A VERDADEIRA RIQUEZA E A ORIGEM DO DINHEIRO

Restaurando a visão clássica sobre a economia

A VERDADEIRA RIQUEZA E A ORIGEM DO DINHEIRO

Restaurando a visão clássica sobre a economia

Mateus Larsan, S.C.R.E.

Fundador da Ação Restauracionista

Revisão: Wladimir Caetano

Resumo: Este artigo busca elucidar, por meio da História, das Sagradas Escrituras e da Filosofia, o enigma da origem do dinheiro. Além da exposição das visões clássica e feudal da economia (síntese aristotélico-tomista), será apresentado um breve panorama do pensamento econômico, com algumas considerações sobre a origem do dinheiro e as consequências da monetização social. No fim, serão delineadas soluções que visem à reordenação econômica da sociedade.

Palavras-chave: economia; sociedade; moeda; dinheiro.

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A VERDADEIRA ECONOMIA É INDISSOCIÁVEL DA MORAL

A Economia era estudada como um ramo da moral, ou seja, era pautada pelos valores morais do homem e sua visão de mundo. Ela não era tradicionalmente estudada como uma ciência eficientista e abstrata que buscasse guiar a sociedade para a máxima produção, fechando assim um circuito no qual o homem produzisse com o fim mesmo de produzir. Tampouco era estudada como a observação isenta e imparcial daquilo que o homem faz, sem o intuito de tecer juízos de valor nem direcionar a sociedade para algum fim determinado. A Economia só veio a ser entendida assim séculos depois de Santo Tomás de Aquino, já na modernidade. Antes disso, ela era o estudo daquilo que o homem faz tendo em vista a aquisição e utilização de recursos para a oikos e a pólis, sem deixar de considerar o âmbito moral.

DEFINIÇÕES DE ECONOMIA, CASA E FAMÍLIA

Antes de um aprofundamento na visão clássica da economia, é necessário desfazer certos equívocos comuns envolvendo idéias indissociáveis da economia real, como os conceitos de casa e família.

A palavra economia deriva do grego oikonomía, composição de oikos, que pode ser traduzido por “casa” ou “moradia”, e nomos, que pode ser traduzido por “lei”, “norma”, “costume” ou “regra”. Na acepção latina, oeconomia significa disposição, ordem, arranjo. Economia é, portanto, a lei da casa, ou como a casa deve ser organizada.

A ideia de casa (o oikos grego), tradicionalmente ligada ao conceito de família, sofreu um processo de ressemantização ao longo da modernidade.[1] Casa, nos nossos dias, é essencialmente o dormitório dos trabalhadores, os quais frequentemente têm relações de parentesco. Mas nem toda casa é formada por uma família. Casa também não tem mais o sentido clássico de propriedade ligada à terra, pois hoje as pessoas se mudam com muita facilidade. E casa também não é mais a construção destinada a reunir a família, visto que nos apartamentos modernos mal há espaço para os que neles residem.

O conceito de família também foi ressignificado. O que se entende hoje em dia por família – e ainda assim com controvérsias – é a família nuclear: pai, mãe e filhos.[2] Em seu sentido clássico, família é todo o agregado familiar: avôs, filhos, irmãos, primos, tios, netos, etc. Ou seja, ela é o coletivo de várias famílias nucleares unidas por antepassados em comum.[3]

Aristóteles observou que a palavra grega para casa sofreu mutações com o passar do tempo: para uma primeira geração, ela trazia um significado; para uma segunda geração, já era outro, e assim sucessivamente. Isso se dava porque os filhos expandiam a casa dos pais, a fim de comportarem as suas próprias famílias, e assim com os netos, etc.

AS DUAS FUNÇÕES DA ECONOMIA: AQUISIÇÃO E UTILIZAÇÃO DE RECURSOS

Aristóteles exemplifica algumas formas naturais de aquisição de recursos: a caça, a pesca, a agricultura, o pastoreio e o roubo. O filósofo chama a aquisição de recursos de crematística.[4] Ele ensina que os homens adquirem recursos para serem utilizados em suas oikoi. Então, para além da arte da aquisição, haveria também a arte da utilização – a culinária, a marcenaria, a domesticação de animais, etc. Portanto, caberia à economia estudar como o homem adquire e utiliza os recursos à disposição para a sua oikos.

AS TROCAS

Em sua obra Política, Aristóteles diz que as oikoi se associam em tribos visando à mútua proteção, e que a natureza não distribui os recursos igualmente a todos: a uns concede certos bens em abundância, a outros provê com bens diferentes. E assim os homens naturalmente recorreriam às trocas, às quais o filósofo chamou de crematística domiciliar.

Aristóteles ensina que dentro da oikos não haveria trocas, pois tudo seria provido pelo telestai, o chefe da família. O objetivo das trocas, segundo o Estagirita, seria corrigir as deficiências da natureza e alcançar a autossuficiência de cada oikos*. O princípio regente das trocas nesse estágio do desenvolvimento civilizacional não seria, portanto, o da justiça ou equidade, mas o da chreia (χρεία), “necessidade”, “uso” ou “utilidade”. Ou seja: as oikoi* trocariam bens entre si visando a suprir cada qual as suas próprias necessidades, e oferecendo o excedente uma para a outra sem a preocupação de alcançarem um equilíbrio matemático exato e preciso – afinal, todos ali pertencem ao mesmo povo e, por isso mesmo, desejam naturalmente a manutenção desse vínculo. Assim, eventuais diferenças de valor obtidas nas trocas, seja para mais ou para menos, seriam irrelevantes ou naturalmente equalizadas com o passar do tempo.

Segundo o antropólogo americano David Graeber, nesse estágio civilizacional não haveria a necessidade de um sistema preciso de contas, pois todos supririam as suas demandas, vendo-se uns aos outros como aliados de longo prazo. Então, o que A estivesse devendo para B num dado momento seria compensado no futuro com o que B tivesse a oferecer a A.[5]

A FILOSOFIA DE ARISTÓTELES E A ÉTICA NA JUSTIÇA

A obra aristótelica é inteiramente organizada segundo uma hierarquia: tudo é disposto do menor para o maior, do tangível para o intangível, do fundamento para as consequências. Antecedendo a política (que, por sua vez, antecede a economia), a ética em Aristóteles lhes dá fundamento. E, em certo sentido, é ela quem limita as outras duas. Sendo assim, antes de se entender a política e a economia, é necessário compreender o papel subordinante da ética.

