[Christian Lagrave] OS PERIGOS DA GNOSE CONTEMPORÂNEA

Origens e temas da gnose contemporânea

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OS PERIGOS DA GNOSE CONTEMPORÂNEA

Origens e temas da gnose contemporânea

por Christian Lagrave

Lembra-se que Paul Sernine tentou mostrar que a gnose não existia mais hoje – ou, pelo menos, se algo corresponde a esse nome, que não poderia constituir um erro perigoso para os católicos –, já que «os papas não falam sobre isso». Ele juntou a isso outras duas «provas» do mesmo calibre.

Christian Lagrave já respondeu a esses sofismas em um excelente pequeno folheto [1].

Ele retorna ao assunto mostrando pelos fatos a existência e a nocividade da gnose contemporânea. — Contra factum non fit argumentum diz o adágio («Contra um fato estabelecido, nenhum raciocínio prevalece»).

O autor trata aqui das origens e dos temas da gnose contemporânea. Ele apresentará os homens e as obras em um próximo artigo.

Este estudo foi objeto de uma exposição nas jornadas Jean Vaquié organizadas por Le Sel de la terre em agosto de 2004.

Le Sel de la terre.


  • Observação preliminar: A gnose é um assunto muito vasto; a bibliografia é imensa: centenas de volumes; apenas para o período contemporâneo, seria necessário dedicar vários livros sem esgotar o assunto; portanto, seremos obrigados a tratá-lo de maneira sumária, retendo apenas o que nos parece essencial, e negligenciando muitos aspectos, às vezes bastante importantes.

Uma experiência

VOCÊ JÁ fez a seguinte experiência? Pegue o catálogo telefônico do seu departamento, abra as páginas amarelas na seção "livrarias" e faça a contagem das livrarias explicitamente dedicadas ao esoterismo, às "espiritualidades", à astrologia, ao "desenvolvimento pessoal", às medicinas paralelas, etc. Geralmente, encontram-se várias em cada cidade um pouco importante. Além disso, se você se der ao trabalho de entrar nas livrarias generalistas, encontrará invariavelmente, no local mais acessível, prateleiras inteiras dedicadas aos temas que acabamos de mencionar, assim como às "espiritualidades orientais", ao budismo, ao "zen", ao yoga, ao xamanismo, à maçonaria, à reencarnação, à feitiçaria, ao simbolismo, aos mistérios (da Ilha de Páscoa, da Atlântida, da Lemúria, do Triângulo das Bermudas, dos "Ovnis", do Graal, dos Templários, de Rennes-le-Château, etc.). Todos esses livros encontram muitos editores e vários autores dedicam-se a eles; isso é normal, pois esses temas vendem muito bem: sabe-se que, após Harry Potter, que bateu todos os recordes de venda, agora é a vez de O Código Da Vinci. A grande imprensa, especialmente as revistas femininas, empenha-se em popularizar esses assuntos: em toda parte há menções a signos astrológicos, à reencarnação, aos "channels", aos xamãs, ao karma, etc.

Todos esses livros, todos esses temas da moda pertencem a um corrente bem conhecida, que se chama ora esoterismo, ora ocultismo, e que é mais conveniente chamar de esotero-ocultismo. O esoterismo refere-se a uma vasta e imemorial Tradição primordial universal, que é transmitida de era em era de maneira secreta e é reservada a uma elite de iniciados – trata-se, na verdade, de uma corrupção demoníaca da Tradição de origem divina [2]; quanto ao ocultismo, emprega as mesmas doutrinas que o esoterismo, mas pretende usar seu conhecimento – a "ciência oculta", como a chama – para entrar em contato com o que denomina "seres superiores" que teriam transmitido a alguns homens a Tradição primordial. O ocultista quer possuir poderes materiais sobrenaturais, que buscará praticando as técnicas da alquimia, da magia ou da feitiçaria [3].

Esses dois termos, esoterismo e ocultismo, estão desde a origem intimamente ligados à gnose, à maçonaria e à magia. Na prática, não há diferença fundamental entre eles, pois implicam nas mesmas crenças e recorrem a um sobrenatural demoníaco – de fato, os adeptos do esoterismo são quase sempre, independentemente do que dizem, praticantes do ocultismo. Consequentemente, é preciso recusar seguir aqueles que pretendem opor seu "bom" esoterismo a um mau ocultismo.

Todo o esotero-ocultismo é uma corrente perigosa, incompatível com o catolicismo e sempre condenada pela Igreja. Apesar disso, algumas revistas esotéricas se apresentam como cristãs, até mesmo católicas tradicionais ou monarquistas: Atlantis, Vers la Tradition, Connaissance des Religions, La Place Royale, Les Deux étendards, Terre du Ciel ou Sol Invictus. Além disso, em certos jornais ou revistas que não são esotéricos e que também se dizem de direita nacional ou de catolicismo tradicional, vê-se de vez em quando artigos elogiando os títulos que acabamos de citar, assim como escritores e livros que pertencem sem dúvida ao esotero-ocultismo: Jacob Boehme, Swedenborg, Fabre d'Olivet, para os antigos, e para os modernos: Rudolf Steiner, Georges Gurdjeff, René Guénon, Alphonse de Châteaubriant, Julius Évola, Raymond Abellio, Louis Pauwels e muitos outros.

É, portanto, indispensável poder identificar os principais autores do esotero-ocultismo e conhecer seus temas principais, assim como suas grandes correntes, mesmo que de forma sumária. Assim, será possível evitar cair em suas armadilhas e estar em condições de proteger as almas que Deus nos confiou.

Origens e temas da gnose contemporânea

As fontes do esotero-ocultismo

Monsenhor Jean Vernette, que foi o delegado do episcopado francês para questões relacionadas às seitas e que era um especialista incontestável nesse assunto ao qual dedicou vários livros, escreveu o seguinte:

Ao percorrer a abundante literatura dos múltiplos novos movimentos religiosos, somos impressionados [...] pela afinidade dos temas abordados e pela semelhança das explicações propostas. Desde a antiga Sociedade Teosófica até a atual Fraternidade Branca Universal, tem-se a impressão de que cada um extrai de uma espécie de vasto reservatório de conhecimentos seu vocabulário e seus símbolos, sua cosmologia e seus rituais iniciáticos. De fato, detecta-se rapidamente sob o ensino de Madame Blavatsky ou de O.M. Aïvanhov um fundo comum de esoterismo e ocultismo que se manteve ao longo dos séculos em tradição paralela à religião e ao ensino oficial.

