em jogo – este contrato envolve “usura oculta”.

Que isso é “usura oculta” fica claro uma vez que observamos que os termos exigem lucro contratual para o credor em conjunto com uma garantia pessoal do mutuário. Empréstimos garantidos pessoalmente (empréstimos mutuum) só são moralmente lícitos como atos de caridade ou amizade. Eles não são moralmente lícitos como investimentos que produzem lucro, mesmo quando o credor poderia hipoteticamente ter obtido lucro de alguma outra forma se ele, contrafactualmente, tivesse escolhido fazer algo diferente.

Isso não prejudica de forma alguma o investimento legítimo para ganho. (Também não dá um passe moral gratuito para todo contrato que não seja, estritamente falando, usurário). A maneira de evitar celebrar contratos usurários (incluindo aqueles que envolvem 'usura oculta') é evitar termos contratuais comerciais que exijam garantias pessoais de reembolso. A única razão pela qual o 'preço justo' entra em jogo é porque as partes estão tentando criar um contrato usurário de fato, evitando a usura por um tecnicismo — na ambiguidade dos preços relativos de maçãs e laranjas. Isso não seria um problema se os contratos fossem sem recurso, ou seja, se o contrato não fosse uma forma de mutuum. Mas os acordos mutuum nunca são moralmente lícitos para ganho em primeiro lugar. A noção de que são ou deveriam ser está enraizada, como muitos erros da era moderna, no antirrealismo metafísico.

Para leitura adicional, discuto a estrutura de (por exemplo) dívida empresarial moralmente lícita (como títulos corporativos), contratos futuros, contratos de aluguel e apólices de seguro em outras partes deste FAQ.

Deixo vocês com esta citação de São Francisco Xavier, dando conselhos aos confessores (ênfase minha):

‘Quando no sagrado tribunal da penitência tiverdes ouvido tudo o que vossos penitentes se prepararam para confessar de seus pecados, não penseis imediatamente que tudo está feito e que não tendes mais nenhum dever a cumprir. Deveis ir mais longe para investigar e, por meio de perguntas, vasculhar as faltas que deveriam ser conhecidas e remediadas, mas que escapam aos próprios penitentes por causa de sua ignorância.

Pergunte-lhes que lucros obtêm, como e de onde? qual é o sistema que seguem nas trocas, nos empréstimos e em toda a questão da garantia dos contratos?

Geralmente descobrireis que tudo está contaminado com contratos usurários, …’

51) Não é usura ou algo relacionado à usura quando os bancos 'criam dinheiro' num sistema de reservas fracionárias?

A forma como a questão é colocada entende a relação ao contrário. Quando os bancos fazem empréstimos sem recurso pessoal (non recourse loans), eles estão a securitizar propriedade. É apenas quando fazem empréstimos usurários que criam 'dinheiro' literalmente do nada (isto é, nada além das promessas pessoais dos mutuários de reembolsar). Explico isto com mais detalhe nesta publicação do blog.

52) Ainda tenho dificuldade com toda essa questão do 'empréstimo para consumo'. Por que é que uma garantia pessoal de reembolso é equivalente a um empréstimo para consumo?

Num mutuum, ou num contrato mais complexo que inclui um mutuum, como uma hipoteca residencial que permite um julgamento por deficiência (deficiency judgment) contra o mutuário, a obrigação do mutuário de reembolsar permanece mesmo que os fundos e todas as coisas compradas com os fundos sejam consumidos. Tendemos a pensar em 'empréstimo para consumo' como referindo-se ao tipo de coisa que é emprestada ou ao que é feito com os fundos, em oposição ao que o contrato autoriza e exige. Mas a distinção entre um mutuum e outros contratos não está no tipo de propriedade que é trocada ou no que o mutuário faz com a propriedade; está na natureza do próprio acordo. Um mutuum contempla e prevê o consumo ou alienação da propriedade que é emprestada em troca de uma promessa pessoal (IOU). Aqui está Aquino novamente:

Como diz o Filósofo na Política, as coisas podem ter dois usos: um específico e primário; outro geral e secundário. Por exemplo, o uso específico e primário dos sapatos é usá-los, e o seu uso secundário é trocá-los por outra coisa. E, inversamente, o uso específico e primário do dinheiro é como meio de troca, uma vez que o dinheiro foi instituído para este propósito, e o uso secundário do dinheiro pode ser para qualquer outra coisa, por exemplo, como garantia ou para exibição. E a troca é um uso que consome, por assim dizer, a substância da coisa trocada na medida em que a troca aliena a coisa daquele que a troca. E assim, se as pessoas emprestassem o seu dinheiro a outras para uso como meio de troca, que é o uso específico do dinheiro, e buscassem um retorno por este uso além do principal, isso seria contrário à justiça. Mas se as pessoas emprestam o seu dinheiro a outras para outro uso no qual o dinheiro não é consumido, haverá a mesma consideração que em relação às coisas que não são consumidas no seu próprio uso, coisas que são licitamente alugadas e arrendadas. E assim, se alguém dá dinheiro selado numa bolsa para depositá-lo como garantia e depois recebe recompensa, isso não é cobrança de juros, pois envolve aluguel ou locação, não um contrato de empréstimo. E o raciocínio é o mesmo se uma pessoa dá dinheiro a outra para usá-lo para exibição, assim como, inversamente, se alguém dá sapatos a outro como meio de troca e por isso buscasse uma recompensa além do valor dos sapatos, haveria cobrança de juros.

— Santo Tomás de Aquino, De Malo, Oxford University Press, traduzido por Brian Davies e Richard Regan. (Ênfase minha)

53) Por que o mutuário do mutuum não deve pelo menos juros suficientes para compensar a inflação?

Vamos assumir, para fins de argumentação, que cobrar juros com base em contrafactuais (custo de oportunidade) é moralmente lícito, embora não o seja: que o empréstimo mutuum com juros é justificável com base em narrativas contrafactuais sobre coisas que poderiam ou não ter acontecido se escolhas diferentes tivessem sido feitas.

Diz-se frequentemente que dinheiro agora vale mais do que dinheiro depois, e um argumento comum é que isso justifica a cobrança de juros sobre empréstimos mutuum: pelo menos juros suficientes para compensar os efeitos da inflação ou desvalorização da moeda.

Como é típico das visões antirrealistas modernas da propriedade (veja a Questão 10 para uma visão realista), isto entende as coisas de forma quase exatamente inversa. De facto, se o argumento dos contrafactuais ou custo de oportunidade fosse válido em primeiro lugar, o que se seguiria é que o credor deveria pagar juros ao devedor.

A propriedade em si está sempre sujeita à deterioração. Suponha que lhe empresto pêssegos frescos e garanto pessoalmente dar-lhe o mesmo número de pêssegos frescos daqui a seis meses.

Para lhe fornecer pêssegos frescos daqui a seis meses, tenho de assumir riscos e investir mais capital e trabalho. Se eu simplesmente guardar os seus pêssegos e lhos devolver, eles estarão apodrecidos, porque os pêssegos que me emprestou estão sujeitos à deterioração. Você deveria pagar-me juros, já que quando lhe dou pêssegos frescos em seis meses, está a receber um valor maior de volta do que o que deu. Eu garanti-lhe pessoalmente pêssegos frescos em seis meses e assumi todo o risco e trabalho de os fornecer. (Nota: a Questão 46 fornece uma descrição de um contrato de futuros não usurário, ou seja, um contrato de futuros com fins lucrativos que não se baseia num empréstimo mutuum).

Garantir pêssegos frescos mais tarde requer investimento, trabalho e risco. (A Questão 48 é pertinente). Pêssegos num balde agora mesmo não requerem nenhuma dessas coisas. Se quaisquer juros baseados em contrafactuais forem justificáveis, deveriam ir para a parte que assume a tarefa e o risco de fornecer pêssegos frescos em seis meses: o devedor.

E o mesmo é verdade para o dinheiro, ou qualquer propriedade. (Mateus 6:19 – “Não acumuleis para vós tesouros na terra, onde a traça e a ferrugem consomem, e onde os ladrões arrombam e roubam.”) Se a entropia ou a deterioração (por exemplo, a inflação) justifica de alguma forma a cobrança de juros sobre um empréstimo mutuum, os juros que justifica são devidos ao devedor, não ao credor; porque o devedor é a pessoa que assumiu todo o risco e despesa de preservar o capital do credor.

O devedor deveria ser compensado pelas despesas que o credor teria incorrido se o credor tivesse mantido o seu capital trancado (mediante taxa) num cofre de aluguel, em vez de o dar ao devedor para preservação e custódia. Se o devedor está a fornecer um serviço aproximadamente equivalente a um cofre de aluguel, os juros deveriam fluir na direção oposta à proposta pelo usurário. Os cofres de aluguel têm de ser alugados por uma razão.