Aristóteles faz duas grandes reflexões sobre economia e dinheiro em sua obra: a primeira em Ética a Nicômaco, livro V; a segunda em Política, livro I. Antes de tratar do dinheiro como instrumento de troca, o Estagirita faz reflexões sobre a natureza do dinheiro como unidade virtual de conta dentro do estudo da justiça distributiva e reparativa. Cabe aqui salientar que o estudo da justiça antecede o do dinheiro, e não o contrário.

Sintetizaremos de acordo com as definições de Jadir Antunes (2013), já que não é a pretensão deste artigo se alongar no estudo da justiça segundo Aristóteles.

A justiça distributiva tem sua esfera de ação na repartição dos bens da comunidade entre os seus membros. Esse é o caso da repartição dos bens comunitários adquiridos através de um empreendimento comum – como os saques provenientes da guerra. A justiça corretiva tem sua esfera de ação na correção das injustiças cometidas em transações privadas. Ao contrário da justiça distributiva, que tem como princípios a desigualdade natural de mérito e a proporcionalidade geométrica descontínua, a justiça corretiva tem como princípios a igualdade entre os homens e a proporcionalidade aritmética.

Logo, para haver a justiça, seria necessária certa comensurabilidade entre os bens medidos. É daí que surge a necessidade de uma medida de valor externa a esses mesmos bens. O dinheiro aparece então como unidade virtual de conta (UVC).

O DINHEIRO COMO UNIDADE DE CONTA

A necessidade de uma unidade virtual de conta surge em três momentos. O primeiro, dentro de uma sociedade tribal sem contato externo, quando há conflitos internos que exigem um cálculo bastante preciso. Por exemplo, quando um membro machuca o outro ou quando alguém causa um dano a uma propriedade coletiva. Digamos que João mate uma galinha de Pedro de modo intencional, e não acidental. Seria justo que o culpado pagasse apenas uma outra galinha? Não seria justo que ele pagasse mais do que uma galinha como forma de punição pelo seu crime? Isso é o que Aristóteles chamou de justiça corretiva – o quanto A tem de pagar a B. Tal caso se torna ainda mais complexo se A não tiver galinhas, mas apenas porcos, por exemplo. Quantos porcos equivaleriam a uma galinha? É nesse contexto que a humanidade necessitou criar um sistema de contas que pudesse mensurar os bens visando à justiça corretiva.

O segundo momento, ainda internamente à tribo, é quando há a necessidade de se fazer uma divisão dos frutos de um empreendimento coletivo, como um saque de guerra. Quanto seria justo que cada um recebesse de prêmio ou recompensa? Digamos que o butim fosse de gados, terras, escravos, frutas e peixes. Qual teria sido o empenho de cada um durante o empreendimento? Todos mereceriam receber tudo igualitariamente? Na falta de peixes para um, quantos peixes equivaleriam a quantas frutas?

Veja-se que o dinheiro como unidade virtual de conta é fruto de uma potência natural da inteligência humana. Todos os povos antigos buscavam usar certas coisas como unidade de medida com a qual pudesse comensurar os diversos objetos, fossem elas conchas, metais ou grãos. É por isso que Aristóteles afirma que o dinheiro é uma convenção, porque foi convencionado pelos homens para esse fim. Isso não quer dizer que em algum momento a unidade de medida não fosse usada também como pagamento, como se verá mais adiante. O importante aqui é entender as diferentes funções do dinheiro.

O terceiro momento em que a necessidade de uma UVC surge é quando diferentes tribos negociam entre si, povos distintos em cuja relação o interesse único e exclusivo seja o ganho material, e nada mais. É o caso, por exemplo, de Abraão com os hiititas, ao comprar a sepultura de Sara. Segundo o jesuíta Cornélio A. Lápide, magnífico comentador das Sagradas Escrituras, Abraão insistiu em não aceitar presentes dos hiititas pois não queria se misturar de modo algum com os povos idólatras; e também fez questão de que a compra fosse anunciada entre as tribos hiititas para que no futuro não houvesse confusão e a sepultura viesse a ser reclamada como de propriedade comunitária.

Conclui-se então que as unidades virtuais de conta surgem quando há uma necessidade de separar o que pertence a um e o que pertence a outro, quando o vínculo comunitário se encontra em segundo plano, e as posses materiais, em primeiro plano. Elas são uma potência natural da inteligência humana, atualizada espontaneamente em todas as sociedades; são tão naturais quanto o metro, o quilo, o côvado ou a jarda.

O DINHEIRO COMO MEIO DE TROCA

Abraão comprou a sepultura por 400 siclos de prata recém-pesada e de boa qualidade. Pesar essa mercadoria metálica ocasionalmente não era um grande problema. Contudo, com o comércio habitual entre os povos, surgiu a necessidade de um método mais eficiente que garantisse o peso e a pureza do metal, a fim de se agilizarem as trocas. É assim que a moeda metálica passa a ser cunhada e a face do governante nela estampada. Na prática, isso significa que esse governante garantiria que aquele pedaço de metal teria um peso x e uma qualidade y.

A EVOLUÇÃO DO DINHEIRO ATÉ OS DIAS DE HOJE

Eventualmente, o dinheiro foi imposto pelos conquistadores aos povos conquistados com o intuito de se forçar a criação de mercados, inserindo-se as tropas conquistadoras dentro de sociedades fechadas, sobretudo para que houvesse uma rede de abastecimento a esses mesmos invasores. Assim surgiu a moeda de curso forçado, imposta por Alexandre, o Grande. Ressalta- se que aqui a moeda já não é mais um mero meio de troca, mas um instrumento de dominação.

Os romanos herdaram essa prática, e já durante o império começaram a desvalorizar as suas moedas, reduzindo o percentual de pureza enquanto mantinham o valor de face, efetivamente fraudando os portadores da moeda. Tal expansão da base monetária é chamada por alguns economistas de inflação. A prática da inflação da moeda continuou na Baixa Idade Média, tomando enormes proporções com o terrível Felipe IV da França.