É um mundo insólito e um tanto desorientador para a racionalidade, fascinante também porque proibido ou pelo menos de acesso difícil e arriscado. Uma nebulosa indefinível e, no entanto, consistente, onde se conectam [...] termos de contornos vagos mas aparentados: hermetismo, cabala, teosofia, misticismo, iluminismo, astrologia, rosacrucianismo, satanismo, martinismo, espiritismo e muitos outros. No plano editorial, é um sucesso [4].

E Monsenhor Vernette conclui:

Estamos no cerne das formas arcaicas do religioso e do retorno ao irracional. No coração da gnose e da nova religiosidade.

É com razão que Monsenhor Vernette evoca a gnose, pois todo o corpus temático do esotero-ocultismo se constituiu desde os primeiros séculos do cristianismo, primeiramente nos movimentos gnósticos, depois no maniqueísmo, no neoplatonismo e no hermetismo. Todos os grandes erros que hoje o esotero-ocultismo difunde provêm dessas quatro fontes, independentemente da maquiagem moderna que possam usar para cobrir seus traços.

Os modos de transmissão do erro

Como esses erros gnósticos puderam persistir e se transmitir desde a Antiguidade?

Vários modos de transmissão são possíveis, podendo, aliás, se combinar entre si. Há, primeiramente, a persistência clandestina dessas doutrinas em seitas religiosas ou em sociedades secretas, com transmissão esotérica (ou seja, reservada a um pequeno número de iniciados) realizada de maneira oculta (ou seja, essas doutrinas perversas nunca são totalmente e explicitamente reveladas, mas são ocultadas sob símbolos e mitos, e o iniciado é gradualmente levado a descobri-las por si mesmo).

Essa tática de iniciação progressiva já era utilizada nas seitas maniqueístas antigas e medievais; ainda é praticada nas seitas ocultistas modernas, em particular na maçonaria; o objetivo dessa tática é levar gradualmente os novos iniciados a doutrinas que os fariam fugir se fossem reveladas de imediato. O segredo também permite fazer o que os maniqueístas já faziam, misturando-se entre os fiéis da Igreja e escondendo-se sob a profissão da fé católica, o que lhes permitiu escapar por muito tempo da vigilância do papado [5]. É o que fazem hoje as seitas guenonianas e os maçons do rito escocês!

Claro que existem outros modos de transmissão dos temas gnósticos no nosso mundo moderno: há o que se pode chamar de "gurus", ou seja, iniciados que possuem um grande poder de sedução e transmitem suas doutrinas a discípulos particularmente receptivos, fora de qualquer estrutura organizada (Gurdjeff, por exemplo). Mas esses são casos bastante raros. De fato, a corrupção das mentes ocorre mais frequentemente pela literatura; vimos que, atualmente, inúmeros são os autores e obras que veiculam os temas do ocultismo e os popularizam para o grande público. Mas é preciso saber que essa situação dura, grosso modo, desde a época romântica. É com razão que Michel Carrouges escreveu em sua notável obra La Mystique du Surhomme, publicada em 1948:

Não se pode fazer [...] nenhum julgamento válido [sobre a literatura moderna] se não se compreende que ela é, antes de tudo, a aventura de um movimento mágico-místico rival da religião.

Vamos agora aos principais temas gnósticos, aqueles que permitem entender o essencial do sistema.

O demiurgo e a origem do mal

Todos os gnósticos se depararam com o problema do mal: como explicar a existência do mal no mundo? A teologia católica nos ensina que Deus criou anjos e homens, criaturas boas e dotadas de liberdade; é o mau uso dessa liberdade, por alguns anjos e pelo primeiro casal humano, que é a causa do mal. Mas os gnósticos recusam-se a aceitar a responsabilidade das criaturas. Eis o que objetava Marcião, um herege gnóstico do século II (resumimos seu argumento com base em Tertuliano, apologista contemporâneo de Marcião):

Se Deus é bom e tem a presciência do futuro, como pôde permitir que o homem, sua criatura, fosse tentado pelo demônio e sucumbisse à tentação, tornando-se assim sujeito ao sofrimento e à morte? Já que sabia que o homem faria mau uso de sua liberdade, deveria ter renunciado a criá-lo, ou pelo menos não o criar livre. Se Deus criou o homem apesar disso, é porque não é bom (a desgraça do homem lhe é indiferente), ou não é onisciente (não previu o que aconteceria) ou não é onipotente (não podia fazer de outra forma).

Vamos resumir agora a resposta de Tertuliano (ela é útil pois a objeção de Marcião ainda é retomada nos dias de hoje):

Não se deve julgar Deus como se fosse semelhante ao homem; o homem ignora o futuro, faz planos, os modifica, desiste deles e muitas vezes não faz o que quer. Deus é onipotente, onisciente e infinitamente bom. Nada o obrigava a criar o homem, pois Deus se basta perfeitamente a si mesmo. Se criou o homem, foi por pura bondade: criou inteligências capazes de conhecê-lo, pois não existe bem comparável ao conhecimento e à posse da Divindade. Se dotou o homem da liberdade moral de escolher entre o bem e o mal, é porque julgou digno de sua majestade suprema dotar sua criatura dessa nobre independência e dar-lhe o poder de usá-la sem qualquer restrição. Se, portanto, a bondade e a sabedoria divinas caracterizam o dom dado ao homem, não se deve decidir cegamente que a instituição é indigna de Deus porque foi viciada em seu curso, mas sim examinar o plano divino como um todo. O mal não pode ter emanado de Deus, mas sim da liberdade do homem, cuja vontade livre é a única culpada. Seria absurdo culpar Deus por não ter abandonado completamente seus planos para impedir eventos que não queria, ou por ter restringido esse presente da liberdade que queria dar ao homem, pois, nesse caso, Deus deixaria de ser Todo-Poderoso, já que a criatura ainda não criada imporia sua lei ao Criador e obrigaria Deus a fazer outra coisa que não aquilo que tinha soberanamente decidido!

