A Devotio Moderna Nominalista Voluntarista e sua Origem Gnóstica
P. Basílio Méramo
Publicado em quarta-feira, 4 de janeiro de 2017 - por Gustavo Maldocena
É de suma importância ver a relação entre a chamada Devotio Moderna, cujo máximo expoente místico espiritual foi Tomás de Kempis (1380-1471), e a mística alemã (renana), cujo mestre (e daí o nome) é o dominicano Eckhart (1260-1328), comumente conhecido como Mestre Eckhart. Dito autor é um grande místico, mas lamentavelmente seu pensamento é gnóstico-cabálico, a tal ponto que se o pode considerar filosoficamente como o grande metafísico da Gnose.
A Devotio Moderna é uma corrente espiritual da Baixa Idade Média, nascida nos Países Baixos (Holanda), no final do século XIV. As origens vêm com a obra de Gerardo Groote (1340-1384), que fundou uma organização feminina chamada Irmãs da Vida Comum; um seguidor e colaborador, Florencio Radewijns (1350-1400), que se tornou sacerdote a instâncias do próprio Groote e continua a obra de seu mestre fundando uma congregação masculina com o nome de Irmãos da Vida Comum. Em 1378, inaugura em Windesheim, na Alemanha, um mosteiro formado por clérigos e leigos, dando nascimento à comunidade de canónigos regulares de São Agostinho. A espiritualidade é voluntarista, anti-especulativa, nominalista e moralista.
Ninguém pode desconhecer que o fundador da Devotio Moderna, Gerardo Groote, teve a influência do Mestre Eckhart; também não se pode ignorar que o protestantismo teve seu caldo de cultivo na Devotio Moderna, pois personagens como Erasmo de Rotterdam (1466-1536), João Calvino e Gabriel Biel (1410-1495) foram influenciados por este movimento, e este último chegou a ser diretor de um dos centros de estudo desta congregação e teve grande influência sobre Lutero.
Liturgia das Horas (manuscrito) de Gerardo Groote
Também não se pode ignorar que a Devotio Moderna está intimamente ligada ao voluntarismo teológico de Duns Scot (1265-1306) e inclusive ao nominalismo de Guilherme de Ockham (1295-1350).
O dano que o nominalismo, surgido da velha disputa escolástica dos universais, fazendo das essências puros nomes (daí o nome de nominalismo), causou à teologia e ao pensamento filosófico, que ainda hoje sofremos, não pode ser ignorado.
O mesmo conceito de Devotio Moderna está sinalizando a impronta de Ockham, que se contrapunha à Escolástica da escola antiga. Ockham, como é sabido, é a figura do nominalismo que remonta a Roscelino (1050-1121) e a Abelardo (1079-1142); e para que nos demos uma ideia de seu funesto voluntarismo nominalista, basta recordar o que dizia: “se Deus mandasse adorar uma burra, esse ato seria bom”, já que toda a ordem moral, em seu acendrado voluntarismo, dependia da libérrima vontade de Deus e o que Deus decretasse, voluntária e livremente, é o bem, e o contrário é o mal; ou seja, que o bem e o mal dependem não da sabedoria, mas da vontade de Deus.
“O que Deus quer é necessariamente justo e bom, precisamente porque o quer; desta vontade procede a lei e todo valor ou qualificação moral. (…) Deus pode mudar o primeiro mandamento e, por exemplo, levando as coisas ao extremo, ordenar a um homem que o odeie, de sorte que tal ato viria a ser bom. (…) Igualmente o ódio ao próximo, o roubo, o adultério seriam meritórios se Deus o mandar.” (Les Sources de la morale chrétienne, P. Servais-Théodore Pinckaers O. P., ed. du Cerf, Paris 1993. p. 256).
Haja visto maior estupidez e aberração conceitual-mental a qual se possa chegar, e tudo graças ao voluntarismo nominalista de um filho da Albânia, de um anglossaxônico em todo o seu esplendor.
Este voluntarismo atroz já havia sido refutado anteriormente por Santo Tomás de Aquino, quando qualificava de blasfemo o considerar que Deus, ao criar as coisas por um ato voluntário, não o fazia considerando sua inteligência e sabedoria. E assim diz: “Deus obra voluntariamente por ordenação de sua sabedoria.” (I-II, q. 79-3).
E mais ainda, além de errôneo, é blasfemo: “Dizer então que a justiça depende da simples vontade, ou seja, que a vontade divina não procede segundo a ordem da sabedoria, o que é blasfemo.” (De Ver. q.23, a.6). Com isto temos a condenação do voluntarismo teológico por Santo Tomás de Aquino.