No início da Renascença, com a criação do sistema bancário, iniciou-se a emissão do “ouro de papel”, os chamados certificados de depósito bancário, os quais equivaliam teoricamente a uma determinada quantidade de ouro supostamente depositada nos bancos. Rapidamente os banqueiros inventaram a reserva fracionária, outra modalidade de fraude na qual os depósitos não equivaliam ao montante circulante de certificados. Quando os depositantes descobriam que havia menos ouro do que o prometido, ocorriam as famosas corridas bancárias.

Esse foi resumidamente o desenvolvimento do sistema bancário até o surgimento da moeda puramente fiduciária, sem nenhum tipo de lastro. O seu marco definitivo se deu em 1971, quando o então presidente norte-americano Richard Nixon aboliu a conversibilidade do dólar em ouro.

A moeda fiduciária nos moldes modernos é o cúmulo da fraude, pois é em si mesma uma fraude. Ela não tem mais nenhum uso intrínseco à sua natureza e é inteiramente regida pelos governos e seus bancos centrais. A moeda moderna não tem mais nenhuma relação com a sua origem. Não é mais uma mercadoria universalmente aceita. É algo sem nenhum valor na sua criação e imposto a um povo com o intuito de controlá-lo e guiá-lo. É uma criação ex nihilo de banqueiros, uma estranha “riqueza” sem nenhum tipo de vínculo natural com a realidade.

A TEORIA DO VALOR INDUZIDO DA MOEDA, OU COMO O DINHEIRO ADQUIRE VALOR

Para a boa compreensão do surgimento do dinheiro como meio de troca, é necessário entender que o valor monetário não se encontra nos bens, mas nas convenções humanas a respeito deles.

Na esteira do pensamento de Aristóteles e Ezra Pound, o jurista e economista italiano Giacinto Auriti argumenta que a moeda seria uma convenção e só teria valor na medida em que fosse aceita por determinada comunidade. O dinheiro nasceria sem valor, e só adquiriria valor quando aceito. Na aceitação de um dinheiro, ocorreria uma dupla operação: num primeiro momento, a indução do valor do bem no dinheiro: com a realização da troca, o vendedor ficaria sem o bem, detendo somente a representação simbólica do valor desse mesmo bem; mas essa representação simbólica em si mesma só teria valor caso outra pessoa aceitasse a mesma convenção de que aquela quantidade de dinheiro vale tal bem. Auriti ilustra a explicação com a história de um homem que cai numa ilha deserta portando uma mala cheia de dólares e é desprezado ao tentar comprar comida dos selvagens com esse papel-moeda: como ninguém aceitou o seu dinheiro, ele não tem qualquer valor.

COMO SE DEU A MONETIZAÇÃO DAS MERCADORIAS? OU COMO O METAL VIROU DINHEIRO?

Explicado o funcionamento teórico do valor da moeda e esclarecido que o dinheiro não é uma coisa, mas uma convenção, tratarei agora da origem histórico-filosófica da monetarização dos bens.

Como o ouro e a prata deixaram de ser negociados como simples mercadorias e passaram a ser trocados como dinheiro ou, em linguagem econômica, como instrumento de troca? Esse é um fenômeno que certamente ocorreu em vários locais e em vários momentos, e provavelmente ocorreria de novo caso um grupo de homens selvagens fosse habitar uma ilha deserta.

Com Aristóteles, entende-se que todos os objetos têm uma dupla finalidade: o seu uso próprio e impróprio. O uso próprio da sandália é calçar os pés, o uso impróprio é a possibilidade de ser trocada por outro bem. Na economia baseada na chreia (“necessidade”), esse uso impróprio, limitado pelo tamanho das tribos, passou a ter com a expansão do comércio um uso potencialmente infinito, de modo que algumas mercadorias se tornaram mais valorizadas pelo seu fim impróprio do que pelo seu fim próprio. Então o homem deixou de desejar ter para usar, mas ter para trocar por outra coisa que, por sua vez, também pudesse ser trocada por ainda outra coisa. Ao se valorizar mais o fim impróprio que o próprio, houve um descolamento entre o valor intrínseco de um bem e o seu valor de mercado. Porque o ouro só pode ser valorizado enquanto ouro na medida do seu potencial produtivo, tendo um uso industrial ou ornamental. Mas o ouro enquanto objeto de riqueza pode ser infinitamente valorizado por quem valoriza infinitamente a riqueza. Eis aí a razão do descolamento entre valor de mercado e valor de uso.

Inicialmente, o valor de troca de um produto estava atrelado ao seu uso primário. O “lastro” do bem como instrumento de troca é o seu uso primário. A contumácia do uso secundário como sua finalidade primária é a perversão do objeto. É daí que surge a monetarização da mercadoria: quando o homem se habitua com as trocas entre tribos, as quais não visam mais à autossuficiência, e sim ao acúmulo de riquezas materiais através do comércio.[6] A autossuficiência é, por definição, limitada, mas o desejo desordenado de posse é ilimitado. A monetarização da mercadoria, portanto, é consequência da transferência do desejo infinito e ilimitado para um bem finito e limitado.

A VISÃO TOMISTA DO DINHEIRO

Santo Tomás de Aquino, em seu comentário à Política de Aristóteles, livro I, lição 8 diz:

As riquezas que são adquiridas pela arte pecuniativa, isto é, a [arte] cambista, que é toda acerca do dinheiro, é infinita, o que pode ser demonstrado pelas seguintes razões. O desejo do fim, em cada arte, é infinito, enquanto que o desejo daquilo que se relaciona para com o fim não é infinito, mas possui um limite de acordo com a regra e a medida do fim, como a arte medicinal pretende sanar até o infinito, na medida em que induz a saúde, o tanto quanto pode. Ela não ministra, porém, os remédios o tanto quanto pode, mas segundo uma certa medida, tanto quanto isto for útil para a recuperação da saúde. O mesmo pode ser dito para com todas as demais artes.

A razão disto consiste em que o fim é, segundo si, apetecível. Ora, o que é assim segundo si, quanto mais o for, mais o será.

O dinheiro, porém, está para a arte pecuniativa cambista como um fim. O que ela pretende é a aquisição do dinheiro. O dinheiro, porém, não está para com a arte econômica como um fim, mas como algo que se ordena a um fim, que é o governo da casa. Portanto, a arte pecuniativa busca o dinheiro sem fim, enquanto que a arte econômica busca o dinheiro com algum limite.