No entanto, apesar dessa resposta irrefutável de Tertuliano, os gnósticos persistiram em sua recusa orgulhosa de aceitar a responsabilidade das criaturas; restou-lhes apenas rejeitar essa responsabilidade sobre o Deus que os criou, como fazia Marcião.

Para os gnósticos, o Deus do Antigo Testamento, aquele que criou o céu e a terra, não é o verdadeiro Deus, mas uma divindade inferior, um demiurgo, ou seja, um arquiteto desajeitado. Mas então, quem é o verdadeiro Deus? É o Princípio supremo, ou o Grande Abismo, um Deus incognoscível que não criou nada, mas deixou emanar de si seres inferiores, os eões; o menos inteligente desses eões, o demiurgo, criou o mundo material e nele aprisionou as almas humanas, que não são nada além de centelhas divinas emanadas do Princípio supremo e cativas de um mundo irremediavelmente mau.

O criador mau (ou desajeitado) na literatura moderna

Essa ideia é encontrada em muitos escritores modernos [6]. Veja o que Chamfort escreveu no século XVIII:

O mundo físico parece ser a obra de um Ser poderoso e bom que foi obrigado a deixar para um Ser maligno a execução de uma parte de seu plano [7].

A mesma ideia aparece na mesma época no escritor alemão Georg Christoph Lichtenberg:

“Nosso mundo é a obra de um ser de segunda categoria [8]”;

Mais recentemente, o romancista inglês Lawrence Durrell escreveu em seu romance Justine, publicado em 1957:

Somos a obra de uma divindade inferior que se achava Deus por engano [9].

O romancista francês Michel Déon, que provavelmente encontrou o gosto pelo ocultismo na biblioteca teosófica de seu pai [10], faz de Deus o autor do mal e de Satanás o autor do bem. Veja como ele conclui um de seus romances, Les Trompeuses Espérances, publicado em 1956:

Amar tanto um ser é, sem dúvida, condenar-se. Eu não tenho medo disso. O bem? O mal? Seria fácil demais se livrar com distinções tão grosseiras. A vida acabou de me ensinar que é o mal que triunfa como o Senhor quis, esperou, permitiu. Todos aqueles que lutam pelo bem, lutam contra Ele e só buscam atrasar a explosão final. Foi Satanás quem inventou o bem para desfrutar ainda mais de nossas torturas. No fim do mundo pelo mal, Deus saberá distinguir aqueles que no mal permaneceram puros, e aqueles que eram apenas impuros. Esse é o único julgamento final que eu vislumbro.

Uma outra reflexão de sabor gnóstico

Encontramos outra reflexão de sabor gnóstico em Les vingt ans du jeune homme vert, romance de Michel Déon publicado em 1977:

... Deus sentiu essa amarga dor após nos ter criado tão mal e tão pouco à sua imagem que o mínimo que se pode dizer é que ele não é um artista? [11]

Reconhece-se aí o tema do demiurgo desajeitado.

Mas encontra-se algo bem pior na obra do escritor romeno de expressão francesa Emil Michel Cioran (1911-1995); veja o que ele diz em seu Précis de décomposition publicado em 1949 pela Gallimard:

Solidão do ódio... Sensação de um deus voltado para a destruição, pisoteando as esferas, babando sobre o azul e sobre as constelações... de um deus frenético, impuro e insalubre; – demiurgia ejetando, através do espaço, paraísos e latrinas; cosmogonia de delirium tremens; apoteose convulsiva onde o fel coroa os elementos... As criaturas se lançam em direção a um arquétipo de feiura e suspiram por um ideal de deformidade... Universo da careta, júbilo da toupeira, da hiena e do piolho... Sem mais horizonte, exceto para os monstros e para a vermina. Tudo se encaminha para a feiura e a gangrena: este globo que supura enquanto os vivos exibem suas feridas sob os raios do cancro luminoso... p. 179.

Mais adiante Cioran exclama:

Como eu abomino, Senhor, a torpeza de tua obra [...] De tudo o que foi tentado aquém do nada, há algo mais lamentável que este mundo, senão a ideia que o concebeu? [...] Que tua obra cesse ou se prolongue, que importa! Teus subalternos não saberiam aperfeiçoar o que tu arriscaste sem gênio [p. 196-197].

Todo o livro é do mesmo tom, é uma condenação impiedosa do mundo criado, acompanhada da recusa da procriação, da apologia do suicídio, da rejeição da graça divina e do elogio ao demônio. É preciso saber que o livro teve, desde seu lançamento, um grande sucesso nos meios de direita e que até obteve o prêmio Rivarol em 1950!

É interessante comparar o que Cioran escreveu com as principais características da doutrina gnóstica, tais como foram definidas em 1957 por um dos melhores especialistas no assunto, Jean Doresse:

Quanto aos traços essenciais das doutrinas gnósticas, um dos mais importantes é a oposição que elas afirmam entre o mundo criado e o Deus supremo. Todo o universo sensível é condenado como mau; a divindade boa, perfeita, lhe é estranha. O poder que reina sobre o cosmos é um deus fraco, ignorante, até mesmo perverso: um monstruoso Príncipe das trevas. Como essa ideia de um mundo disforme se opõe à noção grega de um universo belo, bom e ordenado [...]! Neste mundo inferior, dominado pela fatalidade, pelo Destino [...] o homem é um escravo, aprisionado, acorrentado. Ele sofre na prisão da carne. [...] Quando o Salvador – qualquer que seja o nome sob o qual ele se apresente – traz aos eleitos a revelação do mundo superior, ele lhes desvela primeiro a perversidade total de seu corpo e da criação na qual estão encerrados; ele lhes revela ao mesmo tempo a falsidade do deus do Antigo Testamento e da lei à qual ele os escravizou [12].