O Padre Cornélio Fabro, do qual o Padre Meinvielle dissera: “É possível que, depois de sete séculos de tomismo, tão somente o P. Fabro tenha voltado a entender o ato de ser? É possível…?” (Elvio Fontana, In Memoriam Cornelio Fabro, ed. Verbo Encarnado San Rafael -Mendoza, Argentina- 1995, p.31); pois lamentavelmente a escola tomista, a partir de Cajetano e Bañez, foi mais caetanista e baneziana do que tomista. O P. Fabro, depois de referir-se ao nominalismo protestante de inspiração agostiniana e após catalogar o nominalismo como a tragédia espiritual mais grande em que caiu a razão humana e de fideísmo absoluto, que desvirtua a fé verdadeira, pretendendo que o que crê não entende nada, não raciocina, o que corresponde a uma óptica nominalista da qual nasceu o protestantismo, advertindo, apesar de si, sobre o nominalismo do autor da Imitação de Cristo, Tomás de Kempis, mas dando uma grande luz para nos pôr em guarda: “O autor da Imitação de Cristo –um autor desconhecido, sem dúvida muito profundo– mas nominalista: ‘O que me importa a mim saber da Trindade? A mim me basta rezar à Trindade, o que me importa de fato discutir sobre as pessoas da Santíssima Trindade, quando não tenho a retidão mediante a qual agrado à Trindade?’” (La Crisi della Ragione nel Penseiro Moderno, Cornélio Fabro, ed. Forum, Udine, Itália 2007, p.43). Aqui vemos como o P. Fabro assinala o nominalismo do famoso Kempis.
O P. Servais Pinckaers, O.P., mostra como o nominalismo afetou a teologia moral dizendo: “Com o nominalismo, uma fossa profunda se cavou entre os moralistas modernos e a tradição patrística.” (Ibídem, p.262), e além disso diz: “Deus é para Ockham a realização absoluta da liberdade, graças à sua onipotência. Deus não está, então, submetido a nenhuma lei, inclusive moral; sua vontade livre é a única causa e origem da moral.” (Ibídem, p.261). E mostra a grande influência que teve: “As doutrinas de Ockham conheceram uma muito longa difusão e deram nascimento ao nominalismo que influenciará profundamente o pensamento ocidental neste tempo final da Idade Média.” (Ibídem, p.251).
O mesmo autor, ao referir-se a Kempis, manifesta: “Também os espirituais, como por exemplo Tomás de Kempis na Imitação de Cristo, porão com frequência seus leitores em guarda contra a vaidade das especulações teológicas.” (Ibídem, p.265).
Convém também dizer e recordar que toda a filosofia moderna tem uma grande impronta nominalista, além de gnóstico-cabálica. O Mestre Eckhart, não há que esquecê-lo, foi condenado pouco depois de morrer por suas proposições heréticas e, ainda assim, goza de grande fama como autor espiritual e místico, sendo ele, junto com seus dois discípulos Suso e Taulero, o tríduo da mística alemano-renana e ao qual haveria que associar Ruysbroeck (Rusbroquio 1293-1381), considerado por Groote e Tomás de Kempis como seu mestre, e sobre o qual influencia o Mestre Eckhart.
Em seu livro Da Cabala ao Progressismo, o P. Meinvielle diz: “Abéllio, em La Structure Absolue, nos diz, repetindo a tese da Cabala, que ‘o problema do Indeterminado, chamado Supremo Brahma pelos hindus, Tem (o que não existe em forma) pelos egípcios, Ain-Sof pelos judeus, deidade de Deus pelo Mestre Eckhart e Undgrund por Jacob Boehme, se confunde com o da infinidade dos possíveis, e a suprema contingência aparece ali como resultado de uma determinação absoluta… A deidade nos aparece como a equivalência de um cheio absoluto e de um vazio absoluto’. Por aqui aparece que as gnoses, tanto antigas como modernas, são uma mistura dos mistérios de todas as religiões e tradições com um verniz de elementos também cristãos; todas têm uma mesma e única estrutura, calcada sobre o hinduísmo, parsisismo, religiões caldeas e egípcias, hermetismo e, inafavelmente, o molde fundamental da gnose cabalista.” (Da Cabala ao Progressismo, ed. Calchaquí, Salta 1970, p.294).