Embora as razões expostas pareçam indicar que haja limites para a [busca] das riquezas na arte econômica, o que entretanto se observa na realidade, é o oposto. Todos os ecônomos, de fato, buscam aumentar o dinheiro ao infinito, querendo sempre mais dinheiro pelas coisas que são necessárias para o sustento da vida.

(…) A causa desta disposição que leva os dispensadores das casas à busca do aumento do dinheiro ao infinito consiste em que os homens se preocupam em viver de qualquer modo não, porém, em viver bem, que é o viver segundo a virtude. Se, de fato, quisessem viver segundo a virtude, ficariam contentes com aquilo que fosse suficiente à sustentação da natureza. Mas, abandonada esta busca, aplica-se cada um a viver segundo a sua vontade e, por isso, cada um busca adquirir aquilo pelo qual pode realizar a sua vontade. Ora, como a concupiscência dos homens tende ao infinito, por isso desejam até o infinito aquilo com que podem satisfazer as suas concupiscências.

Há alguns que tem a preocupação de bem viver, mas a este viver bem querem acrescentar tudo aquilo que pertence aos prazeres corporais, dizendo que a vida não é boa a não ser que o homem viva nestes prazeres corporais e, por isso, estes buscam as coisas pelas quais podem realizar estes prazeres corporais. E ora, isto parece ser possível aos homens pela multidão das riquezas e, portanto, todo o cuidado deles parece consistir na aquisição de muitas riquezas. [Estes homens, embora busquem de algum modo a vida virtuosa, não a buscam retamente e, por isso, acabam buscando o dinheiro ao infinito]. [Há outros ecônomos, entretanto, os quais, inteiramente esquecidos da vida virtuosa, ao contrário dos anteriores], pretendem usufruir dos prazeres corporais até o excesso e, por causa disso, buscam aquilo pelo qual podem satisfazer a tais excessos, que é a multidão das riquezas.

Há [finalmente, um terceiro tipo de ecônomos] que, às vezes, não conseguem apenas pela arte pecuniativa adquirir suficientemente aquilo pelo qual possam satisfazer o excesso das deleitações corporais. Buscam, por este motivo, adquirir as riquezas por outros meios e abusam, por isso, de qualquer potência, isto é, qualquer virtude, qualquer arte ou qualquer ofício, os quais passam a ser usados não segundo a sua natureza.

É assim que a fortaleza é uma virtude, cuja obra própria não é o ajuntamento do dinheiro, mas fazer o homem audaz para a luta e a defesa. Se alguém, portanto, usa da fortaleza para juntar riquezas, não usa da fortaleza segundo a natureza. Semelhantemente, a arte militar é por causa da vitória e a arte médica, é por causa da saúde. Nenhuma destas duas é por causa do dinheiro. Há, porém, alguns que usam a arte militar e a arte médica, convertendo-as em instrumentos para a aquisição do dinheiro, transformando ambas estas artes em pecuniativas, isto é, aquisitivas de dinheiro, ordenando-as para o dinheiro como a um fim ao qual importa ordenar tudo o mais. E, por isso, está escrito em Eclesiastes: “e todas as coisas obedecem ao dinheiro”.

Existe, portanto, uma arte pecuniativa não necessária, aquela que adquire o dinheiro até o infinito e que faz do dinheiro o seu fim. A causa pela qual os homens necessitam desta pecuniativa é a sua infinita concupiscência. Há, também, outra pecuniativa necessária, que difere da anterior. Esta adquire o dinheiro até um determinado limite por causa de um outro fim, que é a posse do que é necessário à vida.

A arte econômica pertence propriamente às coisas que são segundo a natureza. Esta não é infinita como a primeira pecuniativa, mas possui os seus limites.[7]

Então segundo Santo Tomás e Aristóteles, o dinheiro como instrumento de troca não tem uma origem natural, mas psicológica, humana e convencional. Sendo impossível ao homem tudo possuir, ele projeta o seu vício num bem, pretendendo, segundo essa ilusão, dominar a tudo e a todos. Para que ele sacie a sua insaciável avareza, é necessário que mude o significado de riqueza: ao passo que a verdadeira riqueza se constitui de terra, família, gado, armas, a casa e tudo o mais que seja necessário e ordenado ao bem viver, a falsa riqueza é simbolicamente representada pelo dinheiro e o desejo desenfreado de infinita satisfação da concupiscência transferido a esse objeto.

Contudo é fácil perceber o quão difícil é ter uma imensa quantidade de riqueza quando esta não é fácilmente acumulável. Há uma anedota de um homem que ouviu dizer que a propriedade era delimitada pela cerca. Ele então teve a brilhante idéia de cercar um pequeno espaço de um metro quadrado vazio e declarar que tudo o que estava “dentro” da cerca era sua propriedade – entenda-se “dentro” como tudo aquilo que normalmente se entende como “de fora”.


Como um homem teria sozinho um milhão de cabeças de gado? Como ele cuidaria e protegeria bilhões de alqueires? De que serviria ter um oceano de milho? É evidente que este impulso natural de ter e possuir é limitado pela necessidade e utilidade. Então, para dar vazão ao desejo desordenado de tudo ter e a todos dominar, é necessário que a riqueza seja algo com a propriedade de ser infinitamente acumulável. Como tal objeto não existe na natureza, então o homem o inventou.


Quando a riqueza perde o seu sentido e finalidade original e se torna um objeto único – o dinheiro – ela vira um instrumento de controle de quem tem contra quem deseja. Quão conveniente é para o dono das minas de ouro que os homens aspirem a ouro! Quão conveniente é para a elite banqueira que os trabalhadores busquem o dólar que eles mesmos criam! Quão conveniente é para o dominador que ele mesmo produza o objeto de desejo do dominado!

O amor ao dinheiro é a raíz de todos os males (I Tm 6,10). Quando todos os homens buscarem na vida tão-somente dinheiro, tornar-se-ão escravos dos donos do dinheiro – os únicos que não o buscam, pois já o têm e o criam sem esforço.

Será possível ao homem construir um sistema em que seja possível fugir das maldições impostas por Deus quando da expulsão do Éden? Tirarás da terra o sustento com trabalhos penosos todos os dias da tua vida (…) e comerás o pão com o suor do teu rosto (Gn 3,19).

A usurocracia[8] é um sistema que permite a alguns homens viverem à custa de muitos. Alguns homens comem do suor do rosto alheio pois escravizam estes homens através da mágica da suposta “multiplicação” da riqueza através dos números.