Inocência do homem e culpabilidade de Deus

Encontra-se esse tipo de heresia até entre eclesiásticos; o padre (?) Martelet se expressava assim em uma conferência proferida em 29 de janeiro de 1987 em Montpellier:

Já que a morte é um fato natural, ela deve ser inscrita no caderno de encargos do autor da natureza... Como o pecado não explica a morte biológica, o escândalo recai então sobre o autor da criação, sobre o próprio Deus, [...] quando se diz que Ele não fez a morte porque Ele fez a ressurreição. Ele realmente fez a morte, no sentido em que Ele deixou a natureza existir... Ele mesmo foi pego; é o que eu chamo de enfermidade de Deus... Penso que é preciso ter a coragem de dizer que há uma enfermidade de Deus diante do fato de criar.

E na Rádio-Courtoisie, em 11 de abril de 1995, o padre (?) Martelet não hesitou em afirmar que "o homem é fruto da Evolução, por isso ele é inocente de todo pecado que teria uma consequência sobre a criação". Para ele, "o pecado original não existe: portanto [...] o batismo não apaga uma falta original que não existe"; "é Deus que é responsável pela doença, pelo sofrimento e pela morte"; "Deus é culpado, porque Deus é enfermo. Ele quis criar o 'não-deus' e só pôde fazê-lo sofredor e mortal".

Como escreviam muito justamente os religiosos de Mérigny, que citavam essas declarações em seu boletim La Simandre:

Esta negação do pecado original, de um mundo criado por Deus acabado e bom, é, nem mais nem menos, herética e blasfematória [13].

Poderíamos encontrar outros exemplos, e outros eclesiásticos gnósticos, mas devemos nos limitar a isso, pois, como observavam dois sábios teólogos dominicanos, os R. P. Cornelis e Léonard, em seu livro intitulado A Gnose Eterna:

...o problema do mal que estava no centro das gnoses antigas pode muito bem se tornar marginal em certas "gnoses" atuais [14].

De fato, encontramos hoje autores gnósticos que são muito discretos sobre esse problema do mal, sobre essa condenação radical do mundo criado, mas que ensinam, ao contrário, um panteísmo otimista: ou seja, não haveria diferença entre o Criador e a criação, aliás não teria havido criação, mas emanação, tudo emanaria de Deus; portanto, tudo é Deus, o universo é divino, o homem é divino e basta tomar consciência dessa divindade. Abordamos aqui o fenômeno da iluminação que pertence ao domínio da falsa mística ou mística diabólica.

A falsa mística e os estados superiores de consciência

O esoterismo propõe dar acesso às verdades ocultas, oriundas do que ele chama de "Tradição primordial", por meio de uma revelação, uma "iniciação" que é como um "despertar", um segundo nascimento. O conhecimento que ele quer proporcionar é iluminativo e intuitivo; essa iluminação gnóstica pelo conhecimento proporciona um êxtase que imita o dos místicos cristãos.

Nas novas sabedorias gnósticas – escreve Monsenhor Vernette – não se fala de conversão, mas de "transformação, de passagem gradual para a Verdade última, de processo de elevação para um estado superior de consciência. O adepto é convidado a meditar, a entrar em seu templo interior, a conhecer a si mesmo seguindo o axioma comumente aceito: conhecer-se é conhecer Deus". [...] "Acessar estados superiores de consciência" é uma expressão corrente na maioria desses movimentos [...].

[...] Os múltiplos grupos que giram em torno da psicologia humanista e do desenvolvimento do Potencial Humano [...], querem favorecer experiências de consciência transpessoal e/ou supranormal. [...]

Pode-se ver nessa busca uma manifestação da nova religiosidade. Ela é caracterizada pela preocupação com uma experiência direta e intuitiva do além, do Outro. Pela busca, com a ajuda de técnicas de meditação, de uma liberação interior [...]. Pela noção de Energia cósmica, manifestação de uma substância única de textura divina. Discerne-se sobretudo nessa abordagem parentescos estreitos com a abordagem gnóstica. A saber:

— a ideia de que um fragmento divino (o "Potencial Humano") está prisioneiro dos bloqueios e da inconsciência [...].

— a classificação das pessoas em perfeitas (aquelas que sabem: os pneumáticos) e imperfeitas (aquelas que não sabem: os hílicos e psíquicos). [...]

— a convicção de que a salvação se encontra nas profundezas da consciência [15].

A iluminação transpessoal da consciência cósmica

Vamos dar um exemplo típico desses fenômenos de iluminação citando longos trechos de um testemunho de Pierre Weil, publicado em uma Antologia do êxtase [16]:

[...] pensamos ter reunido aqui provas suficientes de que se trata de um estado de excepcional riqueza tanto do ponto de vista do saber e da Sabedoria quanto do despertar de um imenso Amor enterrado e reprimido em cada um de nós sem nenhuma exceção. Esta coletânea contém provas da existência em nós mesmos de um potencial de vivência direta do real sem passar por nossas funções mentais propriamente ditas, ou seja, além do pensamento, da memória ou do intelecto.

Uma noite de Natal, reunido com amigos, eu participava alegremente desta festa. Dançando com uma amiga, percebi de repente que meu ritmo e o dela formavam uma estranha unidade indissolúvel. Eu nunca havia vivido algo tão harmonioso; essa harmonia me dava uma felicidade indizível.

De repente, uma luz dourada e ofuscante aparece em um dos cantos da sala; era como uma cortina de luz; uma verdadeira visão do tipo que se descreve na Bíblia. Esta luz tinha um caráter sagrado, e dela emanava algo que me dava o sentimento muito claro de uma presença invisível aos meus olhos físicos, mas perceptível "diretamente", se posso me expressar assim. O sentimento de algo sagrado aumentou; eu entrava em estado de arrebatamento, de maravilhamento e de extrema elevação espiritual.

Então vi partículas luminosas e cintilantes no ar, que identifiquei imediatamente como sendo a manifestação da microestrutura subatômica. Um sentimento de onipotência se apoderou de mim e reconheci que eu podia, com o olhar do espírito, penetrar nos nós da madeira de pinheiro do chalé onde eu me encontrava. [...]