O Padre Fabro, sem entrar na questão da gnose nem da cabala, refuta o Mestre Eckhart por sua concepção filosófica e metafísica e que, por conseguinte, contamina sua teologia: “A tese correspondente de Eckhart é dada pela doutrina aviceniana bem conhecida: ‘ab uno non procedit nisi uno’. De Deus, intelligere puro, tudo o múltiplo criado procede necessariamente e de maneira unitária. Eckhart está consciente de que se afasta de Santo Tomás, e o diz: ‘Primo, dato quod Deus agat necessitate naturae tunc dico: Deus agit et producit res per naturam suam, scilicet Dei. Sed natura Dei est intellectus, et sibi esse est intelligere, igitur producet res in esse per intellectum’. Como Hegel, Eckhart ignora em Deus o momento da liberdade de escolha com respeito ao finito.” (Participação e Causalidade segundo Santo Tomás de Aquino, ed. Eunsa, Pamplona 2009, p.522). (Primeiramente, dado que Deus age necessariamente por sua natureza, digo então: Deus age e produz as coisas por sua natureza, a saber, a de Deus. Mas a natureza de Deus é intelectual, e seu ser é inteligir, portanto, produz as coisas em ser pelo intelecto.) Por isto Deus cria por sua natureza intelectual tão necessariamente como pensa. Por que Deus cria necessariamente (e não livremente), pois o faz tão necessariamente como pensa, dada sua natureza intelectual.
E mais adiante expressa: “… para Eckhart (e para Avicena), o esse é o fluxo de Deus e não entra em composição com a essência segundo a maneira do ato e da potência.” (Ibídem, p. 523).
O esse que constitui e faz ser o homem é um fluxo divino, é o que há de divindade no homem, a centelha divina como professa a cabala e a gnose.
Posto que: “O esse na criatura é outro com respeito à essência, mas não com respeito ao esse divino, e a essência é nada com respeito ao esse.” (Ibídem, p.524).
Tem-se assim que: “Na concepção de Eckhart (Avicena), o esse é a formalidade suprema, possuída totalmente por Deus, e que abarca as coisas como um fluxo, uma luz, o éter. (…) Assim, o esse, que é Deus, é completamente igual em todas as coisas. (…) É evidente que esta concepção não tem nada em comum com a distinção tomista de esse e essência nem com a doutrina de causalidade que segue dela.” (Ibídem, p.524, 525).
Segundo o exposto pelo P. Fabro, para Eckhart o ser (esse) é um fluxo divino no homem, é o que o homem tem de divino e isto é o mesmo que, por outro lado, ensina a gnose e a cabala; logo, metafisicamente falando, não se pode dar um maior suporte filosófico à gnose cabalista que faz do homem um ser divino, e é justamente isto que caracteriza a gnose cabalista, como o faz ver muito bem o Padre Julio Meinvielle. Por este mesmo motivo, Jean Borella, que é talvez o gnóstico mais grande de todos os tempos, superando inclusive René Guénon, que terminou sufita, ou seja, gnose muçulmana, enquanto ele permanece aparentemente católico, trinitário, pois compatibiliza a patrística e o mistério da Santíssima Trindade com a Gnose; tem uma grande admiração pelo Mestre Eckhart.
O fato de relacionar o nominalismo com Kempis, como faz o Padre Fabro, é de grande importância para compreender a influência do nominalismo na espiritualidade da Devotio Moderna, da qual Kempis é o máximo expoente ou sua quinta-essência.
Outro grande gnóstico e considerado pai da Filosofia Alemã é Nicolau de Cusa (1401-1464), que chegou a ser cardeal, foi um grande gnóstico cabalista e um dos discípulos da Devotio Moderna, educado pelos Irmãos da Vida Comum.
O P. Julio Meinvielle diz dele: “Nicolau de Cusa recebeu a influência da cabala, ao menos indireta, em várias correntes.” (Da Cabala ao Progressismo, p. 230). E prossegue dizendo: “Para Nicolau de Cusa, na essência divina coincidem, se confundem, harmonizam e identificam todos os contrários: o todo e o nada, o ser e o não ser, o existir e o não existir, o criado e por criar. (…) Não sem razão o teólogo João Wenck, aristotélico de Heidelberg, reprovou a Cusa esta e outras frases de sabor panteístas parecidas com algumas que se encontram em Eckhart.” (Ibídem, p.231).
Por isto o P. Fabro afirma: “Eckhart nos conduz diretamente até Nicolau de Cusa.” (Ibídem, p.507).
Logo, se Nicolau de Cusa é considerado o pai da filosofia alemã, a qual culmina em Hegel como fruto, o Mestre Eckhart viria a ser o avô.