A falácia em tudo isto reside na noção de que os custos de oportunidade são compensáveis em empréstimos mutuum em primeiro lugar (veja a Questão 14), e na ideia de que o empréstimo mutuum seja alguma vez moralmente lícito como meio de ganho econômico – onde a preservação da riqueza é um tipo de ganho – em oposição a um ato de caridade ou amizade.

Mas uma vez que concedemos a premissa de que os custos de oportunidade são compensáveis para fins de argumentação, o credor deveria estar a pagar juros ao devedor. A história do devedor sobre contrafactuais "poderia ter sido" está mais em contato com a realidade do que a história do credor sobre contrafactuais "poderia ter sido", porque preservar e manter a propriedade contra as forças da entropia sempre requer risco, trabalho e investimento.

54) Está a sugerir que simplesmente preservar o poder de compra econômico de alguma propriedade é um tipo de ganho?

Sim.

O homem moderno está tão acostumado à usura que, quando se trata de riqueza, convenceu-se de que a segunda lei da termodinâmica funciona ao contrário. Aqui no mundo real, no entanto, a propriedade e o seu poder de compra deterioram-se a menos que o proprietário trabalhe ele mesmo, invista mais propriedade para proteger o que tem, e/ou assuma riscos com a sua propriedade, colocando-a a trabalhar como capital produtivo.

Mesmo a propriedade mais durável – um esconderijo de metais preciosos, digamos – requer algum investimento de trabalho, risco e propriedade adicional para meramente preservá-la. Enterrar um pote de ouro exige trabalho. Adquirir ou alugar a terra onde está enterrado absorve recursos adicionais, assim como proteger essa terra de invasores e ladrões em prospecção. Enterrá-lo na terra de outra pessoa que não é possuída, alugada ou de outra forma protegida através de gasto contínuo de trabalho ou capital é assumir um risco mais significativo. Tem de se manter o registro de onde está, garantir que os ladrões não descubram onde está, e estar pronto para recuperá-lo ou simplesmente perdê-lo se outra pessoa o encontrar.

Mesmo quando uma apólice de seguro sem recurso (non recourse insurance bond) (Questão 18) cobrindo a perda da propriedade é adquirida, isso não elimina o risco: simplesmente distribui o risco por um grupo maior de propriedade, compensando o segurador por alugar a sua propriedade ao segurado como garantia, colocando-a assim em risco. Se as perdas gerais do segurador em todas as reivindicações forem demasiado grandes, então a propriedade que ele arriscou para segurar a sua propriedade não pagará a sua reivindicação: o poço tem um fundo. E, claro, tem de pagar pela apólice de seguro.

É um lugar-comum entre consultores de investimento que uma estratégia de preservação de património envolve investir um portfólio de forma a maximizar as chances de que ele preserve o seu poder de compra: assumir o menor risco possível em relação à perda de poder de compra. Não se pode sequer preservar o poder de compra da sua propriedade sem investir: sem trabalhar, empregar o seu capital em algum empreendimento inerentemente arriscado, e/ou assumir outros riscos. (Outras estratégias de investimento incluem crescimento agressivo com alto risco e várias estratégias intermediárias entre elas). Portfólios de propriedade – isto é, a coleção de toda a propriedade que uma pessoa possui – não se preservam sozinhos. Apenas manter-se no mesmo lugar exige trabalho, investimento e risco. Se você não nadar, vai se afogar. Essa é a natureza da vida no universo em que vivemos.

Uma forma de entender a usura é como a compensação injusta do credor pelo trabalho, risco e investimento realizados pelo devedor; porque num empréstimo mutuum o devedor compromete-se pessoalmente a restituir integralmente o credor, restaurando propriedade equivalente à que foi originalmente dada ao devedor, não importa o que realmente aconteça com a propriedade real emprestada. É por isso que os juros sobre empréstimos mutuum são intrinsecamente injustos, e os empréstimos mutuum só podem ser licitamente realizados como um favor a um amigo ou a uma pessoa necessitada, sem esperar compensação em troca.

55) Se fizer um empréstimo mutuum a um amigo necessitado, esse amigo não deveria tentar evitar que perca qualquer poder de compra econômico no processo?

Suponha que o seu melhor amigo precisa de trigo e não pode comprá-lo. Ele não precisa de papel: ele precisa de trigo. Você tem algum excesso de trigo que poderia emprestar-lhe, mas prefere a aparência dos contratos futuros de papel (Questão 46), e quer uma garantia de que não perderá nenhum poder de compra (Questão 54) ao fazer um favor ao seu melhor amigo.