Mais tarde, sob a influência de uma iniciação recebida de Muktananda, tive outra experiência, a ascensão da energia primordial da Kundalini [...]. Durante várias horas, vi unidades luminosas subindo ao longo do meu corpo; tratava-se de uma luz inteligente e eu estava consciente de que ela "trabalhava" um bloqueio no nível do centro energético da garganta. Novamente, como na experiência de Esalen [17], fui submerso por uma imensa alegria e uma disposição invencível de ajudar os outros a passar por esse tipo de experiência, mesmo com risco de vida. Um imenso amor por toda a humanidade se apoderou de mim; permaneci nesse estado de graça por vários dias. [...]

Ora, é justamente desse estado de Sabedoria primordial e de Amor que o homem contemporâneo mais necessita. Sua neurose fundamental que chamamos de neurose do paraíso perdido provém justamente dessa separação resultante de um véu, o véu de Ísis, que separa nosso estado de vigília do estado transpessoal. Da árvore do conhecimento do bem e do mal, ou seja, da percepção dualista do real, ele é capaz de voltar à árvore da vida. O paraíso está em nós mesmos, em cada um de nós, sem exceção. [...]

Quando um dia do terceiro milênio se fizer a pergunta sobre qual foi a descoberta mais importante do século XX, a resposta provavelmente não será nem a força atômica nem a dos universos paralelos, mas a do estado transpessoal da consciência ou consciência cósmica. [...]

O despertar dessa sabedoria primordial inseparável do amor constitui o apanágio e o objetivo essencial de toda tradição espiritual, seja ela hinduísta, budista, islamista, cristã ou judaica. O estado transpessoal é idêntico em todas as tradições espirituais. É um estado incondicionado e, portanto, independente de qualquer influência cultural.

Esse estado transpessoal é simplesmente uma iluminação de origem diabólica que persuade a alma do iniciado de que ela faz parte do "grande Todo": não há mais para ele individualidades distintas, a diversidade das pessoas é apenas uma ilusão, cada uma é uma parcela do "grande Todo". É puro panteísmo e é o que está no fundo de todos os ensinamentos gnósticos.

O Deus Impessoal do P. Anthony de Mello

Infelizmente, essas ideias chegam até o clero católico; é o caso do jesuíta indiano Anthony de Mello (1931-1987), conhecido por suas numerosas publicações traduzidas em várias línguas e difundidas em muitos países, que em 1998, tornou-se objeto de uma nota da Congregação para a Doutrina da Fé, assinada por Ratzinger e aprovada por Wojtyla:

Em seus escritos iniciais, particularmente, o padre(?) De Mello, apesar de evidentes influências de correntes espirituais budistas e taoístas, manteve-se na linha da espiritualidade cristã. Seus livros tratam de diversos tipos de oração: petição, intercessão, louvor; assim como da contemplação dos mistérios da vida de Cristo, entre outros assuntos. No entanto, já em alguns trechos dessas primeiras obras, e cada vez mais em publicações subsequentes, percebe-se um afastamento gradual dos conteúdos essenciais da fé cristã. Ao lugar da revelação feita em Cristo, ele substitui uma intuição de Deus sem forma nem imagem, chegando ao ponto de falar de Deus como um simples vazio. Para ver Deus, basta olhar diretamente para o mundo. Nada se pode dizer sobre Deus, a única conhecimento é a não-conhecimento. Ponderar sobre a sua existência já é um absurdo. Esse apofatismo [18] extremo leva até negar que, na Bíblia, haja afirmações válidas sobre Deus. As palavras das Escrituras são indicações que deveriam servir apenas para alcançar o silêncio.

Em outros trechos, o julgamento sobre os livros sagrados das religiões em geral, não excludindo a própria Bíblia, é ainda mais rigoroso: eles impedem as pessoas de seguir seu próprio senso comum, as tornando inertes e cruéis. As religiões, incluindo a religião cristã, são os principais obstáculos à descoberta da verdade. A verdade nunca é definida por seu conteúdo específico. Considerar que o Deus de sua própria religião é o único é simplesmente fanatismo. "Deus" é visto como uma realidade cósmica, vaga e onipresente. Seu caráter pessoal é ignorado e praticamente negado.

O padre(?) De Mello demonstra apreciar a figura de Cristo, se autodenominando "discípulo" dele. No entanto, ele o coloca como um mestre entre muitos outros. A única distinção entre Jesus e demais seres humanos, segundo ele, é que Jesus estava "despertado" e completamente livre, enquanto os outros não estão. Jesus não é reconhecido como o Filho de Deus, mas sim como aquele que nos ensina que todos nós somos filhos de Deus. As declarações sobre o destino final do homem também são confusas, variando desde a ideia de se "dissolver" no Deus impessoal, como sal na água, até afirmar que a questão do destino após a morte é irrelevante, concentrando-se apenas na importância da vida presente. Para ele, como o mal é apenas ignorância, não há uma regra objetiva da moralidade; o bem e o mal são avaliações subjetivas impõem-se sobre a realidade.

Os redatores da nota concluem assim sua análise:

Dentro dessas diversas afirmações, há certamente uma conexão interna: se questionamos a existência de um Deus pessoal, não faz sentido que Ele tenha se manifestado através de Sua palavra. Assim, a Escritura não detém valor definitivo. Jesus é um mestre igual aos outros; apenas nas primeiras obras do autor Ele é apresentado como o Filho de Deus, o que seria sem sentido considerando a concepção de Deus que discutimos. Portanto, não se pode atribuir nenhum valor ao ensinamento da Igreja. A nossa sobrevivência pessoal além da morte é problemática se Deus não for uma pessoa. É claro que tais concepções sobre Deus, Cristo e o homem não são compatíveis com a fé cristã.

A « Tradição Primordial »

A « Tradição Primordial » é um dos principais temas da gnose moderna, também sendo a ideia fundamental do « tradicionalismo » de René Guénon. Trata-se de uma tradição universal e primitiva de onde todas as religiões teriam surgido, com as filosofias representando apenas uma expressão parcial e degradada dela. Dado aos homens desde os primórdios da história em uma forma encoberta, acessível apenas a uma elite, essa tradição seria transmitida de geração em geração de maneira oculta. Na verdade, como escreveu o bispo Vernette, se trata de um « fundamento comum de esoterismo e ocultismo que se manteve ao longo dos séculos, em uma tradição paralela à religião e ao ensino oficial ».