Outro personagem da Devotio Moderna, o sacerdote Gabriel Biel, que chegou a ser dos Irmãos da Vida Comum e faz parte deles, chegando a ser um de seus superiores; foi além disso discípulo de Guilherme de Ockham e seguidor de Duns Scot, tendo grande influência sobre Lutero, aprendendo os textos quase de memória.
O famoso humanista Erasmo de Rotterdam, e que poderíamos considerar precursor de Lutero, foi aluno em Deventer, dos Irmãos da Vida Comum e entra aos dezoito anos no mosteiro de Emaús de Steyn (perto de Gouda) dos canónigos regulares de São Agostinho, que participavam igualmente da espiritualidade da Devotio Moderna; os escritos de Erasmo ajudaram, tal como Lutero pregava aos quatro ventos.
Em meio a todo este ambiente nominalista, voluntarista e gnóstico, surge a figura de Kempis com sua Imitação de Cristo que, após um fundo espiritual e piedoso, responde a estes lineamentos, dada a impronta tão marcada que tem sobre a Devotio Moderna e Kempis, do voluntarismo nominalista e a mística gnóstica do Mestre Eckhart.
O nominalismo de Guilherme de Ockham penetra na Devotio Moderna de maneira inegável e reconhecível, como podemos ver aqui: “A Devotio moderna. Sobre este fundo, com mais sombras do que luzes da vida consagrada durante os séculos XIV e XV, destaca-se um movimento singular que ia ter notável influência: o movimento da Devotio moderna. Este é o nome que se utiliza para designar o movimento espiritual que partiu a finais do século XIV dos países baixos (Holanda) e, no curso do século XV, se propagou por toda a Europa, nomeadamente na Alemanha. Moderna é esta piedade na importância que dá à experiência, na ativação das forças afetivas e na formação do próprio domínio. Esta piedade prefere ‘sentir a compunção, que não saber sua definição’ (Im. Chr. I, 1, 9). Por este traço empírico situa a Devotio moderna na linha da via moderna do nominalismo da escolástica tardia…” (Alfredo López Amat, S.J. O Seguimento Radical de Cristo, Vol. I, ed. Encuentro, Madrid 1987, p.261).
Já dizia o P. Pinckaers em sua obra que citamos e que foi galardoada com o Prêmio do Príncipe de Liechtenstein em 1985, atribuído pela Universidade de Freiburg: “O pensamento de Ockham difundido pelo nominalismo constitui uma etapa de importância capital na história da teologia moral. (…) A moral de Ockham é a primeira moral de obrigação, dizemos nós. Até então, tanto da parte dos filósofos como dos Padres e dos teólogos, a questão moral era aquela da felicidade, a busca da verdadeira felicidade. (…) Com o nominalismo, um abismo profundo se cava entre os moralistas modernos e a tradição patrística. (…) Com o nominalismo assistimos a uma verdadeira revolução no universo moral, nas estruturas mentais que servem ao pensamento. (…) Se pode fazer começar o período moderno em teologia moral com Ockham, a partir do século XIV. O nominalismo, como nós o vimos, provocou uma ruptura profunda com as ideias morais da tradição anterior e pôs as bases das concepções e sistematizações dos séculos vindouros, concentrando a moral sobre a ideia e o sentimento da obrigação.” (Les Sources … , p. 260, 262, 263, 264).
A impronta gnóstica da mística alemã do Mestre Eckhart sobre a Devotio Moderna e seu fundador Groote é inegável, tal como o podemos ver nos seguintes textos: “Quase todas as obras que percorrem a história da literatura devocional da Idade Moderna começam seu relato em um pequeno canto da Europa, situado nas margens do Baixo Reno. A finais da Idade Média surgiram duas correntes espirituais fundamentais das quais, com o correr do tempo, nasceriam as tendências devocionais de maior difusão durante os séculos XVI e XVII. Estas duas correntes foram: a conhecida como tradição mística renano-flamenga e, por outro lado, a Devotio moderna, que, até certo ponto, se derivou da corrente anterior, embora também estivesse enraizada nos ensinamentos dos Irmãos da vida comum e os canónigos de Windesheim. Esta eclosão espiritual deixou como legado um grande número de obras, nenhuma delas tão importante como a Imitação de Cristo, atribuída atualmente a Tomás de Kempis (1380-1471), se bem que durante muito tempo se pensou que havia sido escrita por Jean Gerson (1363-1429). O núcleo de dita obra –que acabaria convertendo-se em um clássico da literatura devocional mais editados e traduzidos– está centrado em lograr o desenvolvimento de uma vida interior para o espírito e em fomentar o desapego para o mundo, um profundo conhecimento dos próprios estados de consciência e uma imersão completa do crente em Jesus Cristo.” (A Tradução Cultural na Europa Moderna, Peter Burke e R. Po-Chia Hsia, edições Akal, 2010, Madrid, p.101).