Então, empresta-lhe papel (mesmo que ele precise de trigo e vá apenas trocar o papel por trigo) apenas para que, como formalidade, o tipo de coisa que ele lhe deve de volta (Questão 35) seja papel. Ou diz-lhe que sabe que ele precisa de trigo e que tem bastante para emprestar, mas prefere futuros de papel, então, embora lhe dê trigo, quer que ele reembolse o trigo que lhe deu fazendo trocas imaginárias de trigo por papel (serão imaginárias para evitar taxas de transação e impostos) no momento do empréstimo e do reembolso. Por causa da excursão à terra do papel imaginário, ele acaba devendo-lhe mais trigo do que lhe emprestou neste empréstimo mutuum – usura.

Parece-me que a sua amizade é tão imaginária quanto as trocas de trigo por papel. Não é maneira de tratar um amigo necessitado. O primeiro contrato pode não ser tecnicamente usura, enquanto o último definitivamente é usura. Mas isso não consegue minar a doutrina moral que proíbe a usura, assim como o facto de flertar intensamente com a sua secretária não ser tecnicamente adultério não consegue minar a doutrina moral que proíbe o adultério.

E o empréstimo mutuum só é moralmente lícito como ato de amizade ou caridade. Não é moralmente lícito na busca de ganho. A preservação do poder de compra de mercado como algo garantido por outra pessoa é um tipo de ganho (Questão 54).

Se o seu melhor amigo decidir devolver-lhe mais trigo do que lhe emprestou por gratidão, isso é um presente dele para si. Não há nada de errado nisso. É até verdade que ele lhe deve gratidão, em certo sentido. Mas a gratidão entre amigos não é conversível num valor específico em dinheiro que se possa dizer que ele lhe deve como uma questão financeira. Nenhum amigo verdadeiro vai discutir, em termos monetários, se o seu melhor amigo foi suficientemente grato na troca natural de favores que ocorre entre amigos.

É possível que amigos cometam injustiça um com o outro em empréstimos mutuum (Questão 49); até mesmo ter um desentendimento e deixar de ser amigos. Suponha que emprestou trigo ao seu melhor amigo, ele agora tem o suficiente para lhe reembolsar a quantia que pediu emprestado, mas recusa-se a fazê-lo. Nesse caso, ele não está a ser um bom amigo; e ele realmente deve-lhe de volta a quantidade de trigo que pediu emprestado, como uma questão de justiça. A sua recusa em devolvê-lo agora que pode é um tipo de roubo ou fraude. Você tem verdadeiramente direito à devolução do valor principal, e o fim da vossa amizade não remove esse direito em justiça.

Um credor de dinheiro, em razão de fazer um empréstimo, pode de duas maneiras esperar uma recompensa de um devedor, seja em dinheiro, louvor ou serviço. Um credor de dinheiro pode esperar uma recompensa de um devedor de uma maneira como se a recompensa fosse uma dívida em razão de uma obrigação tácita ou expressa. E então o credor espera ilicitamente qualquer recompensa desse tipo. Um credor de dinheiro pode esperar uma recompensa de um devedor de uma segunda maneira como se a recompensa fosse gratuita e oferecida sem obrigação, não como se fosse uma dívida. E então o credor pode licitamente esperar uma recompensa do devedor, como aquele que presta um serviço a outro confia que o outro, no espírito de amizade, retribuirá o favor.

[…]

Um credor pode de duas maneiras incorrer na perda de algo já possuído. O credor incorre em perda de uma maneira porque o devedor não devolve a [quantia de] dinheiro emprestada na data especificada, e então o devedor é obrigado a pagar compensação. O credor incorre em perda de uma segunda maneira quando o devedor devolve a [quantia de] dinheiro emprestada dentro do prazo especificado, e então o devedor não é obrigado a pagar compensação, pois o credor deveria ter tomado precauções contra a própria perda, e o devedor não deveria incorrer em perda relativamente à estupidez do credor.

— Santo Tomás de Aquino, De Malo, Oxford University Press, traduzido por Brian Davies e Richard Regan.

Nada disto torna o empréstimo mutuum moralmente lícito como uma estratégia de investimento para preservação de riqueza. Existem muitas maneiras de cuidar financeiramente da sua própria propriedade: muitos tipos diferentes de contratos para preservar e aumentar a riqueza são moralmente permissíveis.