Segundo os padres Cornelis e Léonard, René Guénon concebe essa tradição como:

um conjunto de princípios permanentes e transcendentais, cuja origem não é exclusivamente humana, e que não estão sujeitos a progresso ou desenvolvimento. Nesse sentido, Guénon é decididamente antigo. A Tradição Primordial, em essência, é o conhecimento dado a Adão no Paraíso. Seus traços podem ser encontrados tanto no Vedanta quanto no Budismo e nos mistérios e sacramentos da Igreja. Entretanto, as religiões institucionalizadas representam uma degradação dessa tradição autêntica. São uma simplificação, uma exteriorização, um aspecto "exotérico" de um conhecimento esotérico e iniciático, destinado a uma "elite". Inicialmente encarregadas de transmitir e perpetuar esse conhecimento, elas acabaram esquecendo-o ao longo do caminho.

Todas as religiões, de fato, representam um primeiro passo na jornada da iniciação, servindo para transmitir externamente um conjunto de verdades, símbolos e ritos cujo significado profundo elas já não compreendem. É à ciência sagrada, à metafísica espiritual dos iniciados, que cabe desvendar o âmago dessas camadas, interpretar o sentido dos símbolos e guiar o homem além de suas primeiras atitudes religiosas, em direção aos estados superiores de autorealização [19].

São Tomás de Aquino explicou de maneira notável que, de fato, houve uma Tradição Primordial, que era o conhecimento dado a Adão no Paraíso.

"Desde o início da humanidade", escreveu São Tomás, "todas as verdades que deveríamos conhecer pela Revelação estavam contidas em substância nos dogmas comunicados pelo Criador ao homem."

Portanto, a teologia católica admite a existência de uma revelação inicial, pois Deus, sem dúvida, não criaria a humanidade sem fornecer-lhe "um fundo de verdades religiosas e morais, com elementos de culto" [20]. No entanto, após a queda, esta revelação foi corrompida universalmente, devido à ação do demônio, com mitos, superstições e magias, o que requereu uma nova revelação, feita progressivamente aos Patriarcas do Antigo Testamento, a Moisés e, por fim, aos Apóstolos. Assim, embora originalmente houvesse uma única tradição divina, há há muito tempo uma segunda, a tradição esotérica, que é uma corrupção da primeira, influenciada pelos demônios e pela natureza humana corrompida.

A pretensão dos gnósticos de transmitir uma Tradição Primordial superior à Tradição Católica é, portanto, uma falsidade. Para analisar esse tema complexo, é recomendado ler o estudo excelente de Jean Vaquié: O Problema Ardente da Tradição [21].

O Cristianismo Esotérico

Segundo Jean Vaquié, seu objetivo é substituir o ensinamento da Igreja pelo da tradição iniciática, buscando "uma síntese entre o cristianismo e todas as outras religiões, mesmo as mais distantes, para criar uma religião universal" [22].

O abade Barbier descreve minuciosamente as doutrinas deste movimento, que em sua época era conhecido como "novo espiritualismo":

Seu primeiro traço distintivo é a tentativa de adaptação ao cristianismo, buscando parecer consonante com ele. Em todo momento, há um esforço para disfarçar sob os termos de seus dogmas erros que são seus opostos. … Há um princípio comum a todas essas seitas, e sobre o qual suas teorias se baseiam. É o esoterismo, isto é, a existência de uma tradição secreta, a preservação de um ensinamento reservado apenas aos iniciados, que se teria perpetuado desde a antiguidade através dos séculos, sendo mesmo recolhido por Jesus Cristo e compartilhado com alguns de seus discípulos, para ser guardado com cuidado dentro do cristianismo, mas que, deformado ou traído pela Igreja, teria sido fielmente preservado pelas seitas ocultas, cuja cadeia ininterrupta se conecta às próprias raízes do cristianismo. Assim, essas seitas alegariam herdado a missão da Igreja, uma missão semelhante à da Maçonaria. Seu tema comum é uma explicação do mundo que dispensa o dogma da criação, levando à divinização do homem. Daí resulta o panteísmo emanacionista, encontrado no âmago de quase todos esses sistemas [23].

Jean Vaquié também nos lembra que a distinção entre ensinamento esotérico e ensinamento exotérico é real apenas nas religiões relacionadas aos mistérios das profundezas, que são mistérios das trevas e, consequentemente, necessitam de uma área de escuridão para se manterem. Essas religiões possuem, de fato, um nível inferior que deve permanecer oculto, reservado a iniciados, a "iluminados" que passaram por uma afiliação a esses mistérios das profundezas. Há um esoterismo islâmico, assim como em religiões iranianas e orientais. Isso ocorre porque essas religiões são nutridas por uma mística de ordem luciférica [24].

No entanto, o perigo reside no fato de que este aspecto demoníaco do esoterismo está geralmente muito bem disfarçado. Os esotéricos cristãos, destaca Jean Vaquié, ensinam com elegância e autoridade uma gnose extremamente próxima do cristianismo, tão próxima que conseguem apresentá-la, com uma certa plausibilidade, como compatível com o catolicismo mais tradicional. Os elementos gnósticos que eles incorporam estão tão bem misturados na terminologia cristã [25] que sua heterogeneidade é difícil de perceber. No entanto, esses elementos gnósticos estão presentes no conjunto e inevitavelmente produzem os mesmos frutos que qualquer erro doutrinário.