QUAL É A REAL NECESSIDADE DO DINHEIRO?

Como visto até aqui, o dinheiro como instrumento de troca não era necessário nos intercâmbios iniciais entre povos. O conceito de “povo”, entendido como uma grande família composta por várias famílias, caracteriza-se pela posse em ambundância: tanto grandes necessidades quanto grandes excedentes, e várias habilidades. Quando dois povos necessitavam fazer trocas (crematística comercial), o acordo era relativamente simples: um grupo desejava uma mercadoria que o outro possuía em excesso e oferecia em troca algo de que este necessitava.

Um exemplo histórico é a chegada dos portugueses ao Brasil, quando ofereceram objetos como espelhos em troca de ouro e pau-brasil. Esse tipo de troca não demandava o uso de dinheiro para viabilizá-la; bastava que as necessidades mútuas fossem reconhecidas e uma proposta de troca fosse apresentada. Em larga escala, trocas entre grandes entes, com múltiplas necessidades e bens em abundância, tendem a ser mais fáceis de se concretizar.

O PROBLEMA INESCAPÁVEL DE UMA ECONOMIA USURÁRIA

Entre os pensadores clássicos pré-renascentistas, era comum a visão de que a usura fosse um roubo e um grande mal à sociedade. Sendo o principal acrescido dos juros necessariamente maior do que o principal (P + J > P), a usura é, em essência, a cobrança de mais moeda do que o inicialmente emprestado. O montante de capital disponível para empréstimo é limitado pelo capital já existente. Entretanto, a quantia exigida a título de juros não está limitada pelo total de dinheiro circulante. Isso significa que é possível haver mais dívida que moeda disponível. Não somente é possível como também é historicamente comprovado. Conclui-se que em uma economia usurária a quitação de todas as dívidas é impossível, pois as dívidas tendem a superar a quantidade total de moeda.

Na falta de moeda para a quitação de seus débitos, há uma solução temporária e duas definitivas: a temporária é a rolagem da dívida com o adiamento do pagamento e refinanciamento do débito anterior; as permanentes são ou o perdão ou a expropriação e escravização. Em suma: se as dívidas não forem perdoadas, as famílias serão obrigadas a pagá-las ou com os seus bens ou com os seu trabalho.

O COMÉRCIO COMO FATOR DE CORRUPÇÃO SOCIAL

Semelhantes efeitos ocorrem numa economia não usurária, mas por caminhos mais indiretos e com cadeias causais menos evidentes. Se o dinheiro existe, é então possível acumulá-lo. Considerando-se um estoque finito dele, a sua concentração nas mãos de alguns implica na escassez para os demais. Pela lei da oferta e da procura, o valor é maior quanto menor a abundância. Como dinheiro é igual a poder de compra, a concentração financeira implica em concentração do poder de compra.

Nenhuma profissão tem como finalidade primária o acúmulo de moeda, à exceção do comerciante, o qual não produz nada: sua especialidade é comprar mais barato e vender mais caro, visando ao acúmulo. Assim, o seu dinheiro comprará mais na medida em que mais o tenha. Porque o dinheiro se tornará mais valioso quanto mais raro for. Enquanto o comerciante acumula sem limites, os demais produtores só acumulam na medida do necessário.

Uma economia sem comerciantes é possível, ao passo que uma economia sem produtores não o é. Mas se o feitiço da moeda contaminar a sociedade e todos buscarem o enriquecimento financeiro, então os comerciantes se tornarão os mais poderosos. Aqueles que nada produzem possuirão tudo.

Vê-se portanto que uma sociedade regida pelo princípio da busca pelo dinheiro terá por consequência a ascensão social daqueles que menos produzem. Contudo, como a sociedade não vive do dinheiro e sim do trabalho, esse princípio tende a levar ou ao empobrecimento geral ou à criação de mecanismos de controle pela classe comercial contra a categoria dos trabalhadores.

Está posto que em uma economia monetizada haverá concentração de dinheiro nas mãos de uns em detrimento de outros. A história nos mostra que normalmente o que se deu foi o estabelecimento da usura, pois os produtores, buscando uma solução aparentemente viável, recorriam ao empréstimo sem perceber a armadilha que os aguardava.

Aceita a crematística comercial numa economia monetizada, a única forma de se manter a saúde social a longo prazo é, paradoxalmente, recusando o dinheiro ou limitando politicamente os seus efeitos.

CONSEQUÊNCIAS DA MONETARIZAÇÃO DA SOCIEDADE

Quando a monetarização brota num tecido social, adentrando nas oikoi, o que se vê é a corrupção desse tecido. Quando o objetivo geral é a acumulação, então haverá a busca pela máxima eficiência na produção, o que implica em maximização de lucros e redução de custos, além da super-valorização dos bens materiais. O acúmulo é voltado então para o gozo específico de quem o realiza. Talvez inicialmente o acúmulo vise à satisfação de uma família em particular, mas, com o aprofundamento do princípio da acumulação desenfreada, chegar-se-á inevitavelmente ao deleite do indivíduo em detrimento da família. Isso resulta numa atomização da sociedade e no desprezo dos mais fracos e necessitados, como já se vê em países europeus nos quais idosos sofrem assassinato por eutanásia.

É preciso reconhecer que a monetarização trouxe inúmeros problemas até hoje insolúveis. E todas as teorias monetárias que resolvem um problema parecem inevitavelmente criar outro. Um dos debates mais antigos e fundamentais da economia permanece em aberto: ao estampar a sua própria imagem na moeda, o rei apenas garantiria o valor de face da moeda ou também reivindicaria a propriedade do dinheiro? Essa questão continua sem resposta satisfatória. Nenhum sistema monetário pareceu fornecer uma moeda que se mantivesse como meio de troca, sem transformar-se rapidamente num fim em si mesma.

O dinheiro tende a fortalecer o indivíduo em detrimento da família porque a moeda é facilmente possuída por ele, enquanto uma riqueza não monetária requer uma grande estrutura coesa e hierarquizada. Dada essa característica, a diferença entre muito dinheiro e pouco dinheiro é exclusivamente quantitativa, ao passo que a diferença entre uma grande e uma pequena riqueza em seu sentido tradicional não é somente quantitativa como também qualitativa.