Mas a garantia nesses contratos deve ser propriedade, não promessas pessoais (IOUs). Caso contrário, está a lucrar financeiramente injustamente com a arbitragem sobre a amizade.

56) A crítica à usura não é apenas antissemitismo velado?

O facto de certos vícios se terem tornado culturalmente associados a certos grupos étnicos não transforma o vício em virtude. O facto de os irlandeses serem (justa ou injustamente) associados à embriaguez não torna a sobriedade um vício ou transforma a embriaguez numa virtude, nem significa que qualquer crítica à embriaguez seja anti-irlandesa. A retórica da culpa por associação pode produzir emoções e conversas coloridas, mas provavelmente obscurece mais do que revela.

Várias coisas podem ser dignas de nota, no entanto, pelo menos em termos de caracterizar a associação e a culpa — tanto quanto sei, e com todas as ressalvas habituais, estando isto bem fora do domínio do que considero substancialmente pertinente para a questão moral básica.

Primeiro, o facto de os judeus da diáspora em terras cristãs terem gravitado em direção à usura como profissão é tanta culpa dos cristãos quanto dos judeus. A atitude era que os judeus eram pagãos e iriam para o Inferno de qualquer maneira, então a lei do soberano cristão na verdade tratava os judeus com mais leniência do que tratava os cristãos. Os cristãos eram proibidos de praticar usura pelo bem de suas próprias almas; mas os judeus estavam condenados de qualquer maneira, então por que não deixá-los fazer o que quisessem? Uma abordagem libertina às leis que se aplicavam aos judeus era realmente uma forma de crueldade ou, na melhor das hipóteses, indiferença para com eles, como é verdade para o legalismo libertino em geral. O legalismo libertino expressa inerentemente indiferença sobre o bem das pessoas sujeitas à lei, e teve o efeito prejudicial de encorajar o crescimento de forças anticristãs dentro da sociedade cristã a longo prazo.

Segundo, a situação ilustra a mentira embutida na lei 'libertina' em primeiro lugar, isto é, a incoerência da noção do soberano 'deixar as pessoas em paz' para fazerem quaisquer tipos de contratos que queiram fazer. Sem a execução pelo soberano cristão, os contratos usurários não teriam força [legal]. Na medida em que o soberano cristão fazia cumprir contratos usurários, ele cooperava formalmente com eles: não se pode fazer cumprir os termos do contrato sem tê-los em intenção. Assim, a usura profissional por parte dos judeus era realmente uma parceria entre judeus e seus executores cristãos. Jaime I de Aragão (por exemplo) não poderia aprovar e fazer cumprir leis que cobrassem até 20% de usura em nome dos agiotas judeus sem ter a intenção do empréstimo usurário em questão. A lei e a aplicação da lei que “permitem” que as pessoas se vendam como escravas não são a coisa passiva que o termo peticionário de princípio “permitir” sugere.

Terceiro, houve de facto tribos ou dinastias não judaicas significativas associadas à usura profissional, notavelmente os Lombardos. Como é o caso em muitas profissões de alto QI, os judeus estavam, sem dúvida, sobrerrepresentados em parte simplesmente porque, como grupo, têm maior inteligência do que a maior parte do resto da curva de sino [distribuição normal]. Mas não é como se os judeus tivessem um monopólio sobre o pecado específico em questão.

Certamente na era atual, a usura não é uma coisa “judaica”. A usura é algo de “todos”, tão difundida que a maioria das pessoas não tem ideia do que significa. A usura é tão prevalente que desapareceu no pano de fundo e tornou-se como o ar que respiramos. Isto tem consequências morais, práticas e económicas; e o que quer que se pense da situação histórica, política e moral, vale a pena realmente entender o assunto antes de fazer julgamentos sobre ele.

57) Tudo isto parece tão complicado, e o uso dos termos “empréstimo” e “juros” para significar tantas coisas diferentes é confuso. Existe uma maneira direta de saber se um simples empréstimo com juros é usura?

Para determinar se um simples “empréstimo com juros” é usurário, precisamos perguntar o seguinte:

  1. São cobrados juros lucrativos sobre o empréstimo?
  2. O devedor ofereceu garantia (colateral) para assegurar o empréstimo? (Nota: uma corporação ou sociedade conta como garantia).
  3. O recurso do credor para recuperação do principal e juros, em caso de inadimplência, está limitado à garantia nomeada e apenas à garantia nomeada?