Na maioria das ocasiões, os esotéristas procuram reinterpretar os dogmas católicos de forma sutil, usando um linguajar obscurantista para dar a eles um novo sentido, que não é mais o da tradição católica, mas sim o da tradição esotérica, afirmando que sua interpretação é mais "espiritual", tudo isso enquanto afirmam a perfeita harmonia entre os dois significados. Portanto, devemos estar atentos a quem fala de um esoterismo cristão, pois, como Jean Vaquié acertadamente observa:

Quando vemos um escritor se referir ao par 'esotérismo-exotérismo' e usá-lo como base para seus desenvolvimentos, já temos uma forte suspeita de sua adesão à gnose moderna. Tal posição lhes permite expor verdades cristãs em termos nebulosos, ambíguos e estranhos, sob o pretexto de oferecer uma formulação menos rígida, menos contingente, menos "dogmática". Nesses ambiguidades e estranhezas, eles introduzirão conceitos gnósticos... [26].

Um exemplo de linguagem esotérica

Trata-se de um texto escrito por um escritor gnóstico contemporâneo, Henri Montaigu, falecido em 1992, que foi diretor da revista La Place Royale. Este texto intitulado Introdução ao Manifesto de La Place Royale foi publicado em 1994, no n° 33 da revista, após a morte de seu autor. Vamos encontrar quase todos os temas que acabamos de estudar (colocamos em itálico as palavras-chave do texto e entre colchetes nossos comentários):

Este papel assim definido – que foi, tanto quanto se possa afirmar, o da Igreja Primitiva, de constituição iniciática e de caráter elitista Aqui encontramos o tema do ensino oculto reservado aos iniciados – diz respeito à "via metafísica" Tema guenoniano, e tem por objetivo, não o simples "salvamento", mas mais exatamente, a "libertação" É preciso libertar o fragmento divino que está prisioneiro dos bloqueios e da inconsciência.

A Igreja, ao constituir mais tarde, sob o impulso das circunstâncias ciclo-históricas – e aliás providencialmente – uma religião de via mediana "esotérico-exotérica" A Igreja foi obrigada a vulgarizar para as massas a tradição esotérica autêntica e, portanto, a degradá-la, foi levada, após ter assumido por um tempo a responsabilidade do Temporal, uma vez que "herdava" de César, a delegar o poder temporal a Reis (São Remígio e Clóvis), enquanto organizações iniciáticas Aqui estamos nós! transmitiam, por sua vez, no segredo que convém – mas não sem deixar vestígios, especialmente nas obras – a parte mais interior e transcendente da Tradição cristã Esta parte não é da Igreja, são as organizações iniciáticas que a possuem. Múltiplas e bastante diversas, essas organizações, que cobriam o mais amplo panorama social e espiritual, desde a sutil e invisível "Rosa-Cruz", que se diz ter desaparecido do Ocidente por volta da metade do século XVII, até os grupos errantes de comediantes e malabaristas, aos ritos misteriosos dos habitantes das florestas Um certo número de sociedades secretas se reivindicam, errada ou corretamente, dos «ritos misteriosos dos habitantes das florestas», por exemplo, os Carbonari, às "lojas" baseadas no trabalho manual – das quais a Maçonaria é o rejeito distante e notavelmente desviado desde a reformulação chamada "especulativa" do século XVIII e o desvio político-filosófico do século XIX Toma-se o cuidado de criticar o desvio da maçonaria moderna, mas é para melhor aceitar sua tradição gnóstica, era a posição de Guénon – passando pelas ordens equestres, cuja mais conhecida é a dos Templários, contribuíram, ao oferecer possibilidades de realização espiritual em todos os domínios e todas as castas sociais, para realizar o admirável e difícil equilíbrio de uma Idade Média a esse respeito sempre mal conhecida, e isso, apesar da instabilidade ambiente e da inexorável queda dos tempos Esta noção de queda dos tempos é também uma noção gnóstica: a de um tempo cíclico que evoluiria sempre de uma idade de ouro para uma idade sombria, uma idade de ferro, o kali-yuga.

Reações na Igreja

O perigo neo-gnóstico é tão evidente hoje em dia que até mesmo a Igreja conciliar, geralmente bastante laxista em matéria de doutrina, não pôde deixar de denunciá-lo para alertar os fiéis.

O "papa" João Paulo II escreveu muito acertadamente em seu livro Entrez dans l’Espérance [27]:

É impossível se deixar enganar pela ilusão de que este retorno da gnose prenunciaria um renascimento da religião. Trata-se simplesmente da versão moderna de uma atitude espiritual que, em nome de uma pretensa superioridade do conhecimento de Deus, acaba por rejeitar definitivamente a Sua Palavra substituindo-a por palavras meramente humanas. A gnose nunca desapareceu do campo do cristianismo. Ela sempre coabitou com ele, às vezes como uma corrente filosófica, mais frequentemente sob formas religiosas ou para-religiosas, em oposição clara, mesmo que não explícita, ao essencial do cristianismo. [28]

Encontramos as mesmas análises em um religioso, o padre(?) Joseph-Marie Verlinde, que conhece perfeitamente a gnose e seus perigos, pois ele mesmo é um sobrevivente. Tendo praticado durante vários anos a meditação transcendental e o hinduísmo, e até recebido na Índia iniciações que lhe concederam poderes ocultos, Jacques Verlinde encontrou um dia seu caminho de Damasco e se converteu. Ordenado padre(?) em 1983, tornando-se o padre(?) Joseph-Marie, ele sabe pela própria experiência que o esotérico-ocultismo é incompatível com o Evangelho. Em 2002, ele fez as conferências da Quaresma na Notre-Dame-de-Paris e, nessa ocasião, explicou na l’Homme Nouveau como as novas religiosidades disseminam um novo ateísmo.

Com muita pertinência, o Joseph-Marie constatou que o movimento de secularização que caracteriza o mundo moderno teve um duplo efeito: por um lado, atingiu de pleno as instituições religiosas ocidentais, provocando sua decadência; por outro lado, suscitou em reação um movimento de contra-secularização que, apesar das aparências, repousa sobre os mesmos princípios e levará aos mesmos efeitos:

O movimento de secularização atacou antes de tudo a concepção bíblica de Deus, do homem e suas relações; esse Deus pessoal – e, além disso, paternal – que ameaçava diretamente a autonomia do homem e que deveria ser afastado a todo custo. Ao fazer isso, o movimento de secularização favoreceu indiretamente a disseminação das tradições naturalistas, cujas doutrinas são apresentadas como a única alternativa para saciar a sede espiritual de nossos contemporâneos.