Ilustrando: a estrutura para possuir um milhão ou um bilhão de dólares é a mesma; já para possuir o equivalente a um bilhão de dólares em riqueza tradicional – como terras, rebanhos ou uma força de trabalho massiva – é necessário um sistema complexo que envolva não apenas bens tangíveis, mas também habilidades técnicas avançadas e uma equipe coesa. Em suma, um homem idoso e doente pode facilmente ser um bilionário em dinheiro, mas jamais possuiria e administraria grandes rebanhos ou extensas propriedades sem apoio substancial.

Por meio dos juros compostos, um só indivíduo, utilizando apenas recursos intangíveis, como contratos e transações financeiras, pode acumular uma “riqueza” monetária muito superior à riqueza material de um povo inteiro. Um exemplo marcante disso é o chamado “empréstimo da Independência”, em que os Rothschilds concederam a Dom Pedro I uma quantia que nenhum governo estrangeiro daquela época possuía.

A monetização da sociedade viabiliza e facilita as trocas indiretas, que, por sua vez viabilizam um mercado de vícios. É muito mais fácil haver prostituição com o dinheiro do que sem ele; igualmente é muito mais fácil subornar um juiz com dinheiro do que com gado. O feminismo só é possível numa sociedade monetizada, como assim é provado pela história universal. Tudo isso se torna mais fácil quanto mais distante a moeda se encontra da mercadoria (ou da realidade). Quanto mais dissociado da verdadeira riqueza, mais líquido é o dinheiro.

A FALSA UNIDADE ADVINDA DO DINHEIRO

O escambo separa, enquanto o dinheiro unifica. Abraão não quis unidade com os hiititas, por isso fez um escambo. A habitualidade do comércio com povos estranhos é uma consequência do pecado original e da natureza decaída do homem, pois consiste em negociar para muito além da necessidade, tendo em vista a satisfação de sua concupiscência. Não há nada intrinsecamente errado em comercializar esporadicamente com povos estranhos, mas a habitualidade do comércio reflete a má inclinação humana.

O dinheiro como instrumento de troca foi criado dada a recorrência das trocas com povos distantes e distintos, movidas exclusivamente por ganhos materiais. A verdadeira questão não é quando o dinheiro surgiu, mas por que os homens se acostumaram a negociar com outros povos sem intenção de união. Esse hábito surgiu do amor ao dinheiro, da vontade desordenada de acúmulo infinito e da priorização do conforto sobre outros valores superiores.

O racíocínio é simples: Os homens inicialmente trocam com o objetivo de atingir a auto-suficiência; se continuam a trocar depois de atingida a auto- suficiência, já não é mais pela razão original; se o comércio deixa de ser esporádico, então se torna habitual; se o comércio se torna habitual, surge a necessidade do dinheiro para facilitar as trocas; e esta crematística comercial já não será guiada pela necessidade doméstica, mas por alguma outra intenção, pois, se não há nada que una os povos além dos bens e conforto material, a única coisa que fundamentaria essa habitualidade do comércio é o interesse terreno das coisas deste mundo.

É altamente provável que esse fenômeno tornasse a ocorrer em poucas gerações de homens selvagens numa ilha deserta. Pesquisadores ensinaram o conceito de dinheiro a macacos: rapidamente surgiram práticas como apostas e prostituição.[9] O homem, marcado pelo pecado, busca satisfazer às suas iniquidades, e quem quer os fins quer os meios. É necessário ao homem mau a viabilidade de sua malícia.

Não havia nada de reprovável em Abraão comprar dos hiititas a sepultura de Sara. Ao contrário, esse ato refletiu o seu desejo de manter-se puro e incontaminado diante de Deus. Foi um bom comércio de um justo com os iníquos, no qual Abraão obteve o que precisava e evitou um conflito. No entanto, ele não tinha nenhum interesse em manter relações com os hiititas, sequer pensou em criar um instrumento para estabelecer uma contínua relação materialista e comercial. O escambo, portanto, visou à separação.

Foi o homem amante de si mesmo, já possuído pelo amor à riqueza, que precisou monetizar os bens para viabilizar os seus intentos. O dinheiro proporcionou uma falsa unidade, baseada apenas em interesses materiais. O dinheiro pode unir os diferentes, mas de uma forma pervertida, fazendo com que coexistam apenas por meio do desejo de satisfazer às suas paixões.

O dinheiro não promove a verdadeira unidade entre os povos. Ela só pode ser alcançada por valores transcendentes e religiosos. Os homens, ao se aproximarem do mesmo Deus, tornam-se verdadeiramente um só povo. Mas ao se aproximarem uns dos outros por meio do comércio, só conseguem uma ilusão de unidade. Uma unidade falsa e pervertida em que todos coexistam, embora não tenham nada em comum entre si a não ser o desejo insaciável de satisfazer às suas paixões. O mesmo dinheiro que mensura bens diferentes também une homens diferentes. E assim, o dinheiro torna os homens escravos uns dos outros, na medida em que todos se tornam escravos de suas próprias paixões.

A VISÃO ECONÔMICA DA IGREJA

Até hoje um pensamento econômico sistemático não foi incorporado à doutrina católica. Durante os primeiros séculos da Igreja, até a conversão de Constantino, os católicos estavam um pouco ocupados sendo perseguidos e mortos. Depois disso, a prioridade foi o combate às heresias, algo que ocupou boa parte do tempo entre o Édito de Milão e a coroação de Carlos Magno. Tal combate ocorreu paralelamente à queda do Império Romano do Ocidente e conversão dos bárbaros. Da coroação de Carlos Magno até a crise do papado no início do segundo milênio, o período foi relativamente breve e marcado por turbulências, como as invasões islâmicas e os conflitos com a Igreja Oriental.

Já com a crise moral do clero a partir da virada do milênio, deu-se o início da decadência da nobreza e a crescente influência usurária dentro das estruturas eclesiásticas. Do Renascimento até os dias de hoje a situação só se agravou, tanto pelo aumento do problema quanto pela diminuição da capacidade reativa dos teólogos.

Em resumo, a Igreja, sempre ocupada com questões mais graves, como crises morais e teológicas, nunca considerou a economia como a origem dos problemas sociais. Por conta disso ela não desenvolveu um pensamento econômico sistemático, limitando-se a reagir a questões pontuais, sempre de forma fragmentada, sem abordar o todo.