E na página seguinte veremos a impronta gnóstica do Mestre Eckhart e com ele, da mística renano-flamenga: “As obras dos discípulos do Mestre Eckhart (1260-1327) –Johannes Tauler (1300-1361), Heinrich Suso (1295-1366) e Jan van Ruysbroeck (1293-1381)– também gozaram de uma presença importante durante as primeiras décadas de existência da imprensa; todas elas compartilhavam um mesmo traço: a convicção de que no mais fundo de cada pessoa residia a centelha divina, um pequeno espaço de unidade ontológica com Deus que só poderia ser reconhecido e experimentado através do afastamento do mundo. Posteriormente, os ensinamentos dos três discípulos do mestre Eckhart foram popularizados por Hendrik Herp ou Harphius (m. 1477), um divulgador de grande talento cujas obras alcançaram enorme sucesso ao ser publicadas tanto em latim como em várias línguas vernáculas europeias. Outra boa parte da merdestilação e transmissão de ditas obras corresponde a Denis Rijckel (1394-1471) –mais conhecido como Dionísio o Cartuxo–, um autor de textos devocionais muito popular e prolífico, que chegou a contar não menos de sete tratados fundamentais em seu haver. (…) Em torno da data da morte de Harphius e de Dionísio o Cartuxo, os estudos bíblicos começaram a renascer, pelo que não resulta surpreendente que um estudante pertencente aos Irmãos da vida comum profundamente influenciado pela Devotio moderna, se convertesse tempo depois, no principal estudioso da Bíblia de sua época: Erasmo de Rotterdam (1469-1536).” (Ibídem, p.102). Com isto, já se vê a conexão com Lutero, pois entre um e outro não há mais que um passo.
Outro autor diz: “As regiões renanas da Alemanha ocidental e dos países baixos constituem o foco principal desta corrente de misticismo, cuja primeira figura foi o mestre Eckhart (1260-1327). Foi um grande místico especulativo e formulou uma doutrina obscura e profunda sobre as relações de Deus com a alma, na qual existem proposições de inegável sabor panteísta, uma das quais foram condenadas depois de sua morte.” (José Orlandis, História da Igreja, ed. Palabra, Madrid 2012, p.312).
E mais adiante continua expondo: “Pela mesma época em que florescia a mística alemã, surgiu nos países baixos outra corrente espiritual, fruto também daquele clima propício a uma religiosidade mais interior e pessoal, que foi típico do final da Idade Média: a Devotio moderna. A mística e a Devotio tiveram entre si evidentes relações e pode considerar-se Ruysbroeck o Admiravel (1293-1381), muito influenciado pelo mestre Eckhart e inspirador por sua vez de Gerardo Groote, como o elo intermediário entre uma e outra.” (Ibídem, p.312).
Há que recordar o que diz outro autor sobre a influência mística de Eckhart na posterior Devotio Moderna: “À espiritualidade do Mestre se lhe tem dado indistintamente os nomes de dominicana e alemã. Dominicana, porque dominicano foi ele, dominicanos seus primeiros e mais influentes discípulos, e dominicanas a filosofia, a teologia e religiosidade institucional que contribuíram para a inspiração e construção do edifício doctrinal eckhartiano. E alemã, porque na Alemanha especialmente se propagou e desde a Alemanha passou a outras nações da Europa, nomeadamente aos países baixos, onde foi incansavelmente divulgada pelo beato João Ruysbroeck, religioso agostiniano, através do qual se transvasaram à Devotio moderna notáveis influências eckhartianas. Embora atualmente se diga e escreva com bastante frequência que a Devotio moderna nasceu do resultado de uma atitude contestatária à mística alemã, parece suficientemente provado que não foi assim.” (Estampas de Místicos, Família Dominicana, Vol III, ed. OPE, Caleruega, Burgos-Espanha, 1986, p.71).
Com tudo isto fica claro tudo o que afirmamos acerca da influência mística do Mestre Eckhart, que era gnóstico-cabálica, e sobre a Devotio Moderna.
Basílio Méramo
Bogotá, 4 de Janeiro de 2017
Artigo Original disponível aqui