Sabe-se, no entanto, que o que é designado por “Deus” nessas tradições não é uma Alteridade, um ser pessoal, mas uma Energia “divina” impessoal, que só seria acessível ao preço da superação da dualidade que persiste entre o ser supremo e o crente. É por isso que o pensamento difundido pelas novas religiosidades nos aparece como um novo ateísmo, e um ateísmo tanto mais pernicioso quanto o termo “Deus” é utilizado abundantemente em um sentido que não corresponde à sua acepção comum.

Adicionemos que esse pensamento neo-gnóstico pretende, em muitos casos, se desenvolver no horizonte da Tradição judaico-cristã, da qual toma o vocabulário, mas distorce o sentido dos termos que utiliza, e – muito mais grave – reinterpretando os eventos e personagens significativos da nossa fé. …

O pressuposto dos gnósticos é sempre o mesmo, embora nem sempre apareça de imediato: o que é dito na Bíblia e na tradição comum não expressaria, em essência, a fé em um Deus transcendente, que intervém em nosso mundo, mas a descoberta do homem.

Os mistérios cristãos não seriam mais do que uma camada simbólica, pura superstição enquanto não se penetra no sentido que traduzem para as mentes fracas. Esse é o ateísmo mais sutil e profundo, o oposto da atitude própria à encarnação, e, antes de tudo, a um saudável realismo, que é de humildade [29].


[1] — Nº 293/294 da Lecture et Tradition (julho-agosto 2001, BP 1, 86190 Chiré-en-Montreuil), “A gnose e o mistério da iniquidade – Resposta a um desafio”.

[2] — Veja a obra capital do abade Julio Meinvielle (1905-1973), o grande teólogo e filósofo tomista argentino, De la Cabale au Progressisme: “Na história humana, há apenas dois modos fundamentais de pensar e viver: um é católico, é a tradição recebida de Deus por Adão, Moisés e Jesus Cristo, e da qual São Tomás de Aquino foi o incomparável comentador; o outro, gnóstico e cabalístico, alimenta os erros de todos os povos, no paganismo e na apostasia …. No princípio, não há duas tradições, mas uma só, pois só existe Deus e o bem que provém de Suas mãos benéficas. A tradição perversa e cabalística tem sua origem na boa tradição, pervertida pela malícia do homem, que por sua vez se deixa seduzir e alienar pelo diabo. A grande tentação gnóstica do "vós sereis como deuses" instala-se na espécie humana e a perde” (De la Cabale au Progressisme, Cadillac, ed. Saint-Rémi, s.d., p. 15-16).

[3] — Para mais detalhes sobre os termos esoterismo e ocultismo, veja Le Sel de la terre, n° 50, outono 2004, p. 126 a 131.

[4] — Jean Vernette, “Seitas e gnoses, neo-paganismo e nova religiosidade: O deslocamento atual dos fenômenos religiosos, questão colocada às igrejas. III A proliferação das seitas e novos movimentos religiosos” em Esprit et Vie L’Ami du Clergé, 96ª ano (10ª série), n° 12, 20 de março de 1986, p. 168.

[5] — Bossuet descreveu os métodos no livro XI de sua História das variações das igrejas protestantes; o essencial pode ser encontrado em Lecture et Tradition, n° 293/294, julho-agosto 2001, “A gnose e o mistério da iniquidade. Resposta a um desafio”, p. 8 a 21.

[6] — Não fizemos um levantamento exaustivo e nos limitamos a dar alguns exemplos característicos.

[7] — Citado por Encyclopaedia Universalis, t. VII, 1980, art. “Gnosticismo cristão”.

[8] — Ibidem.

[9] — Ibidem.

[10] — Veja Mes arches de Noé, p. 41 da ed. Cercle du Nouveau Livre.

[11] — Les vingt ans du jeune homme vert, Paris, Gallimard, 1977, p. 237.

[12] — Jean Doresse, Les livres secrets des gnostiques d’Égypte, Mônaco, ed. du Rocher, 1984, p. 116-117.

[13] — La Simandre, fevereiro de 1998.

[14] — La Gnose éternelle, Paris, Fayard, coll. Je sais-Je crois, 1959, p. 82.

[15] — Jean Vernette, “Seitas e gnoses…”, Ibidem, p. 166.

[16] — Publicado na revista gnóstica Question de, n° 77, 1989.

[17] — Trata-se do Centro de Crescimento Pessoal de Esalen na Califórnia (Personal Growth Center), destinado a expandir os limites do potencial humano, fundado por Michael Murphy, acadêmico ligado a Huxley, bem como a membros do grupo Krishnamurti, e aluno de Sri Aurobindo. — Veja Jean-Pierre Laurant, Le regard ésotérique, Paris, Bayard, 2001. (Nota do autor do artigo.)

[18] — O termo significa negação. (Nota do autor do artigo.)

[19] — La Gnose éternelle, p. 84-85.

[20] — Dom Le Roy, La Religion des Primitifs, Paris, Beauchesne, 1911, p. 484.

[21] — Lecture et Tradition, n° 167, janeiro 1991.

[22] — Jean Vaquié, Occultisme et foi catholique, les principaux thèmes gnostiques, Paris, Action Familiale et Scolaire, 1990, p. 5.

[23] — Abade Emmanuel Barbier, Les Infiltrations maçonniques dans l’Église, Mont-Notre-Dame, Lille, Paris, Bruxelas, Roma, Associação Saint-Rémy e Sociedade Saint-Augustin, Desclée, De Brouwer et Cie, 1910, p. 49.

[24] — Occultisme et foi catholique…, p. 8.

[25] — Occultisme et foi catholique…, p. 5.

[26] — Occultisme et foi catholique…, p. 9.

[27] — Publicado em italiano sob o título: Varcare la soglia della speranza.

[28] — Jean-Paul II, Entrez dans l’espérance, Paris, Plon-Mame, 1994, p. 147.

[29] — Padre Joseph-Marie Verlinde em L’Homme Nouveau, 17 de fevereiro de 2002.

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