Vê-se uma tentativa de combate ao liberalismo econômico no pontificado de Leão XIII, mas também de modo reativo, sem uma análise minuciosa da raiz da questão. E um combate tardio também, diga-se de passagem, travado após o triunfo revolucionário em boa parte do mundo.

Embora sejam necessários mais estudos para o aprofundamento e esclarecimento da história do pensamento (ou ausência de pensamento) econômico na tradição ocidental, até Santo Tomás de Aquino predominava o pensamento clássico aristotélico. No entanto, logo após o reinado de São Luís IX, iniciou-se uma profunda crise na França, marcada por desmandos dos reis na economia. Felipe IV, por exemplo, inflacionou excessivamente a moeda, reduzindo drasticamente o poder de compra. Foi nesse contexto que o Bispo Nicolau de Oresme e o Filósofo Jean Buridan se opuseram à teoria de que o rei poderia manipular a moeda a seu bel-prazer. Eles desenvolveram uma teoria monetária que se distanciava da concepção convencional e jurídica da moeda, aproximando-se de uma compreensão de riqueza substancial.

Talvez de forma involuntária, Oresme e Buridan influenciaram o que viria a ser conhecido como mercantilismo, segundo a visão de muitos economistas. A escola mercantilista defendia uma aliança entre a burguesia e o rei, promovendo a ideia de que uma nação seria mais rica e poderosa quanto mais exportasse e menos importasse. Convenientemente, para maximizar o poder, o rei deveria subsidiar as exportações, enriquecendo a burguesia. Dentre os desdobramentos dessa escola, surgiu o metalismo, um pensamento econômico desenvolvido fortemente na Espanha, o qual associava riqueza ao acúmulo de metais preciosos, o que contrariava a visão clássica-feudal, aristotélico-tomista, de que o dinheiro deveria ser um meio, e não um fim em si mesmo.

Mais tarde, no século das revoluções protestantes, a flexibilização da atitude das autoridades eclesiásticas quanto ao combate à usura levou ao surgimento de novas ideias. Um pensador de origem huguenote, Bernard Mandeville, “libertou” a economia da moralidade, ao afirmar que o “vício privado” resultaria em “benefício público”. Para ele, bastava que cada indivíduo buscasse o seu próprio interesse para que a sociedade prosperasse. Essa visão econômica intensificava a ruptura com os princípios clássicos, reduzindo a economia a uma espécie de “harmonia dos vícios”. Seguindo essa linha, François Quesnay argumentou que a economia seria uma dimensão separada da moral e que ela deveria buscar as “leis naturais” (no sentido iluminista) que regeriam a sociedade. Sua visão influenciou profundamente Adam Smith, considerado o pai da economia moderna, que consolidou a ideia de uma economia orientada para a produção.

Ainda dentro dessa revolução econômica, John Locke contribuiu para o rompimento entre economia e política ao afirmar que os indivíduos possuiriam direitos naturais e que a sociedade deveria respeitá-los, incluindo a propriedade privada, um direito natural que antecederia a política. Dessa forma, Locke cortou o vínculo entre propriedade privada e bem comum, propondo uma teoria em que a propriedade seria absolutamente independente das leis do Estado e da Religião. Em sua obra, Locke plantou as sementes do liberalismo, segundo o qual cada indivíduo deveria ser livre para usar os seus bens como desejasse, sem restrições de lei divina, moral ou política.

A SOLUÇÃO

Todos os que criam, estavam unidos e punham tudo em comum. Vendiam as suas propriedades e os seus bens, e distribuíam o preço por todos, segundo as necessidades de cada um. Todos os dias frequentavam em perfeita harmonia o templo, e, partindo o pão pelas casas, tomavam a comida com alegria e simplicidade de coração. (At 2,44–46)

Mas, para mostrar que é o viver separadamente que é caro e causa pobreza, imaginemos uma casa com dez crianças, o homem e a esposa, em que ela trabalha na lã e ele traz seus ganhos de sua ocupação fora de casa. Agora, diga-me, de que forma eles gastariam mais? Tomando suas refeições juntos e ocupando uma só casa, ou vivendo separadamente? Claro, vivendo separadamente. Pois, se as dez crianças tivessem de viver separadas, precisariam de dez quartos, dez mesas, dez atendentes e uma renda proporcional a essa estrutura. Não é justamente por essa razão que, onde há grande número de servos, todos compartilham uma mesa para que as despesas não sejam tão grandes? Pois é assim: a divisão sempre leva à diminuição, a concórdia e o acordo levam ao aumento. — Homilia de São João Crisóstomo sobre Atos dos Apóstolos nº 11. Devido a esse comentário, Ludwig von Mises chamou o santo doutor de “comunista”.

É necessário que os católicos tenham uma vida corretamente ordenada e coloquem a economia a serviço da família, da Pátria e de Deus. Também é necessário entenderem que o dinheiro é um meio, e não um fim em si mesmo. Santo Tomás ensina e Oresme corrobora que trocar o trabalho por dinheiro para trocar o dinheiro por pão não é algo mau em si mesmo. Considerando que vivemos num mundo mamônico, é possível traçar as seguintes atitudes para o católico fugir da perversão moderna da economia:

  1. Reaprender a arte de adquirir recursos. O mundo ultra-financeirizado em que nós vivemos nos direciona para o caminho mais complexo em vez do mais simples. O homem moderno, para satisfazer à necessidade de comer, prefere antes arrumar um emprego que lhe exija mil compromissos e desgastes sem nenhuma relação com a comida de que necessista, tudo para que, no final do mês, ele troque o salário por alimentos. A economia tradicional é simples, direta e objetiva: torne auto-suficiente a sua oikos. Aprenda a plantar sua própria comida. É um jeito muito simples de se começar.

  2. Reaprender a arte de utilizar os recursos. Em Libido Dominandi, o autor E. Michael Jones diz que até a Primeira Guerra Mundial 90% dos pães consumidos nos Estados Unidos eram produzidos dentro de casa. E dos 10% vendidos em padarias, a maior parte era de pão gourmet, não voltado para o consumo diário. Através de muita propaganda, o sistema capitalista-liberal-industrial nos adestrou a comprar tudo de que necessitamos. Mas não precisa ser assim. Até o início do século XX as famílias compravam basicamente só os insumos; elas mesmas produziam o que precisavam. Assim trabalhavam para si mesmas, economizando dinheiro e dignificando o trabalho doméstico da mulher, que é naturalmente mais voltada para a utilização dos recursos do que para a aquisição. Até a geração dos nossos avós era muito comum que as mulheres costurassem a própria roupa da família. Então, um meio de se restaurar a economia tradicional é reaprendermos a arte da utilização dos recursos.