Se todos os três forem verdadeiros (conforme acordado pelas partes do contrato), não é usura.

Se (1) for verdadeiro e (2) ou (3) forem falsos, é usura.

58) Existe algo que o governo possa fazer em relação à usura sem criar um monte de regulamentações complicadas?

Certamente. Uma proposta preliminar para uma emenda constitucional para efetivamente proibir a usura nos Estados Unidos exigiu onze palavras:

“Nenhum governo ou árbitro aplicará sentenças por deficiência (deficiency judgements) em qualquer contrato.”

Como todas as declarações verbais, isto está sujeito a interpretação, e várias potenciais brechas interpretativas poderiam ser tornadas menos plausíveis usando mais algumas palavras. Por exemplo, o seguinte é um pouco mais preciso:

“Nenhum governo ou árbitro aplicará sentenças por deficiência não criminais contra indivíduos em qualquer contrato.”

As pessoas sempre tentarão encontrar maneiras de contornar a lei, é claro. Gangues e mafiosos, por exemplo, impõem ilegalmente seus próprios acordos extralegais. Mas sem o endosso e a aplicação do governo, a usura seria muito menos difundida.


  1. Assim como acontece com quase qualquer termo, “sem recurso” (non recourse) pode ser interpretado de várias maneiras, geralmente como um conjunto de significados relacionados, mas por vezes incompatíveis. Não estou tentando aqui fazer meu uso conformar-se a alguma jurisdição legal específica ou algo do tipo – isso é totalmente irrelevante para entender o que a usura é e não é. A maneira como é usado ao longo deste FAQ é que, num contrato sem recurso pessoal, não é uma violação dos termos do contrato que o 'devedor' pare de fazer pagamentos sobre o empréstimo, deixando o 'credor' recuperar o que quer que tenha direito a recuperar da garantia (colateral) e apenas da garantia (colateral). O 'devedor' não violou os termos do contrato neste caso, por definição: o acordo era que se o devedor parasse de pagar, ele estaria livre de toda obrigação sob o contrato. O credor pode executar a garantia (colateral) para recuperar seus direitos e custos, e o recurso do credor é apenas sobre a garantia (colateral). Se a garantia valer mais do que o saldo do empréstimo e quaisquer custos reais, então o excedente é devido de volta ao devedor.

Se os termos do contrato dizem que é uma violação do contrato que o devedor pare de pagar e entregue a garantia (colateral) ao credor, então o empréstimo é um mutuum e quaisquer juros cobrados são usura. O credor pode estar limitado a recuperar o seu principal e juros da garantia (colateral) legalmente, mas entende-se que o devedor violou os termos. Este não é um empréstimo 'sem recurso' (non recourse) da maneira como o termo é usado ao longo deste FAQ, embora outras pessoas em outros lugares possam se referir a este entendimento como 'sem recurso'.

Em suma, existem (pelo menos) duas maneiras de entender o recurso. Na primeira maneira, recurso refere-se ao que as várias partes do contrato têm direito nos cenários cobertos pelo contrato. Responde a perguntas como “quem fica com o quê se o devedor parar de fazer pagamentos”, como uma questão do que o próprio acordo entre as partes exige. Na segunda maneira, recurso refere-se a remédios legais sob o direito positivo quando alguém quebra o acordo. “Recurso” neste segundo sentido não faz parte do que é acordado pelas partes no próprio contrato. Este FAQ usa o termo 'recurso' no primeiro sentido, para se referir aos termos do próprio contrato.

Este entendimento vem do Magistério da Igreja, não de qualquer teoria ou prática financeira moderna. “Empréstimo sem recurso” (Non recourse loan) acontece de ser o termo mais próximo em uso comum nos dias de hoje capaz de carregar o conceito, e estamos a analisar a natureza intrínseca de diferentes tipos de contratos para entender a usura.

Como questão prática, o facto de que o devedor tem o direito, sob os termos do contrato, de 'abandonar' [o negócio/a dívida] significa que é do maior interesse do credor garantir que o valor da garantia (colateral) exceda significativamente o montante emprestado. O credor – neste entendimento de um empréstimo sem recurso – está a assumir um direito de propriedade sobre a garantia, e se o valor dessa propriedade cair abaixo do saldo do empréstimo, o devedor está perfeitamente dentro de seus direitos, sob os termos do contrato, de abandonar [o negócio] e deixar o credor com a propriedade.

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