  3. Poupar em produtos, e não em dinheiro. As Sagradas Escrituras nos ensinam que quando José teve um sonho de sete anos de abundância e sete anos de escassez, ele não “guardou dinheiro”, mas construiu silos para estocar comida. Os produtos financeirizados estão sujeitos às flutuações do mercado e às determinações do governo. O brasileiro entende muito bem que a inflação resulta em menos comida para o lar. Uma solução muito simples é estocar comida, criando assim uma poupança que não esteja sujeita à inflação. Ao invés de guardar dinheiro para comprar comida amanhã, por que não comprar hoje a comida e guardá-la para amanhã?

  4. Sair das cidades. Somente pelas três maneiras já expostas fica claro que é muito mais difícil fazer todas essas coisas dentro de um apartamento numa metrópole do que num terreno de interior. O preço médio de um apartamento de 40m² em São Paulo é 274 mil reais. Como criar filhos dentro de um apartamento? Onde estocar comida? Onde plantar tomates? Impossível. É muito provável que com menos dinheiro se compre uma terra na qual se alcance a autossuficiência. Segundo os estudos da Empresa Brasileira de Pesquisa Agropecuária (Embrapa), é possível ter uma casa com boa auto-suficiência a partir de 500m², através do sisteminha da Embrapa.[10]

  5. Formar comunidades unidas pela religião e valores superiores. A evolução natural da humanidade é que, com o crescimento das famílias, os homens se organizem em tribos e as tribos em pólis. Não é possível ter tudo sozinho, mas é muito mais fácil e confortável ter, manter e administrar em união com outras pessoas do que só, como ensinou o grande São João Crisóstomo.

Não é a intenção deste artigo exaurir as formas de se restaurar uma economia tradicional, mas meramente apontar o problema e esboçar possíveis soluções. Há muitos outros fatores correlacionados, como segurança, educação domiciliar, etc., que não serão tratados aqui.


[1] Em poucas palavras, entende-se aqui modernidade como a inversão sistemática da ordem natural.

[2] No Brasil de hoje cerca de metade dos filhos cresce sem os pais.

[3] A Wikipédia apresenta uma definição breve e correta do termo: “Oikos (grego: οἶκος, plural: οἶκοι) o equivalente ao termo “agregado familiar” na Grécia Antiga, é o conjunto de bens e pessoas que constituía a unidade básica humana prévia ao surgimento das primeiras pólis gregas, formado pela família em sentido amplo (além da família nuclear) incluindo esta, desde a cabeça do oikos (o telestai, geralmente homem sênior e, por isso, inspirador da figura do pater familias romano) até os aos ajudantes e os animais que viviam juntos no ambiente doméstico”.

[4] Na obra aristotélica, crematística assume alguns sentidos; confira o gráfico apresentado no apêndice deste artigo.

[5] Cf. Debt: the first 5000 years (Brooklyn, New York: Melville House, 2011). Disponível em:

\https://archive.org/details/DebtTheFirst5000Years\. Acesso em: 26 nov. 2024.

[6] O mau comércio, segundo Aristóteles, é a crematística comercial, que é anti-natural.

[7] Excertos dos Comentários de Santo Tomás de Aquino à Ética e à Política de Arisóteles, volume 2. São Paulo: Associação Centro Hugo de São Vitor, 2020, p. 45–48.

[8] Termo empregado por Ezra Pound e Giacinto Auriti para designar o sistema político- financeiro baseado na usura.

[9] Cf. https://youtu.be/hHLhcyK1hgg; e também: https://www.youtube.com/watch? v=DUd8XA-5HEk

[10] Cf. https://www.youtube.com/playlist?list=PLKCjYHnFx7XMRXWbHLxktAcBFSAr3EZVW


BIBLIOGRAFIA SUGERIDA

ANTUNES, Jadir. “Aristóteles e a metafísica do dinheiro”. Problemata: R. Intern. Fil. v.6, n. 3 (2015), p 85–110.

ARISTÓTELES. Ética a Nicômaco.

ARISTÓTELES. Política.

AURITI, Giacinto. Artigo na Chiesa Viva - Dinheiro: Deus ou Mammon? -

https://www.chiesaviva.com/la%20moneta%20dio%20o%20mammona/la%20moneda%20dios%20o%20mammon.pdf

AURITI, Giacinto. Ordem Internacional do Sistema Monetário. https://archive.org/details/giacinto-auriti-ordem-internacional-do-sistema- monetario_202410

GRAEBER, David. Debt: the first 5000 years. Melville House, 2011. Acesso em:

<https://archive.org/details/DebtTheFirst5000Years/page/n3/mode/2up>.

HOFFMAN, Michael. Usury in christendom: the mortal sin that was and now is not. Independent History and Research, 2012.

JONES, Eugene Michael. Barren metal: a history of capitalism as the conflict between labour and usury. Fidelity Press, 2014. Acesso em:

<https://isidore.co/CalibreLibrary/Jones,%20Eugene%20Michael/Barren%20Metal_%20A%20History%20of%20Capitalism%20as%20the%20Conflict%20Between%20Labor%20and%20Usury%20(7459)/Barren%20Metal_%20A%20History%20of%20Capitalism%20as%20t%20-%20Jones,%20Eugene%20Michael.pdf>.

LAPIDUS, André. Metal, Money And The Prince - John Buridan And Nicholas Oresme After Thomas Aquinas – 1997: https://www.researchgate.net/publication/23645186_metal_money_and_the_p rince_-_john_buridan_and_nicholas_oresme_after_thomas_aquinas

LOMBARD, Jean. La cara oculta de la historia moderna. Dilifollac, 1989. NAISMITH, Rory (editor). Money and coinage in the Middle Ages. Brill, 2018.

PESCH, Heinrich. Liberalism, socialism, and christian social order: the christian concept of the state. The Edwin Mellen Press, 2001.

SANTO TOMÁS DE AQUINO. Comentários à Ética e à Política de Aristóteles.

Centro Hugo de São Vitor, 2020.

ANEXO

Explicação dos tipos de Crematística, constante nas notas do livro A Política, Vega 1998, Edição Bilíngue.